Maria Letícia de Oliveira Reis
Dedico este texto a três crianças:
A que me disse, certa vez, no alto de seus cinco anos, sobre a preocupação de sua mãe com ela: “isso é um problema beeem dela”.
A que, também com seus cinco anos, me perguntou se o Seminário 10 era sobre vida de inseto.
E a que, nos seus alfabetizantes seis anos, me deu a leitura mais bonita de meu nome: “Letrícia”.
Ninguém que sabe que vai morrer começa a atender um paciente novo. Isso faz de todo início de análise uma promessa. Que dure o tempo que durar é a premissa dos amores e do tratamento psicanalítico. Mortais, os analistas às vezes adoecem pelo caminho. Às vezes também morrem. Este é um texto sobre a morte e o amor. O amor de transferência. Onde é que isso vai dar? Pergunta de quem ama e de quem vai para análise.
Quando recebi o convite para a escrita de final de análise com crianças, perguntei ao editor da revista: pode ser qualquer final? Decido escrever sobre uma análise que chegou ao seu final pelo fim da vida do analista e sobre uma outra análise a partir da qual, através de sua recordação, pude pensar em seus efeitos.
O que acontece quando morre um psicanalista com a análise em curso? Allouch, em seu belo texto Contre l’éternité, cujo título aponta para um fim, afirma que há um jogo da relação de objeto. Entre as inúmeras referências dentro desse texto, há uma que que me saltou aos olhos: “não jogue fora o que não caiu” [Ne jetez pas ce qui n’est pas tombé] (Allouch, 2009, p.85) Um analista que morre em meio a uma análise em curso opera na lógica do “jogar fora o que não caiu”. Portanto, para onde vai a transferência em uma análise quando morre o analista?
Quando comecei a estudar Lacan, uma das coisas que mais escutava era que o analista ocupava o lugar do morto. Pois bem, na época, por mais que eu não entendesse isso, uma coisa me chamava a atenção: a relação da morte e do amor de transferência.
O final de partida analítico foi problematizado por Lacan na Proposição de outubro de 1967 sobre o Analista da Escola. Lacan inventou um conceito em torno disso, o des-ser [désêtre], um “des-ser”. Do lado do analisante, por sua vez, Lacan inventou correlativamente o que chamou de “destituição subjetiva”. Esses dois conceitos dizem respeito ao final de uma análise.
O tema da morte do analista nos mostra que não é porque o analista morreu que a análise foi concluída. Sobre isso, Allouch afirma: “o final de uma análise de nenhuma maneira pode depender de um luto, uma fórmula, no entanto, muito repetida” [Il s’en déduit que le bouclage d’une analyse ne peut en aucune façon relever d’un deliu, formule pourtant bien rebattue] (Allouch, 2009, p. 88). Concluir uma análise, portanto, é jogar o que já caiu. O jogo precisa contar com a queda do analista para se concluir. Quando o analista morre, não cai. Por que não? Allouch afirma: “Porque os mortos certamente já não existem, por isso não lhes impede em absoluto ser, perseverar no ser” [Parce que les morts certes n’existent plus, mais ceci ne les empêche nullement d’être, de pérséverer dans l’être] (Allouch, 2009, p.87).
O que você se lembra de sua análise na infância? Essa foi a pergunta orientadora de minha pesquisa, que teve como ponto de partida a surpresa de Freud ao saber que Hans havia se esquecido de seu tratamento. O caso diz respeito à história de um rapaz de dezenove anos que entrou no escritório de seu pai e leu alguns documentos e anotações. Eram os comentários de Freud sobre a fobia de cavalos num menino de cinco anos. O jovem recordou-se vagamente da palavra Gmunden, lugar onde passava suas férias de verão, e, ao ler aquelas poucas palavras, suspeitou que aquele menino poderia ser ele mesmo. Sigmund Freud, quando soube do esquecimento de Hans acerca de seu tratamento e, inclusive, de sua própria fobia, redigiu, em 1922, o pós-escrito à análise da criança: “A análise não salvara o acontecimento da amnésia, mas sim o fizera cair em esquecimento” (Freud, 1922/1986, p. 118). É no só-depois que Freud escreve essa nota, tocado pelo esquecimento daquele que um dia foi seu paciente.
Nessa pesquisa, realizei entrevistas com pessoas que haviam feito análise na infância a fim de saber o que recordavam da experiência. O percurso culminou no livro Infância e memória (Reis, 2016). Destaquei o modo como a mãe surgiu nas palavras dos entrevistados. Quando eu me apresentava e dizia sobre a pesquisa, todos, sem exceção, me indagavam: “eu tenho que perguntar algo para minha mãe?”. Nesse tópico do livro, trago a nota de rodapé de Freud no caso de neurose obsessiva, presente em “O homem dos ratos”, de 1909, quando afirma: “o paciente havia duvidado de uma lembrança de sua infância: uma travessura cuja consequência foi que o pai lhe batera. O fato fez com que o paciente indagasse posteriormente sua mãe a esse respeito” (Freud, 1909, p. 161).
Seja na decisão de levar a criança à análise, seja na narrativa do espaço, seja no aguardo na sala de espera, a mãe era um elemento presente. Foi através da mãe de um paciente que cheguei a ele, quinze anos depois. Em 2021, na pandemia de Covid-19, eu atendia em casa quando recebi uma mensagem por uma rede social:
Boa tarde, Maria Letícia, foi você que atendeu o meu filho?
Nunca esqueci quando você disse que ele tinha preocupação com chegar nos horários dos compromissos e que isso era dele, para eu valorizar isso e hoje ele é super comprometido com seus projetos. Foi um prazer ter escolhido você para cuidar do meu filho.
Minha memória de analista me alertou que não era tão simples assim. De todo modo, a conversa dela tinha, como intenção, o contato de seu filho comigo, porque, afinal, era pandemia. Quando foi possível agendar no consultório, recebi-o na mesma casa e na mesma sala da infância dele. Materializava-se ali o encontro de uma pesquisadora da memória, pronta para perguntar o que daquela experiência ele recordava:
Lembro que minha mãe entrava em algumas sessões, mas em algumas vezes ficava de fora. E lembro também que, quando acabava a sessão, minha mãe me levava a um mercado na frente para comprar um pacote de batata. Dos assuntos da análise, só lembro do fato de achar que minha mãe ia me deixar. Eu me lembro de que eu era sempre uma das últimas crianças, senão a última, o que pode ter desencadeado isso.
“Com quantos anos está?”, pergunto. “Estou com vinte, com uma vida boa, mas tenho minhas questões, assim como qualquer pessoa”, ele responde.
Em 2013, levei minha filha a um analista. Ela estava com sete anos, tinha nascido seu irmão do segundo casamento de seu pai. Ela comemorou e chorou o irmão que havia chegado. Um dia, observando seus dentes, disse-lhe: “Filha, preciso marcar uma dentista”. Ela respondeu: “E um analista”. Sabida desse lugar para falar, acostumada a esperar, nas salas disponíveis do meu consultório, que eu terminasse de atender, ela cresceu sabendo, assim como o pequeno Hans, que existe um lugar para onde endereçar o sofrimento. Hans, certa vez, depois de afirmações certeiras de Freud trazidas pelo seu pai, perguntou se o doutor falava com Deus. A pequena Elisa disse: “um dentista e um analista”. A mãe se tranquilizou, em alguma medida, quando viu que a demanda partira da criança, sendo somente um meio para alcançar a escuta.
Há quem diga que levar crianças pequenas a analistas não é coisa que se faça. Numa das entrevistas que realizei durante o mestrado, uma pessoa tocou nesse ponto, sobre a coragem de pais levarem filhos à análise e do incômodo que isso causa (Reis, 2016. De algum modo, é preciso de coragem para colocar o filho na cadeira do dentista ou do analista. Vai doer. Sobre isso, do que é feito sem anestesia, ela dizia que seu analista se aproximava dela quando lhe dizia uma coisa difícil. E que às vezes a abraçava. Me lembro de, muitas vezes, ela sair chorando das sessões, e eu, mãe encobridora de dores de lembranças encobridoras, a abraçava ao final, já apertando o botão do elevador para sair o mais rápido possível dali. Antes do corredor que levava à saída, ele às vezes surgia e dizia, olhando para mim: “a sessão de hoje foi muito importante, o que ela disse hoje foi muito importante”, fazendo dela testemunha dos próprios ditos.
Em fevereiro deste ano de 2024, depois de uma conversa em que diz se lembrar do analista da infância, resolvo entrevistá-la, fazendo as mesmas perguntas que fiz há vinte anos na minha pesquisa:
“Qual é sua recordação mais remota?”
“Me esconder atrás da poltrona na antiga casa do portão verde quando passava Harry Potter na televisão. Eu devia ter quatro, cinco anos.”
Você sabe quantos anos tinha quando foi para análise?
“Foi quando meu irmão nasceu, eu tinha sete anos, por aí, e fiquei por muito tempo”.
“Você sabe o motivo?”
“Eu sei porque você me fala da história de eu pedir para você, foi com o nascimento do meu irmão, eu estava angustiada. Foi algo muito natural, né, pedir. Porque eu cresci nesse ambiente. Me leva para esse lugar aí de que você tanto fala.”
“O que você se lembra dessa experiência com o Welson?”
“Eu não me lembro o que eu falava, não tenho ideia do que eu falava, eu me lembro, tenho uma leve noção por conta dos cadernos e registros que eu tenho com ele, eu falava da escola, do que acontecia na escola, do meus amiguinhos, essas coisas, não me lembro do que eu falava sobre a minha família, me lembro que o meu pai foi em algumas sessões comigo, junto, na mesma sessão comigo, não lembro o porquê direito também. Eu fiz um quadrinho lá, a HQ, não sei por que eu fiz. Me lembro que começou com a história do fio de cabelo na pizza, você assoprando o fio de cabelo, mas era uma fenda da caixa da pizza, mas por que eu levei isso para sessão e fiz uma HQ com isso, eu não sei. Eu me lembro que eu saía chorando muito, era na Paulista, no Conjunto Nacional. Antes, a gente pegava um iogurte gelado ali, a gente andava naquelas expansões do Conjunto Nacional para subir para o Welson. Eu me lembro da sala dele, da sala e da sala de espera, bem vividamente.”
Descreve um pouco como era:
“Eu me lembro da sala de espera, de que tinham uns quadros que mudavam muito. Esporadicamente ele ia mudando os quadros. Lembro que tinha um banheiro que eu nunca usava e, quando eu entrava, tinha uma parte que era cheia de livros, nunca tinha ninguém ali. Me lembro da sala, que era comprida, tinha um banheiro no final, tinha um divã, a poltroninha em frente à poltrona dele, uma janela, eu lembro disso.
Tinha uma porta para entrar e uma para sair. A porta para sair era direcionada diretamente com a sala dele, a porta de entrar era naquela recepçãozinha e depois ia para essa área meio mágica assim, eu não sabia nada do que tinha ali. Me lembro quando eu ia começar a desenhar na HQ, ele ia pegar os lápis de cor naquela sala e eu ficava muito curiosa sobre o que que tinha naquela parte ali que era um monte de livros.”
“Você se lembra de alguma coisa que ele te disse?”
“Não.”
“Nenhuma palavra que ele te falou?”
“Me lembro de eu falar que não podia chorar na casa do meu pai e aí a intervenção dele foi levar o meu pai para sessão. Lembro que tinha algo a ver com isso, do choro. Eu me lembro que ele anotava muito. Ele escrevia tudo o que eu falava. Ele tinha um caderninho.
E isso não acontece sempre com a A. Atualmente, não é assim, ela não faz isso. O Welson escrevia bastante e, às vezes, para lembrar de alguma coisa, ele pegava o caderninho para ver de novo o que eu estava falando. Eu me lembro que ele me abraçava também.”
“Quando?”
“Quando eu ficava chorando muito, eu acho. Eu não me lembro o que estava falando, me lembro de ele me abraçar.”
“O Welson era conhecido entre os analistas como aquele que formalizava a psicanálise, ou seja, tentava transformá-la numa espécie de escrita. Você está dizendo que ele mesmo escrevia nas sessões. Ele te convidava a escrever ou apenas desenhar?”
“Não sei. Eu lembro que eu tinha um caderninho, mas o caderninho tinha mais desenhos que escrita. Eram mais esquemas, esquemas que eu fazia para explicar para ele o que estava acontecendo, sentindo. Eu me lembro de escrever para ele como era a escola, de fisicamente escrever, levantar e explicar: aqui eram as mesas, aqui a lanchonete. Eu escrevia na minha HQzinha que eu fiz. Desenhava e fazia esses esquemas.”
“Foi uma análise que infelizmente foi interrompida, porque ele adoeceu e morreu de uma forma muito rápida, né? O que você se lembra do final? Depois que você soube que ele morreu, como que ficou essa morte dele para você? O que você pode dizer sobre isso?”
“Eu me lembro de sentir que ele estava morrendo. Eu não sabia que eu estava sentindo isso, mas eu sentia. Entendeu? Porque ele não fazia mais sessões. Eu fazia toda segunda à tarde, a gente subia a Manoel e depois voltava, né? [Silêncio] O que era mesmo? Ah… me lembro que ele foi sumindo. Não me lembro muito de como aconteceu. O que mais me lembro era a gente em Orlando, quando você me falou que ele tinha morrido e que eu fiquei muito triste, mas não sei… é aquela sensação de que você sabe que aquela coisa vai acontecer, logicamente o seu raciocínio não te leva a esse sentido, é como se você, como se fosse algo a mais que você estivesse sentindo dentro de você, meio doido.”
“Quando você voltou da viagem (porque você estava viajando quando ele morreu, nas férias de julho), você fez uma coisa que foi pedir para se despedir da sala, você se lembra disso?”
“Não. Me lembro de você me contar isso, mas não me lembro de pedir nem de ir lá.”
“Você pediu também para que a secretária achasse as suas coisas, você se lembra disso?”
“Não, eu só sei que eu tenho as coisas aí.”
“Você ficou bem brava quando você chegou e não existia mais a sala.
Está bom, obrigada. Tem mais alguma coisa que lembre?”
“Eu me lembro que ele que me passou para a analista de agora, né?”
“Ah… boa lembrança.”
“Não sei como ele pensou nela, mas me lembro da minha primeira sessão com ela.”
“Do que você se lembra?”
“De me introduzir, é muito estranho essas primeiras sessões… você já tinha falado com ela antes de eu ir, mas com o Welson ele já sabia, eu não me lembro da minha primeira sessão com ele. Mas com ela eu me lembro de falar: a minha família é de tal jeito, essas coisas assim. Eu me lembro que eu parei, mas depois, na pandemia, eu voltei. Mas eu não me lembro desse intervalo.”
Uma das coisas de que se lembra é que ele anotava muito nas sessões. Não se sabe o quê. Ele era conhecido como um analista que se ocupava da formalização da análise, e eu, como analista, achava isso muito curioso. A escrita é uma técnica a serviço da memória? A memória, que nunca se fixa, sempre está submetida a um novo rearranjo. Assim como a escrita, assim como os textos sempre por escrever, sempre adiados. Quando li a pergunta que fiz sobre o convite do analista pedindo para que ela desenhasse ou escrevesse, me dei conta de que o desenho é uma espécie de escrita, não era “apenas” desenhar: ela se lembra de “escrever para ele como era a escola”, de “fisicamente escrever”. Quando me ocupo dos escritos, quando ela se ocupa de seus escritos e de sua HQ e pede para que eu busque seu caderninho, é a presença e a permanência da palavra que ela deseja? É o que faço hoje com este texto? Os escritos sobreviveram, estão em alguma gaveta de seu quarto.
Escrever sobre a lembrança da análise da filha, trazer esse gesto de leitura, esse gesto de escrita, essa tradução de uma experiência que observei de fora e de dentro: observar como o outro escreve. O que faço com isso? Quando atendemos uma criança, não passa por nossa cabeça a questão de que aquele sujeito um dia será um analista ou estará apto a ser depois da análise. As crianças não se ocupam de seu fim de análise.
Passar pelo escrito, ter a escrita como experiência de passagem, no só-depois, no só-depois do atendimento, tem consequências para aqueles que se reconhecem numa formação continuada no exercício da prática psicanalítica. Há o que ouvimos e há o que escrevemos. Sobre isso, Nara França Chagas afirma, no livro A escrita do analista:
o que se ouve compreende a cadeia dos ditos do analisando. Trata-se do trajeto errático e ziguezagueante dos ditos. O que se diz é o dizer interpretativo, lugar da ex-sistência, do sujeito que se diz entre os ditos. É aí que o desejo do analista, operante, inscreve-se no momento do dizer, indicando um lugar para além dos ditos (Chagas, 2003, p.187).
Acompanhei os ditos de uma analisanda com o que minha filha me contava, com as dificuldades de vê-la chorando por ouvir o que dizia tão precocemente e por sentir o alívio de saber que havia um outro, para além dos pais, que se importava e se interessava pela história dela. O analista se aproximava quando era uma cena difícil: presença e palavra, assim como Dick, paciente de Melanie Klein, lembra-se de sua analista lhe dizendo: “a vida não é tão ruim assim” (Grosskurth,1992 in Reis, 2016, p.78.
A primeira recordação de minha filha é a de se esconder, de tentar desaparecer no espaço. Lembra-se da sala de seu analista que um dia desapareceu. Diz sobre a área que ela nomeou de “meio mágica” e que, ao mesmo tempo, não tinha ninguém. A ausência como morte, não como algo escondido. O objeto perdido não é o objeto escondido. O analista como a primeira experiência de ausência e a radicalidade de uma transferência solta. O que acontece quando morre um psicanalista com a análise em curso?
Margareth Little, psicanalista inglesa, fez análise com Ella Sharpe de 1940 a 1947. Percebendo que a analista não estava bem, escreveu posteriormente sobre a experiência desse final. A analista não reconheceu que estava doente e morreu um mês depois de anunciar o término da análise a Little:
De acordo com o narrado em seus escritos, a enfermidade e morte de Ella Sharpe levaram ao caos Margareth Little; em contrapartida, sob os cuidados de D.W. (como chamava carinhosamente Winnicott), ela melhorou notavelmente e, enquanto esteve em análise com ele, assim como depois Winnicott dera por terminada essa análise, suas atividades pessoais e seu trabalho floresceram (Leff, 2011, p 82.).
Apesar de seu sobrenome Little, a analisante de Ella Sharpe não era uma criança. Minha filha, talvez por ter seus ditos escutados e levados a sério, pôde perceber que algo acontecia, como disse na entrevista: “Eu me lembro de sentir que ele estava morrendo. Eu não sabia que eu estava sentindo isso, mas eu sentia”. Chegou a me dizer sobre a suposta labirintite do analista: “a vovó, quando teve labirintite, ficou boa rápido”. Seu analista se reuniu com os seus amigos mais próximos e encaminhou seus pacientes. Em seu velório, sua secretária me disse: aqui está a indicação do Welson para ela. Uma analista mulher, observei posteriormente.
Margareth Little, autora que escreveu sobre a contratransferência, escreveu sobre a morte e o luto. Um de seus textos, intitulado Familiarizada à morte [Acquatance with death], discorre acerca de como as perdas foram recorrentes em sua vida. Lacan, no Seminário sobre a Angústia, mais precisamente na aula de 30 de janeiro de 1963, articulando a questão do luto com o problema do fim da análise, afirma, em referência à escrita de Little, que não basta falar de luto:
A questão é que não basta falar de luto, nem tampouco da repetição do luto em que estava então o sujeito, pelo luto que ele fazia de seu analista, dois anos depois, mas sim perceber do que se trata na função do próprio luto, e com isso, ao mesmo tempo, levar um pouco mais longe o que Freud disse sobre o luto como identificação com o objeto perdido. Essa não é uma definição suficiente do luto. Só nos enlutamos por alguém de quem possamos dizer a nós mesmos: Eu era sua falta (Lacan, 1963/2005,p. 156.
É interessante observar como Lacan convoca o ser para pensar o luto: “Eu ‘era’ sua falta”. Retomando o raciocínio de Allouch acerca do que cai e do que ainda não caiu, a morte do analista opera em torno do que não caiu. Mas é interessante retomar o verbo cair (tomber), porque há uma ação e um movimento nos verbos cair, ser, estar, morrer, chorar, os quais parecem pedir um processo antes de virar objeto perdido. Em Contra a eternidade, há uma passagem em que Allouch escreve, quase como um provérbio, no subtítulo “A ética do objeto a”, como se pedisse um tempo para os jogadores do “jogo do amor”:
Não joguem fora o que não caiu. Isso é certo para tudo, para o amor, para foder, para o fim de análise (interromper intempestivamente uma análise é jogar fora o que não caiu ainda), para uma obra em curso de realização, para o luto, and so on [Ne jetez pasce qui n’est pas tombé. C’est vrai pour tout, pour l’amour, pour la baise, pour la fin de l’analyse (interrompre intempestivement une analyse, c’est jeter qui n’est pas tombé, pour une œuvre en cours de réalisation, pour le seuil, and so on] (Allouch, 2009, p.85).
O que diriam os analisantes se soubessem que estão na última sessão? O que dizem os analisantes quando estão na última sessão? Quando minha filha soube que ele não voltaria, pediu para se despedir da sala. A espacialidade da memória nos tratamentos da infância, o lugar como forma de marcar o tempo. A memória relacional, o corpo que se aproxima como uma intervenção. O corpo que desaparece, assim como as palavras do analista. A morte do analista como a primeira experiência de ausência para uma criança, cuja primeira recordação da vida, despudorada e desconcertante, era a de se esconder e tentar desaparecer no espaço da sala da TV.
O paciente que retorna à mesma sala da análise da infância diz: “foi aqui”. Quando ele retorna, eu já não sou tão freudiana como na época em que o atendia. Ele se lembrou de seu medo, o medo de que a mãe o abandonasse por ter sido esquecido na escola algumas vezes. Aparentemente, ex-analista e ex-paciente pareciam matar a curiosidade da vida que mudou. A sala, nem tanto. Será a memória da imagem espacial signo da permanência de algo?
Ele pede para marcar um segundo horário e, dessa vez, me pergunta se está tudo bem ele procurar outra pessoa para fazer análise.
Levando em conta o exercício do poder através das identificações, toda emancipação possível terá a forma de liquidação da transferência, com suas questões ligadas ao destino da experiência do saber, à destituição subjetiva e à dejeção do analista (Safatle, 2017, p. 211).
A liquidação da transferência ocorre no momento em que se recorda da análise feita treze anos antes. Sobre essa dissolução não sabia, a não ser por seus efeitos, quando voltou aos vinte anos de idade. A aula de 21 de junho de 1961, no Seminário de Lacan sobre a Transferência, tem um título sabiamente ambíguo: “O analista e seu luto”. No segundo e último encontro, meu antigo pequeno analisante levou para mim um doce de sua fábrica de doces. Era um doce de canela. Para mim, uma Madeleine.
[1] Este artigo é uma homenagem a Paul Auster, falecido em abril deste ano. Uma primeira versão foi publicada em 2011, na revista Lowcultura, sob o título de “A língua morta”.
[2] “Essa foi a fonte emocional do livro. Minha primeira mulher e eu nos separamos em 1979 e, durante um ano e meio depois disso, vivi em uma espécie de limbo – primeiro em Varick Street, em Manhattan, depois naquele apartamento no Brooklyn. Mas depois de acertados os ponteiros, meu filho passou a ficar comigo metade do tempo. Ele só tinha três anos e vivíamos juntos como um casal de velhos solteirões. […] Então, no início de 1981, conheci Siri Hustvedt, a pessoa com quem estou casado agora. Nos últimos nove anos, ela tem significado tudo para mim, absolutamente tudo. […] Assim, na época em que comecei a escrever Cidade de vidro, minha vida mudara da água para o vinho. Eu estava apaixonado por uma mulher extraordinária, morávamos juntos em um novo apartamento; meu mundo interior se transformara completamente. No nível mais pessoal, penso em Cidade de vidro como uma homenagem à minha mulher, uma carta de amor. É uma espécie de autobiografia subterrânea fictícia, uma tentativa de imaginar o que teria sido minha vida se eu não a tivesse conhecido. Por isso tive de aparecer no livro como eu mesmo, mas ao mesmo tempo Auster também é Quinn, só que em um universo diferente. Sem Siri talvez a minha vida tivesse sido um pouco como a dele, Quinn” (Mc Caffery, Gregory & Auster, 1992, p. 16 , tradução nossa, grifos nossos).
[3] Numa explícita alusão ao conto “William Wilson”, de Edgar Allan Poe.
[4] Como sabemos, este é também o nome do escritor da novela em questão.
[5] Pai e filho tem o mesmo nome e escolhemos trata-los, no presente texto, como Stillman pai e Stillman filho.
[6] Aqui, mais uma vez, um gesto metalinguístico quebra a “quarta parede” e o autor, sua mulher e seu filho aparecem na novela. Compõe-se, assim, um mise en abyme literário que embaralha (adamicamente) ficção e realidade.
[7] “A atribuição de significações ao choro, grito e gestos do bebê, que ocorre concomitantemente aos primeiros cuidados básicos de seu corpo, marca um primeiro e um segundo tempo da constituição do sujeito e se define como função materna” (Bernardino, Lavrador & Bechara, 2020, p. 21). Já a função paterna viria em um momento posterior, introduzindo uma brecha entre o bebê e aquele que sustenta a função materna, na direção de uma incompletude da comunicação.
[8] No original: “’My name is Peter Stillman. Perhaps you have heard of me, but more than likely not. No matter. That is not my real name. My real name I cannot remember. Excuse me. Not that it makes a difference. That is to say, anymore.’
‘This is what is called speaking. I believe that is the term. When words come out, fly into the air, live for a moment, and die. Strange, is it not? I myself have no opinion. No and no again. But still, there are no words you will need to have. There are many of them. Many millions I think. Perhaps only three or four. Excuse me. But I am doing well today. So much better than usual. If I can give you the words you need to have, it will be a great victory. Thank you. Thank you a million times over.’
‘Long ago there was mother and father. I remember none of that. They say: mother died. Who they are I cannot say. Excuse me. But that is what they say.’
‘No mother, then. Ha ha. Such is my laughter now, my belly burst of mumbo jumbo. Ha ha ha. Big father said: it makes no difference. To me. That is to say, to him. Big father of the big muscles and the boom, boom, boom. No questions now, please.’
‘I say what they say because I know nothing. I am only poor Peter Stillman, the boy who can’t remember. Boo hoo. Willy nilly. Nincompoop. Excuse me. They say, they say. But what does poor little Peter say? Nothing, nothing. Anymore’”.
[9] Na concepção do psicanalista Christopher Bollas, o idioma pessoal é “a estética única que orienta nossa relação idiossincrática com o mundo” (Nettleton, 2018, p. 29).
[10] “Se eu puder te oferecer as palavras que você precisa ter, será uma grande vitória”. Armadilha semelhante encontramos no conto “A biblioteca de Babel”, de Jorge Luis Borges, em que se afirma, diante da opressora biblioteca na qual tudo já foi dito: “Não posso combinar certos caracteres dhcmrlchtdj que a divina Biblioteca não tenha previsto e que em alguma de suas línguas secretas não encerrem um sentido terrível. Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras e terrores; que não seja em alguma dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em tautologias” (Borges, 1944/2007, p. 77).
[11] No original: “’Forgive me, Mr Auster. I see that I am making you sad. No questions, please. My name is Peter Stillman. That is not my real name. My real name is Mr Sad. What is your name, Mr Auster? Perhaps you are the real Mr Sad, and I am no one’”.
[12] No original: “‘Wimble click crumblechaw beloo. Clack clack bedrack. Numb noise, flacklemuch, chewmanna. Ya, ya, ya. Excuse me. I am the only one who understands these words’”.
[13] No original: “‘Peter was a good boy. But it was hard to teach him words. His mouth did not work right. And of course he was not all there in his head. Ba ba ba, he said. And da da da. And wa wa wa. Excuse me. It took more years and years. Now they say to Peter: you can go now, there’s nothing more we can do for you. Peter Stillman, you are a human being, they said. It is good to believe what doctors say. Thank you. Thank you so very much’”.
[14] No original: “‘For thirteen years the father away. His name is Peter Stillman too. Strange, is it not? That two people can have the same name? I do not know if that is the real name. But I do not think he is me. We are both Peter Stillman. But Peter Stillman is not my real name. So perhaps I am not Peter Stillman, after all’”.
[15]
No original: “‘I am mostly now a poet. Every day I sit in my room and write another poem. I make up all the words myself, just like when I lived in the dark. I begin to remember things that way, to pretend that I am back in the dark again. I am the only one who knows what the words mean. They cannot be translated. These poems will make me famous. Hit the nail on the head. Ya, ya, ya. Beautiful poems. So beautiful the whole world will weep.’
‘Later perhaps I will do something else. After I am done being a poet. Sooner or later I will run out of words, you see. Everyone has just so many words inside him. And then where will I be? I think I would like to be a fireman after that. And after that a doctor. It makes no difference. The last thing I will be is a high-wire walker. When I am very old and have at last learned how to walk like people. Then I will dance on the wire, and people will be amazed. Even little children. That is what I would like. To dance on the wire until I die’”.
[16] Sabemos do fascínio que o francês Philippe Petit exerceu sobre Paul Auster, que chegara mesmo a dedicar-lhe uma crônica.
[17] No original: “‘But I do love going to the park. There are the trees, and the air and the light. There is good in all that, is there not? Yes. Little by little, I am getting better inside myself. I can feel it. Even Dr. Wyshnegradsky says so. I know that I am still the puppet boy. That cannot be helped. No, no. anymore. But sometimes I think I will at last grow up and become real’”.
Allouch, J. (2009) Contre l’éternité. Ogawa, Mallarmé, Lacan. Paris: EPEL, 2009.
Chagas, N. F. (2003) O dizer interpretativo In: Furtado, A, Gontijo, T, Rodrigues, G. & Saliba, A. M. (Orgs.) A escrita do analista. Belo Horizonte: Autêntica, 2003, pp. 187-191.
Lacan, J. (1962-1963) Seminário 10: Angústia. Trad.Vera Ribeiro Rio de Janeiro: JZE, 2005.
Leff, G. (2011) Juntos en la chimenea. La contratransferencia, la “mujeres analistas” y Lacan. México: Editorial Psicoanalítica de la Letra, 2011.
Freud, S. (1922) Apéndice al análisis del pequeno Hans. Vol. X. Trad. J. L. Etcheverry. Buenos Aires: Amorrortu Editores, 1986.
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Reis, M. L. O. (2016) Infância e memória. Curitiba: CRV, 2016.
Safatle, V. (2017) Lacan, Revolução e liquidação da transferência: a destituição subjetiva como protocolo para a emancipação política. Psicanálise e Cultura. Estudos Avançados. vol. 31, n. 91, pp. 211-227, set-dez. 2017.
Psicóloga pela PUC Minas, mestre em Psicologia pela Universidade São Marcos- SP e Doutora em Psicologia pela USP.
Pesquisou memória no mestrado e o conceito de experiência no doutorado.
Atualmente pesquisa a memória e a escrita feminina e psicanálise literária.
Professora do Instituto Gerar e coordenadora do seminário clínico.