Luciana Pires
“Quem suporta sem nenhuma vergonha a contradição? Ora este contra herói existe: é o leitor de texto; no momento em que se entrega a seu prazer. Então o velho mito bíblico se inverte, a confusão de línguas não é mais punição, o sujeito chega à fruição pela coabitação das linguagens, que trabalham lado a lado: o texto de prazer é Babel feliz.”
“Os adultos inevitavelmente ensinam as crianças a falarem e as crianças ensinam (ou recordam) os adultos o que é não ser capaz de falar. Adultos aprendem com essas crianças o que eles aprendem, digamos, com a literatura: a batalha, o esforço, as concessões aparentes, e as delícias eróticas da articulação, de fazer as vozes de alguém conhecidas.”
Efetuaremos uma leitura da novela “City of Glass”, presente no livro New York Trilogy (1985), de Paul Auster (1947-2024). O autor conta que escreveu essa história em homenagem à sua segunda esposa, Siri Hustvedt, que o havia retirado da estranha vida que levavam, ele e seu filho de três anos, desde a separação da primeira esposa. Estranho tipo de homenagem. A novela é um retrato do que poderia ter sido. É o pesadelo de Auster, é uma queda abissal no que se vislumbrava através dos pontos de desmanche de sua vida de então.
Em entrevista[2], o autor relata que ele e seu filho de três anos conviviam, nessa época, como dois velhos solteirões. Essa frase é impactante: pai e filho de três anos se relacionando como dois velhos solteirões. Da imagem, depreende-se a ideia do encontro de duas pessoas longamente habituadas a nenhuma convivência cotidiana e doméstica. Encontro de duas solidões. Somos, assim, obrigados a considerar a desconexão entre os dois e o papel intermediador que a mãe tinha na relação entre pai e filho.
Na novela, encontramos três núcleos familiares retratados. O primeiro deles é o da família do protagonista Daniel Quinn. Desse núcleo, sabemos que mãe e filho morreram em um acidente, do qual não temos mais detalhes, e que restara apenas o pai, no caso Quinn. O pai, após a morte da esposa e do filho, retira-se em seu apartamento, em um estado de autoexílio. Quinn, que era poeta, abandona essa atividade e passa a escrever romances detetivescos, sob o pseudônimo de William Wilson[3]. O protagonista de suas histórias chama-se Max Work. E, em certa altura da novela, lemos que é Max Work quem “vive” no lugar de Quinn. Quinn é um morto-vivo.
Um dia, porém, Quinn atende a um insistente chamado telefônico e resolve responder por aquele que não é. Era um engano. Notamos que é apenas na ordem da ficção e da pseudonímia que é possível a Daniel Quinn dizer. Do outro lado da linha, alguém solicita os serviços de um detetive chamado Paul Auster[4]. Como a Alice de Lewis Carroll, Quinn parece “escorregar” para dentro de seu livro e assumir, na vida real, o papel de detetive.
Somos, então, conduzidos ao segundo núcleo familiar da novela. Trata-se da família Stillman. Vemos nesse sobrenome – Stillman – uma alusão à expressão inglesa still-life, que se traduz por “natureza-morta”, nome de um tipo de pintura de objetos inanimados. Seria, desse modo, a família dos “homens mortos”, ou melhor, dos “homens inanimados”. Outra acepção possível seria a família dos “quase homens” ou “ainda homens”. Dessa família, sabemos que o pai era professor do departamento de filosofia e religião de uma excelente universidade americana, quando sua mulher morre, deixando órfão um filho de dois anos. Quanto ao motivo da morte, há indícios de suicídio, mas o pai sustenta que sua esposa morrera dormindo. Conta-se que, após a morte da mulher, o pai abandonara seu cargo na faculdade alegando necessidade de dedicação exclusiva ao filho.
Sabe-se que, na sequência, o pai trancara o filho num cubículo escuro, como cobaia de um experimento através do qual pretendia resgatar a língua adâmica, a língua pré-babélica, língua em que as palavras correspondem às coisas. Acreditava o pai que, se seu filho, que já esboçava algumas palavras, fosse excluído do convívio humano, verificar-se-ia o renascimento da língua adâmica. À busca da língua unívoca e divina, Stillman pai[5] submete seu filho a uma experiência de profundo isolamento e confinamento. Anos depois, o pai termina por se desapontar com seu experimento e, ao botar fogo em seus papéis, provoca um incêndio de grande porte. É quando a história vem à tona: o filho é descoberto e conduzido para uma instituição psiquiátrica, enquanto o pai é preso.
Salta-nos à vista o impossível luto desses pais (Quinn e Stillman). Além disso, vemo-nos defrontados com três homens em confinamento: Quinn, trancado em seu apartamento; Stillman filho mantido trancado em um cubículo; e Stillman pai, por fim, preso. Na instituição psiquiátrica, Stillman filho é ensinado a falar, a andar e a comportar-se de forma razoável, conforme os padrões da humanidade. Após certo tempo, ele recebe alta e passa a morar com sua fonoaudiólogat. São eles, afonoaudiológa e Stillman filho, que ligam para o número de Quinn à procura do detetive Auster, pois anseiam pela proteção do filho contra um possível ataque do pai, que está prestes a ser solto da cadeia.
O terceiro núcleo familiar que aparece na história, de forma bem mais breve, refere-se à família composta pelo escritor Paul Auster, sua mulher Siri e seu filho[6]. As três famílias retratadas são compostas por um pai, uma mãe e um filho. Na família de Quinn, mãe e filho morreram e só o pai restara. Na família dos Stillman, mãe morrera e pai e filho restaram. Já na família de Auster, vemos os três membros da família vivos. É no deslize que leva uma família a outra que repousa a homenagem de Auster à sua atual esposa, que, com sua aparição, não tornou possível que ele se tornasse deprimido como Quinn ou enlouquecido como Stillman.
Na novela, o luto mal resolvido pela morte de entes queridos faz com que a perda seja suplantada pela despersonalização e desintegração. O luto que não se atravessa, a falta que não se instala resultam na melancolia de Quinn e no enlouquecimento dos Stillman. Entendemos que, se Stillman pai é o pesadelo de Auster, Stillman filho é o pesadelo de Quinn. Tanto Quinn quanto Stillman filho perdem seus contornos identitários devido à extensa experiência de isolamento a que são submetidos.
Interessa-nos particularmente os ocorridos no segundo núcleo familiar da novela: aquele dos Stillman. Pensamos no que deve ter ocorrido com o pai diante das falas incipientes de seu filho de dois anos, tendo perdido o suporte e a intermediação da mãe. Esse problema afetivo e, por que não, hermenêutico, é revivido na história pelo detetive Quinn/Auster ao analisar os movimentos e as ações de Stillman pai quando, em seu afã detetivesco, acompanha-o e registra seus passos dia após dia. O que entender desses movimentos aparentemente sem sentido ou sem propósito? Ele – assim como Stillman pai diante da língua de seu filho – busca uma resposta unívoca, um sentido transparente no comportamento de um outro.
Entendemos que algo da fala do filho de dois anos incomodou profundamente o pai, uma vez que se pôs a destruir o que ouvia para o substituir por algo unívoco e transparente. São a opacidade e a polissemia da fala de seu filho pequeno que exasperam o pai, que, com seu experimento, acaba por assassinar a língua do filho. No desespero para alcançar a solidão do filho, no desespero para ultrapassar suas solidões, o pai banca um louco empreendimento de encontro da língua das correspondências e, com isso, debilita o filho[7]. O resultado do que entendemos ser uma disjunção entre função materna e paterna é funesto para o desenvolvimento linguageiro-identitário de Stillman filho.
Observemos trechos da conversa do filho com Quinn, o qual, se passava pelo detetive Paul Auster:
“Meu nome é Peter Stillman. Talvez tenha ouvido falar de mim, mas mais provável que não. Dá no mesmo. Este não é meu verdadeiro nome. Meu verdadeiro nome não me recordo. Desculpe. Não que importe. Quer dizer, não mais.”
“Isto é o que se chama falar. Acredito que seja este o termo. Quando palavras saem, voam no ar, vivem por um breve momento e morrem. Estranho, não? Eu não tenho opinião. Não e não novamente. No entanto, há palavras que você precisará ter. Há muitas. Muitas milhões, eu acho. Talvez apenas três ou quatro. Desculpe. Mas estou me saindo bem hoje. Muito melhor do que de costume. Se eu puder te oferecer as palavras que você precisa ter, será uma grande vitória. Obrigado. Obrigado um milhão de vezes.”
“Tempos atrás havia mãe e pai. Não lembro nada disso. Eles dizem: mamãe morreu. Quem eles são, não posso dizer. Desculpe-me. Mas é o que eles dizem.”
“Então não havia mamãe. Ha ha. Esta é minha risada agora, minha barriga arde de mumbo jumbo. Ha ha ha. Papai grande dizia: não faz diferença. Para mim. Quer dizer, para ele. Papai grande com seus grandes músculos e bum, bum, bum. Nada de perguntas agora, por favor.”
“Eu digo o que eles dizem porque eu não sei nada. Sou apenas o pobre Peter Stillman, o garoto que não pode lembrar. Boo hoo. Willy nilly. Nincompoop. Desculpe. Eles dizem, eles dizem. Mas o que diz Peter, o coitadinho. Nada, nada, não mais” (Auster, 1985, p. 16, tradução nossa)[8].
“Este não é meu verdadeiro nome, meu verdadeiro nome eu não lembro”. Esse pronunciamento se refere duplamente à língua divina que o pai nele buscou e não encontrou, assim como ao idioma pessoal que lhe foi destituído[9]. “Falar é quando as palavras saem da boca, voam no ar, vivem por um breve momento e morrem”. Vida curta a dessas palavras. Reconhecemos um certo tom de gratuidade das palavras que são expelidas do corpo pela boca. Lembro-me de uma paciente autista que temia perder partes do corpo ao falar, o que ilumina o caráter profundamente corpóreo das palavras. Green (1973/1982, p. 209) afirma que o “afeto é a carne do significante e o significante da carne”, afeto funcionando, portanto, como via de interpenetração entre o corpo e o significante. O afeto, porém, não atravessa as palavras de Stillman filho, fazendo com que se trate ora de puro corpo, ora de puro significante.
“Se eu puder te oferecer as palavras que você precisa ter, será uma grande vitória”. Entendemos que esse é o projeto existencial de Stillman filho, tal qual lhe fora inculcado por seu pai: sua fala comparece como um presente ofertado a um outro. Fala em estado de falso self, construção psíquica para atendimento das necessidades de outra pessoa. Dessa forma, as palavras que profere não são encarnadas e indicam um polo puramente referencial. “Tempos atrás havia mãe e pai. Não lembro nada disso. […] Desculpe-me. Mas é o que eles dizem”. Sem palavras encarnadas, sem um discurso vivo, vemos seu processo de simbolização truncado: memória e história não lhe pertencem. “Eu digo o que eles dizem porque eu não sei nada. Sou apenas o pobre Peter Stillman, o garoto que não pode lembrar”[10].
“Perdoe-me, Senhor Auster. Vejo que estou te fazendo triste. Nada de perguntas, por favor. Meu nome é Peter Stillman. Este não é meu verdadeiro nome. Meu verdadeiro nome é Senhor Triste. Qual é seu nome, Senhor Auster? Talvez você seja o verdadeiro Senhor Triste, e eu seja ninguém” (Auster, 1985, p. 17, tradução nossa)[11].
Stillman filho percebe o afeto de tristeza em seu interlocutor e esse afeto os coloca em comunicação. Assistimos aos primórdios de uma afetação mútua, em estado de indiferenciação: Stillman não sabe se é ele ou Quinn/Auster quem está triste. Configura-se um espelhamento entre esses dois homens profundamente tristes e atravessados por perdas terríveis. Mas a condição de dois existentes é questionada por Stillman, que parece crer que, se um deles é, o outro necessariamente não é: a conversa impõe a morte a um dos falantes. “Meu nome verdadeiro é Senhor Triste. Qual é seu nome, Senhor Auster? Talvez você seja o verdadeiro Senhor Triste, e eu seja ninguém”.
“Wimble click crumblechaw beloo. Clack clack bedrack. Barulho bobo, flacklemuch, chewmanna. Sim, sim, sim. Desculpe. Eu sou o único que compreende essas palavras” (Auster, 1985, p. 17, tradução nossa)[12]. Menino que cresceu trancado em quarto escuro, sem contato humano algum, Stillman apresenta duas línguas: uma passível de compreensão pelo outro, contudo plenamente alienada, e outra caracterizada como sonoridade pessoal, criação sonora rente à existência corporal, língua pessoal não compartilhável. “Eu sou o único que compreende essas palavras”. Na fala, o outro ou ele, nunca os dois.
“Peter era um bom garoto. Mas era difícil ensinar-lhe palavras. Sua boca não funcionava bem. E é claro que não estava bem da cabeça. Ba ba ba, dizia. E da da da. E wa wa wa. Desculpe. Levou anos e anos. Agora dizem para Peter: você já pode ir, não há mais nada que possamos fazer por você. Peter Stillman, você é um ser humano – dizem. É bom acreditar no que os médicos dizem. Obrigado. Muitíssimo obrigado” (Auster, 1985, p. 17-18, tradução nossa)[13].
Salta aos olhos a quantidade de vezes que Stillman agradece em seu discurso. Somos lembrados dos mitos gregos que apresentam deuses vaidosos que criam os homens para que os adorem, em ato de devoção. “Peter Stillman, você é um ser humano. É bom acreditar no que os médicos dizem”. A frase dos médicos lhe confere humanidade. Os médicos são, assim, aproximados a deuses.
“Por treze anos o pai esteve longe. Ele também se chama Peter Stillman. Estranho, não? Que duas pessoas possam ter o mesmo nome? Este é seu verdadeiro nome. Mas eu não penso que ele seja eu. Nós dois somos Peter Stillman. Mas Peter Stillman não é meu verdadeiro nome. Então talvez eu não seja Peter Stillman, afinal” (Auster, 1985, p. 19, tradução nossa)[14].
Vemos Stillman filho imerso na lógica de seu pai, na lógica da língua adâmica, onde reina a equação simbólica, e os nomes são as coisas e as palavras dão à luz. Dessa perspectiva, se ele e seu pai têm o mesmo nome, eles devem ser a mesma pessoa. “Mas eu não penso que ele seja eu”. Por outro lado, essa confusão também indica o projeto de indiferenciação do pai, que, através de seu experimento de conversão linguageira, visava suprimir a inquietante alteridade da fala do filho de dois anos. Inquietante alteridade da fala de uma criança pequena.
“Agora sou principalmente um poeta. Todos os dias, me sento no meu quarto e escrevo outro poema. Invento todas as palavras, eu mesmo, como quando eu vivia na escuridão. Começo a lembrar coisas desse modo, fingindo que estou novamente na escuridão. Sou o único que sabe o que as palavras significam. Elas não podem ser traduzidas. Esses poemas me farão famoso. Acerto na mosca. Sim, sim, sim. Belos poemas. Tão bonitos que o mundo inteiro chorará.”
“Mais tarde talvez eu faça outra coisa. Depois que eu tiver terminado de ser um poeta. Mais cedo ou mais tarde, minhas palavras se esgotarão, sabe. Todo mundo tem apenas uma quantia de palavras dentro de si. E, então, onde estarei? Acredito que depois gostaria de ser bombeiro. E depois médico. Dá no mesmo. A última coisa que serei é equilibrista. Quando eu for muito velho e tiver finalmente aprendido a andar como as demais pessoas. Então eu dançarei na corda bamba, e as pessoas ficarão maravilhadas. Até mesmo as criancinhas. Isto é o que eu gostaria. De dançar na corda bamba até morrer” (Auster, 1985, p. 19, tradução nossa)[15].
Stillman filho parece empreender uma busca desesperada por um discurso vivo, caracterizado por uma “fala simultaneamente encarnada e articulada, pessoal e compartilhada […] responsável pelo trânsito que garante ao aparelho psíquico a sua capacidade de processar a experiência emocional em suas raízes mais profundas e enigmáticas” (Figueiredo, 2007, p. 481). Do lado oposto ao discurso vivo, encontramos a língua morta que ele porta – em decorrência do experimento tirânico ao qual foi submetido.
Sonha em escrever belos poemas que façam o mundo todo chorar. Sonha que suas palavras possam se comunicar com os outros e produzir-lhes afeto. Poesia aqui retratada como palavras que carregam afetos. Quinn também fora outrora poeta e, após a morte de sua mulher e de seu filho, substituiu essa tarefa pela escrita de romances de detetives. Desse modo, poesia e romance de detetives são contrastados. Na segunda modalidade de escrita, a do romance de detetives, o escritor Quinn se protege da experiência de fatalidade e de perda que vivera. Ouvimo-lo declarar o prazer que uma aventura detetivesca lhe confere, prazer de uma hermenêutica total em que nenhum detalhe é desperdiçado, em que todo traço significa.
“Mais cedo ou mais tarde, minhas palavras se esgotarão, sabe. Todo mundo tem apenas uma quantia de palavras dentro de si”. Aqui, as palavras são tomadas como objetos concretos que se esgotam com o uso, excluídas, dessa forma, de seu contexto de infinitude criativa. Como um carro que fica sem gasolina, Stillman acredita que ficará sem palavras. Essa ideia evidencia a relação de exterioridade que ele dispõe com suas palavras. Ele comparece como mero receptáculo e despejador de palavras que, dessa sorte, não o compõem.
Vale sublinhar a sequência de profissões às quais Stillman sonha se dedicar: poeta, bombeiro, médico e, finalmente, equilibrista[16]. A sequência vai da palavra ao corpo, passando pelas figuras de seus cuidadores. Lembremos que é um incêndio em sua casa que faz com que ele seja descoberto no cubículo ao qual havia sido confinado por tantos anos. E é, muito provavelmente, pelas mãos dos bombeiros que ele é conduzido aos médicos da instituição que lhe ensina simulacros de humanidade: aprende a andar, aprende a falar.
Na história, tanto sua fala quanto seu caminhar são descritos como custosos e autômatos. Stillman sonha ganhar maestria sobre o próprio corpo. É um longo percurso regressivo que Stillman prescreve para que possa finalmente instalar-se em seu corpo, se personalizar e assim ser admirado pela pequena criança que (ainda) não pudera ser.
“Mas adoro ir ao parque. Tem as árvores, e o ar, e a luz. Tem algo bom em tudo isso, não é verdade? Sim. Pouco a pouco, estou ficando melhor dentro de mim. Percebo. Até mesmo o Dr. Wyshnegradsky disse. Sei que sou ainda o garoto marionete. Isso não tem como resolver. Não, não, não mais. Mas, às vezes, acredito que crescerei e me tornarei real, enfim” (Auster, 1985, p. 22, tradução nossa).
[1] Este artigo é uma homenagem a Paul Auster, falecido em abril deste ano. Uma primeira versão foi publicada em 2011, na revista Lowcultura, sob o título de “A língua morta”.
[2] “Essa foi a fonte emocional do livro. Minha primeira mulher e eu nos separamos em 1979 e, durante um ano e meio depois disso, vivi em uma espécie de limbo – primeiro em Varick Street, em Manhattan, depois naquele apartamento no Brooklyn. Mas depois de acertados os ponteiros, meu filho passou a ficar comigo metade do tempo. Ele só tinha três anos e vivíamos juntos como um casal de velhos solteirões. […] Então, no início de 1981, conheci Siri Hustvedt, a pessoa com quem estou casado agora. Nos últimos nove anos, ela tem significado tudo para mim, absolutamente tudo. […] Assim, na época em que comecei a escrever Cidade de vidro, minha vida mudara da água para o vinho. Eu estava apaixonado por uma mulher extraordinária, morávamos juntos em um novo apartamento; meu mundo interior se transformara completamente. No nível mais pessoal, penso em Cidade de vidro como uma homenagem à minha mulher, uma carta de amor. É uma espécie de autobiografia subterrânea fictícia, uma tentativa de imaginar o que teria sido minha vida se eu não a tivesse conhecido. Por isso tive de aparecer no livro como eu mesmo, mas ao mesmo tempo Auster também é Quinn, só que em um universo diferente. Sem Siri talvez a minha vida tivesse sido um pouco como a dele, Quinn” (Mc Caffery, Gregory & Auster, 1992, p. 16 , tradução nossa, grifos nossos).
[3] Numa explícita alusão ao conto “William Wilson”, de Edgar Allan Poe.
[4] Como sabemos, este é também o nome do escritor da novela em questão.
[5] Pai e filho tem o mesmo nome e escolhemos trata-los, no presente texto, como Stillman pai e Stillman filho.
[6] Aqui, mais uma vez, um gesto metalinguístico quebra a “quarta parede” e o autor, sua mulher e seu filho aparecem na novela. Compõe-se, assim, um mise en abyme literário que embaralha (adamicamente) ficção e realidade.
[7] “A atribuição de significações ao choro, grito e gestos do bebê, que ocorre concomitantemente aos primeiros cuidados básicos de seu corpo, marca um primeiro e um segundo tempo da constituição do sujeito e se define como função materna” (Bernardino, Lavrador & Bechara, 2020, p. 21). Já a função paterna viria em um momento posterior, introduzindo uma brecha entre o bebê e aquele que sustenta a função materna, na direção de uma incompletude da comunicação.
[8] No original: “’My name is Peter Stillman. Perhaps you have heard of me, but more than likely not. No matter. That is not my real name. My real name I cannot remember. Excuse me. Not that it makes a difference. That is to say, anymore.’
‘This is what is called speaking. I believe that is the term. When words come out, fly into the air, live for a moment, and die. Strange, is it not? I myself have no opinion. No and no again. But still, there are no words you will need to have. There are many of them. Many millions I think. Perhaps only three or four. Excuse me. But I am doing well today. So much better than usual. If I can give you the words you need to have, it will be a great victory. Thank you. Thank you a million times over.’
‘Long ago there was mother and father. I remember none of that. They say: mother died. Who they are I cannot say. Excuse me. But that is what they say.’
‘No mother, then. Ha ha. Such is my laughter now, my belly burst of mumbo jumbo. Ha ha ha. Big father said: it makes no difference. To me. That is to say, to him. Big father of the big muscles and the boom, boom, boom. No questions now, please.’
‘I say what they say because I know nothing. I am only poor Peter Stillman, the boy who can’t remember. Boo hoo. Willy nilly. Nincompoop. Excuse me. They say, they say. But what does poor little Peter say? Nothing, nothing. Anymore’”.
[9] Na concepção do psicanalista Christopher Bollas, o idioma pessoal é “a estética única que orienta nossa relação idiossincrática com o mundo” (Nettleton, 2018, p. 29).
[10] “Se eu puder te oferecer as palavras que você precisa ter, será uma grande vitória”. Armadilha semelhante encontramos no conto “A biblioteca de Babel”, de Jorge Luis Borges, em que se afirma, diante da opressora biblioteca na qual tudo já foi dito: “Não posso combinar certos caracteres dhcmrlchtdj que a divina Biblioteca não tenha previsto e que em alguma de suas línguas secretas não encerrem um sentido terrível. Ninguém pode articular uma sílaba que não esteja cheia de ternuras e terrores; que não seja em alguma dessas linguagens o nome poderoso de um deus. Falar é incorrer em tautologias” (Borges, 1944/2007, p. 77).
[11] No original: “’Forgive me, Mr Auster. I see that I am making you sad. No questions, please. My name is Peter Stillman. That is not my real name. My real name is Mr Sad. What is your name, Mr Auster? Perhaps you are the real Mr Sad, and I am no one’”.
[12] No original: “‘Wimble click crumblechaw beloo. Clack clack bedrack. Numb noise, flacklemuch, chewmanna. Ya, ya, ya. Excuse me. I am the only one who understands these words’”.
[13] No original: “‘Peter was a good boy. But it was hard to teach him words. His mouth did not work right. And of course he was not all there in his head. Ba ba ba, he said. And da da da. And wa wa wa. Excuse me. It took more years and years. Now they say to Peter: you can go now, there’s nothing more we can do for you. Peter Stillman, you are a human being, they said. It is good to believe what doctors say. Thank you. Thank you so very much’”.
[14] No original: “‘For thirteen years the father away. His name is Peter Stillman too. Strange, is it not? That two people can have the same name? I do not know if that is the real name. But I do not think he is me. We are both Peter Stillman. But Peter Stillman is not my real name. So perhaps I am not Peter Stillman, after all’”.
[15]
No original: “‘I am mostly now a poet. Every day I sit in my room and write another poem. I make up all the words myself, just like when I lived in the dark. I begin to remember things that way, to pretend that I am back in the dark again. I am the only one who knows what the words mean. They cannot be translated. These poems will make me famous. Hit the nail on the head. Ya, ya, ya. Beautiful poems. So beautiful the whole world will weep.’
‘Later perhaps I will do something else. After I am done being a poet. Sooner or later I will run out of words, you see. Everyone has just so many words inside him. And then where will I be? I think I would like to be a fireman after that. And after that a doctor. It makes no difference. The last thing I will be is a high-wire walker. When I am very old and have at last learned how to walk like people. Then I will dance on the wire, and people will be amazed. Even little children. That is what I would like. To dance on the wire until I die’”.
[16] Sabemos do fascínio que o francês Philippe Petit exerceu sobre Paul Auster, que chegara mesmo a dedicar-lhe uma crônica.
[17] No original: “‘But I do love going to the park. There are the trees, and the air and the light. There is good in all that, is there not? Yes. Little by little, I am getting better inside myself. I can feel it. Even Dr. Wyshnegradsky says so. I know that I am still the puppet boy. That cannot be helped. No, no. anymore. But sometimes I think I will at last grow up and become real’”.
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Psicanalista, com especialização pela Tavistock Clinic, mestre e doutora pelo Instituto de Psicologia da USP, autora do livro “Do Silêncio ao Eco: Autismo e Clinica Psicanalítica” e organizadora do “Françoise Dolto: cultura psicossomatica e clinica”, coordenadora de grupos de estudos em psicanálise e supervisora do Sustentar – Psicanalise Infâncias e Saúde Pública do Instituto Sedes Sapientae.