Gwénola Druel [2]
tradutor: Paulo Sérgio de Souza Jr.
O autismo e a questão de seu diagnóstico são regularmente o centro de fervorosos debates há alguns anos. Entre a demência precoce de Emil Kraepelin (a esquizofrenia infantil); a noção de autismo aventada por Eugen Bleuler, em 1911, como sintoma da esquizofrenia no adulto; e aquela proposta em 1943 por Leo Kanner, que introduziu o termo “distúrbios autísticos” — e posteriormente, em 1944, “autismo infantil precoce”, diferenciando-o completamente da esquizofrenia — estão postas as bases do que permanecerá um debate constante. As discussões confrontam as posições fenomenológicas e estruturais. Outras correntes organicistas — de viés genético, comportamental, biológico — e diversas abordagens de inclinação educacional vieram se juntar a elas. Os problemas de definição e de diagnóstico desembocaram, com isso, em discussões e controvérsias, posicionamentos teóricos e clínicos contrastados. Assim,
o autismo continua, hoje mais que nunca, uma forma de discórdia, um nó de conflitos em que atuam, de um modo dramatizado e paradigmático, as grandes questões da psiquiatria que abrem as portas para além, para os angustiantes problemas impostos pela existência da loucura e por seu enraizamento ontológico na realidade psíquica do ser humano. (Hochmann, 1997)
Já em 1968, Kanner se inquietava com a extensão que o conceito inicial de autismo infantil havia ganhado. Ele fala notadamente do “perigo” de estender esse conceito, diagnosticando-o em diversas afecções díspares que apresentavam um ou outro sintoma isolado considerado característica da síndrome como um todo. Assim, “do dia para a noite, praticamente, este país parecia povoado por uma multidão de crianças autistas”, sublinha Kanner (1968, p. 18). O que atualmente parece fonte suplementar de confusão na apreensão do autismo, portanto, reside na extensão abusiva dada ao conceito. Kanner nota que, entre as crianças que lhe são trazidas como “autistas”, apenas 10% correspondem verdadeiramente ao quadro clínico tal como por ele descrito em 1943. Assim, atualmente, em especial para determinados neurologistas nos Estados Unidos, a partir de alguns sinais, por vezes bem parcos, o diagnóstico de autismo é dado, levando à colocação em prática de estratégias educativas.
A fim de esclarecer como — partindo da descrição clínica do autismo infantil por Kanner, aparentemente coerente — chegamos ao “quebra-cabeça” atual, interrogamos o que se encontra na origem de uma confusão como essa. Trata-se, antes de qualquer coisa, de uma questão histórica: com efeito, a descrição clínica do autismo infantil por Kanner adveio quando uma psicopatologia específica da criança ainda estava apenas balbuciando. O desejo de Kanner era contribuir com essa história, trazendo sua pedra ao edifício: “eu tive a impressão de que me arranjei um cantinho no edifício da psiquiatria […]. Meu nome foi associado a uma enfermidade que não havia sido descrita até então” (Kanner, 1973, p. 93). De modo que Kanner procura um termo apropriado para nomear o quadro clínico apresentado por essas crianças, e o adjetivo “infantil” lhe permite insistir na existência de uma psicopatologia própria da criança — assim como seus predecessores, ao descreverem a “esquizofrenia infantil”. Ele escolheu igualmente o termo “autismo”, fazendo referência à invenção bleuleriana; termo que, para o seu inventor, vem designar um sintoma da esquizofrenia. Não é o termo “autismo” que Kanner acredita distinguir sua síndrome da esquizofrenia, mas o adjetivo “precoce”: com efeito, insiste Kanner, o autismo está presente desde o início, contrariamente à esquizofrenia, na qual a reclusão da criança advém depois de uma participação. Com isso, Kanner, denominou sua síndrome “autismo infantil precoce”. Propomos, portanto, considerar a primeira descrição de Kanner como um momento de escansão na história das psicoses infantis, um “momento de cristalização” do saber. Trata-se, então, de localizar, na pesquisa de Kanner, um “núcleo duro”, no sentido em que fala Imre Lakatos (1974). A teoria dos programas de pesquisa de Lakatos, inicialmente concebida no domínio das matemáticas, atinge um real que implica que uma teoria não seja pura criação de seu inventor, mas que a sua elaboração necessite de diversas décadas. Partindo inicialmente de algumas hipóteses, ou mesmo objeções a teorias existentes, a elaboração da pesquisa se “cristaliza” em determinados momentos que consideramos tempos de escansão. Nesse “momento de cristalização” aparece o caráter “fecundo” ou “degenerativo” do programa de pesquisa, que permite estudar seu devir. Assim, abordar a pesquisa de Kanner desse ângulo permite interrogar e caracterizar as formulações pós-kannerianas vigentes nos programas de pesquisa sobre o autismo infantil. A primeira descrição de Kanner consta, então, como seu “núcleo duro”. É desse ângulo que esperamos encarar a pesquisa de Kanner e suas incidências no que diz respeito à pesquisa de uma especificidade do autismo infantil. Assim, a preocupação de Kanner em descrever o mais perto possível o quadro clínico apresentado por essas crianças faz de sua pesquisa uma contribuição clínica crucial, a qual permite evidenciar o que será formalizado ulteriormente pela teoria estrutural da linguagem.
Rumo à existência de uma psicopatologia própria da criança
A descrição do quadro clínico do autismo infantil por Leo Kanner (1894-1981), em 1943, ocupa um lugar essencial na história das psicoses infantis. Kanner — chefe do serviço de psiquiatria infantil da Escola de Medicina da Universidade John Hopkins, de Baltimore — tenta, com efeito, especificar na criança um tipo de psicose distinta da esquizofrenia infantil. Com vistas a situar o contexto de emergência desse novo “sintoma”, propomos reler brevemente a história das psicoses infantis a fim de recuperar como se constituiu uma clínica específica da criança com seus conceitos próprios. Se o rigor clínico caracteriza a descrição de Kanner, sua posição teórica oscilou entre dois tipos de modelo: modelos referindo-se, de um lado, à clínica do adulto e, do outro, à psicologia do desenvolvimento. Até os anos 1940, a única estrutura conceitual sólida para as psicoses infantis era a clínica de adultos (a “demência precoce”, de Kraepelin; a esquizofrenia, de Bleuler), que posteriormente levantou a questão da existência de uma esquizofrenia na criança.
Se, por um lado, a clínica psiquiátrica da criança constitui um campo de observação quase tão antigo quanto o da psiquiatria do adulto, por outro, foi preciso esperar os anos 1930 para que ela adquirisse autonomia e estabelecesse conceitos próprios. A noção de atraso mental — como constituída por Étienne Esquirol, desde antes de 1820, sob o nome de “idiotia” — marca o primeiro período da história das psicoses infantis. Não se trata de uma noção elaborada a partir de uma observação da criança, mas de um conceito que marca um momento importante na elaboração da psiquiatria do adulto. O idiotismo não é a demência, mas uma enfermidade congênita ou adquirida bem cedo durante a infância. A noção de idiotismo não permite, portanto, especificar a existência da demência, propriamente dita, na criança. Assim, sublinha Wilhelm Griesinger, em seu tratado de 1845:
a demência sistematizada é excepcional na criança, pois o eu, a essa idade, ainda não está formado de maneira bastante estável a ponto de poder apresentar uma perversão duradoura e radical; as diversas enfermidades também produzem nelas [as crianças] verdadeiras estagnações de desenvolvimento que afetam a inteligência em todas as suas faculdades. (Griesinger, ([1845]1861/1865, p. 171)
Em 1846, Édouard Séguin afirma que “não existe nenhuma observação autêntica de alienação mental num sujeito com menos de dez anos” (Séguin, 1846, p. 93). Os autores da época, portanto, não vislumbram que pudesse existir uma demência na criança. São os conceitos oriundos do trabalho de Bénédict Augustin Morel que vão voltar a atenção para a infância dos alienados e, pelo mesmo motivo, para a existência de transtornos mentais na criança. Assim, no final dos anos 1880, são publicados os primeiros tratados de psiquiatria infantil, mas sem que uma especificidade desse campo pudesse emergir. Trata-se ainda, com efeito, “de encontrar na criança — ao lado, certamente, do retardamento —, as síndromes mentais descritas no adulto” (Bercherie, 1983, p. 104).
Entretanto, John Langdon Down descreve uma forma de idiotia na criança que se caracteriza por capacidades excepcionais, bem como uma memória notável num sujeito que apresenta flagrante deficiência intelectual. Nessa época, porém, a psiquiatria da criança vai permanecer mais como um campo complementar à teoria e à clínica psiquiátrica do adulto do que um verdadeiro campo autônomo de investigação. O que havia interditado, conforme frisa Paul Bercherie,
a psicopatologia da criança de se construir, antes de surgir uma psicologia — digamos, suficiente — da criança, é a ausência de toda compreensão do observador adulto, de toda e qualquer medida comum entre o adulto e a criança […] Como dividir e classificar o que é psicopatologia quando não se tem nenhuma ideia daquilo que se divide e de como proceder? Nesse aspecto, a clínica da criança se encontrava numa posição vizinha à psiquiatria animal, já que a linguagem, quando está aí presente, é frequentemente inoperante para transmitir as experiências subjetivas, e que o observador tem, de um modo ou de outro, uma dificuldade enorme de representar para si, sem formação prévia, os estados de consciência da criança — na melhor das hipóteses, estes últimos permanecem mais construções do que apreensões diretas. (Bercherie, 1983, pp. 112-113)
É só no início dos anos 1900, com a importância dos conceitos advindos da nosologia kraepeliniana, que a clínica psiquiátrica da criança poderá dispor de noções com um valor heurístico no plano da investigação clínica. Essa é também a época do esboço de uma psicologia infantil que permite conceber a existência de uma loucura na criança. Dentro do retardamento, vêm à tona a ideia de que certas formas podem ser adquiridas nos primeiros anos, constituindo assim verdadeiras demências infantis.
É assim que, em 1906, Sante de Sanctis descreve o que ele chama de “demência precocíssima”, forma distinta da idiotia. Trata-se do surgimento — a partir dos 3-4 anos, em crianças que possuem desenvolvimento até então normal — de um estado de morosidade, de indiferença, com negativismo, oposição, transtornos afetivos (raiva, ansiedade) e uma desagregação da linguagem, bem como diversos distúrbios motores bastante característicos: agitação, estereotipias, maneirismo, catatonia, impulsões. Essas crianças não sofriam de nenhum distúrbio orgânico antes do desencadeamento da psicose. A hereditariedade não parece desempenhar um papel no aparecimento de seus transtornos.
Theodore Heller suspeitará da existência de episódios alucinatórios e delirantes. A criança mergulha bastante rapidamente, em seguida, numa completa “idiotia”; não se alimenta mais de forma autônoma, torna-se incontinente, perde o uso da linguagem. Heller observa, contudo, a persistência de uma determinada capacidade de atenção e focalização; e, sobretudo, a conservação de uma fisionomia de inteligência que diferencia claramente essas crianças dos “retardados de verdade”.
A publicação, em 1911, da obra de Bleuler marca uma reviravolta. Com efeito, Bleuler levanta a hipótese da demência que agravava a compreensão da síndrome esquizofrênica — diferenciada, entretanto, das demências orgânicas a partir de suas origens kraepelinianas. É só quinze anos mais tarde, em 1926, que August Homburger vai falar em “esquizofrenia infantil”. A ideia da existência de psicoses dissociativas na criança, distintas do retardamento mental bem como de diversas manifestações de tipo caracterial e constitutivo, começa a se impor e a chamar cada vez mais a atenção dos observadores.
Assim, A. A. Brill (1926), Soukarewa (1932) e H. W. Potter (1933) mostram a pertinência do conceito bleuleriano de esquizofrenia para apreender determinados transtornos mentais na criança. Desde então, o conceito de esquizofrenia na criança permite conceber patologias infantis que, ainda que aparentadas às esquizofrenias, delas se distinguem. Esse novo período vai ser igualmente marcado pela dominante influência que exercem sobre a clínica infantil as ideias psicanalíticas que, a partir daí, vão estruturar seu modo de pensar. A descoberta de que toda manifestação psicopatológica é resultado do conflito psíquico, e de que esse conflito, em sua expressão atual no adulto, repete a história infantil do sujeito, adquire uma reverberação muito particular no âmbito da clínica infantil, visto que é de uma situação conflituosa atual — ou minimamente recente — que as perturbações psicológicas dependem.
É essencialmente nos trabalhos em língua inglesa que uma concepção de conjunto vai se mostrar e fazer da clínica psiquiátrica da criança um todo relativamente homogêneo: o tratado de Kanner sobre a psiquiatria da criança — cuja primeira edição data de 1935 — continua sendo, nesse aspecto, uma obra de referência no campo. É Adolf Mayer quem prefaciará a primeira edição desse tratado e permitirá a Kanner abrir, sob sua tutela, o primeiro serviço de psiquiatria infantil.
O lugar do autismo nos trabalhos sobre a esquizofrenia infantil
Em seus escritos, Kanner faz referência a um determinado número de trabalhos sobre a esquizofrenia infantil, em particular os de Jakob Lutz, Lauretta Bender e Juliette Louise Despert. Trata-se, então, para Kanner, de identificar o lugar que aí ocupa o autismo e, assim, de insistir na especificidade da síndrome do autismo infantil precoce que ele se põe a descrever em relação às esquizofrenias infantis.
Lutz delimita a esquizofrenia infantil em 1937, insistindo nas perturbações do contato (indiferença, autismo, isolamento, distúrbios de linguagem importantes e precoces) e afirmando como característica essencial das psicoses esquizofrênicas o fato de que aparecem na infância ou mais tardiamente. A descrição da esquizofrenia infantil feita por Lutz é muito próxima da descrição da esquizofrenia do adulto de Bleuler. A primeira se distingue da segunda, todavia, no sentido em que, contrariamente a Bleuler — que diferencia sintomas primários e secundários —, Lutz propõe sobretudo a seguinte enumeração: transtornos relacionais, dentre os quais o autismo; distúrbios de linguagem; transtornos dos afetos e, notadamente, uma angústia invasiva; distúrbios do impulso vital; transtornos de associação, entre os quais inclui as alucinações; sintomas catatônicos e distúrbios associados (distúrbios do adormecer e do sono, masturbação, encoprese, enurese…). Enquanto Lutz se esforçava por limitar e circunscrever o conceito de psicose infantil, os anglo-saxões o ampliavam.
Em 1942, inspirada nos trabalhos de Arnold Gesel, Bender desenvolve uma hipótese original segundo a qual a psicose infantil
implica um retardo de maturação no nível embrionário, caracterizado por uma plasticidade primitiva em todos os domínios a partir dos quais o comportamento futuro se desenvolve. Ele é determinado de forma genética e ativado por uma crise fisiológica, como o nascimento. A angústia é, simultaneamente, uma resposta orgânica e psicológica que vai convocar o mecanismo de defesa. (Bender, 1942, pp. 198-140)
Bender distingue três tipos de esquizofrenias infantis, dentre elas a criança “autístico-retardada”: nesses casos, ou a criança é retardada de início, ou existe uma regressão depois de certo desenvolvimento precoce. Inibida, frequentemente com mutismo, a criança “autístico-retardada” é incapaz de relações de objeto adequadas. Bender propõe então a hipótese de um tipo de sintoma primário que possui causa biológica: com efeito, é uma fixação num estado embrionário de reações homeostáticas que seria responsável pelas psicoses infantis. É a esse distúrbio primário que ela tenta subordinar o conjunto da patologia psicótica da criança.
Os trabalhos de Despert ocupam um lugar importante na história das psicoses infantis, no sentido em que se articulam em torno da existência de dois traços dominantes próprios às esquizofrenias infantis: a perturbação do contato afetivo com a realidade — que se encontra explicitamente retomado por Kanner em sua descrição do autismo infantil precoce — e o pensamento autístico. Baseando-se numa observação de vinte e nove casos de crianças (nove com menos de sete anos e vinte entre a idade de sete a treze) acompanhadas entre os dias 1º de junho de 1930 e 1º de junho de 1937, no Instituto Psiquiátrico de Nova York, Despert descreve o quadro de diferentes variedades sintomáticas.
A partir dessas observações, ela define as psicoses infantis a partir de um critério constante, o da “defesa autística”, segundo o qual a esquizofrenia infantil é um “processo mórbido no qual a perda do contato afetivo com a realidade coincide com a aparição de um pensamento autístico ou é determinada por essa aparição, e acompanha fenômenos específicos de regressão e dissociação” (Despert, 1978, pp. 9-10). Considerados os fatos, Despert reterá sobretudo a presença de uma dissociação imediatamente acompanhada por uma experiência delirante “interna”, e notando que Bleuler, já em 1912-1913, insistiu em distinguir um “autismo normal” (a fantasia infantil normal) e um autismo esquizofrênico.
Em 1942, J. L. Despert considera que se trata de pesquisar, para o diagnóstico, os seguintes sinais: dissociação no domínio da motricidade; emprego de formas fonéticas dissociadas de seu conteúdo afetivo; recuo da resposta afetiva ou acesso de cólera totalmente fora de proporção com o estímulo; comportamento bizarro, ligado a uma experiência corporal de estranhamento. Quando Kanner publicar suas pesquisas sobre o autismo infantil precoce, Despert irá manter sua posição, considerando que a síndrome de Kanner seria apenas um caso extremo da síndrome que ela havia descrito: “a criança autista, ainda num mais alto grau que a criança esquizofrênica, não impetra relações humanas adequadas sobre uma base emocional” (Despert, 2002, p. 211).
Despert distinguirá, então, o caso em que o autismo patológico é primário do caso em que a experiência delirante aparece de forma secundária. Em contrapartida, considerará que a “psicose simbiótica” de Margaret Mahler consiste apenas numa expressão particular do autismo que ela descreve, recusando totalmente a etiologia proposta pela colega. Por outro lado, irá se opor à hipótese sustentada por Bender quanto a um “retardo de integração em nível embrionário” exclusivo da experiência delirante primária, que lhe parece não específica e demasiado suscetível de se aplicar a crianças com retardo não psicóticas.
A origem do termo “autismo”: a censura bleuleriana
Ainda que Sigmund Freud só tenha falado um pouco do autismo, não podemos deixar de nos referir a ele, e isso porque o conceito de autoerotismo ocupa um lugar na teoria analítica — lugar marcado pela censura bleuleriana. O conceito de autoerotismo é retomado por Freud de Havelock Ellis, que o havia introduzido no vocabulário científico em 1898. Com ele, Havelock Ellis designava uma excitação que surgia dentro do próprio corpo, e não era provocada pelo exterior.
Encontramos duas referências diretas ao “autismo” nos textos de Freud. Ele toma primeiramente a imagem de um “pássaro fechado em sua casca”, para representar um psiquismo vivendo de maneira autística. Essa imagem vem exemplificar um sistema colocado em posição de não sentir o aumento da excitação, seja ela de origem interna ou externa. Freud faz referência a um organismo vivo, indo da forma mais simplificada até uma forma mais ou menos complexa:
Imaginemos o organismo vivo, na sua maior simplificação, como uma indiferenciada vesícula de substância excitável; a sua superfície voltada para o mundo externo é então diferenciada pela própria localização, servindo como órgão receptor de estímulos. (Freud, 1920/2010, p. 187)
A situação desse ser vivo é de estar “quase totalmente desamparado, ainda desorientado no mundo, […] acolhe[ndo] estímulos no seu tecido nervoso” (Freud, 1915/2010, p. 54) A segunda referência encontra-se na introdução de “A psicologia das massas”, na qual Freud opõe atos psíquicos sociais em relação a um Outro e “outros processos” chamados de “narcísicos”, “nos quais a satisfação pulsional escapa à influência de outras pessoas ou a elas renuncia”, e acrescenta, a propósito destes: “Bleuler diria talvez autísticos” (Freud, 1921/2011, pp. 14-15; trad. modificada).
Em 1908, Bleuler praticamente já havia concluído a redação de sua obra. As suas reticências, os seus escrúpulos e oscilações em admitir o termo “sexualidade” no sentido freudiano são amplamente evocados em suas correspondências. Ele tem — ou ao menos afirma ter — receio, em particular, de que o termo “autoerotismo” chegue aos ouvidos reacionários e puritanos de seus colegas. Na época, as discussões entre Freud, Bleuler e Carl Gustav Jung eram apaixonadas, notadamente a propósito das resistências de Bleuler a admitir a existência da pulsão sexual. Bleuler substituiu a noção de “autoerotismo” pela de “autismo”, apagando o caráter sexual, ainda que ele enuncie em sua monografia intitulada “Dementia Praecox ou Grupo de Esquizofrenias” (1911) os receios quanto a essa sua escolha:
o autismo é praticamente a mesma coisa que Freud chama de autoerotismo. Mas como, para esse autor, libido e erotismo possuem uma significação muito mais ampla que para as demais escolas, não se pode utilizar essa palavra aqui, correndo o risco de favorecer inúmeros mal-entendidos. (Bleuler, 1993, p. 55)
Sabemos da desconfiança que Freud tinha com relação à invenção de Bleuler. Não é por acaso que, em seu texto de 1924, “A perda da realidade na neurose e na psicose”, Freud evita cuidadosamente falar em autismo. Ele dá ênfase ao seguinte:
também na neurose [há] tentativas de substituir a realidade indesejada por outra mais conforme aos desejos […] Assim, tanto para a neurose como para a psicose há a considerar não apenas a questão da perda da realidade, mas também de uma substituição da realidade. (Freud, 1924/2011, pp. 220-221)
Freud refutará a proposição de Bleuler segundo a qual o autismo seria análogo ao autoerotismo. Para ele, o autismo de Bleuler deveria ser aproximado do narcisismo secundário. Freud distingue, com efeito, um “narcisismo primário normal”, que resulta de uma operação segundo a qual “uma nova ação psíquica vem se juntar ao autoerotismo” e que constituiria uma etapa do desenvolvimento, e um “narcisismo secundário”. Jacques Lacan, por sua vez, vai refutar toda e qualquer ideia de um pretenso narcisismo primário; para ele, existe apenas um único narcisismo: “Consideramos a relação do narcisismo como a relação imaginária central para a relação inter-humana” (Lacan, [1955-1956]1981/1988, p. 110).
Bleuler sublinha que o autismo é “uma tendência a colocar a própria fantasia acima da realidade e refugiar-se dessa última”. O termo “autismo”, como definido por ele, corresponde mais ao que Pierre Janet qualifica como “perda do senso de realidade”. Segundo Bleuler: “o senso de realidade não falta totalmente na esquizofrenia, ele fracassa apenas para as coisas que não são […] colocadas em oposição com seus complexos” (Bleuler, 1993, p. 112).
É preciso notar igualmente que Bleuler, de certo modo, tirou consequências do modo particular da reclusão do mundo exterior que Freud havia evidenciado — em particular em sua correspondência com Jung — nos casos de esquizofrenia, e vê o autismo como uma reclusão no que diz respeito às relações de objetos externos. Essa formulação, sem sair das temáticas freudianas propriamente falando, deixa evidentemente de lado os pressupostos de gênese pulsional do sujeito que Freud desenvolve nos anos de 1910, em “As pulsões e seus destinos”, para insistir verdadeiramente apenas na “predominância patológica da vida interior (autismo)”, à custa das relações com o mundo exterior (desligamento da realidade), constituindo assim a mais simples definição bleuleriana do autismo: “chamamos de autismo esse desligamento da realidade combinado à predominância relativa ou absoluta da vida interior” (Bleuler, 1993, p. 112).
Lendo a reserva de Bleuler quanto à “perda do senso de realidade” segundo Janet, constata-se um deslizamento que se faz de uma evasão da realidade à perda do sentido limitada a determinados domínios. Bleuler não descreve aí uma impossibilidade estrutural como irá rascunhar na teoria do sintoma. Ele chega a distinguir duas formas de pensamento no esquizofrênico:
é preciso que distingamos um pensamento realista e um pensamento autístico, lado a lado, no mesmo paciente. No pensamento realista, o paciente se orienta perfeitamente bem no tempo e no espaço reais; ele dirige suas ações em função disso, tanto que nos parecem normais. Do pensamento autístico provêm ideias delirantes […]. As duas formas são frequentemente bem distintas, tanto que o paciente pode pensar de modo ora completamente autístico, ora completamente normal. (Bleuler, 1993, p. 117)
Bleuler termina seu estudo do autismo com a seguinte observação: “o autismo não deve ser confundido com ‘o inconsciente’. Tanto o pensamento autístico quanto o pensamento realista podem ser tanto conscientes quanto inconscientes” (Bleuler, 1993, p. 117). Muito curiosamente, Bleuler apresenta o autismo na forma de ideias fixas, cuja realização externa deixa os pacientes indiferentes. Estamos relativamente distantes do que Kanner chamará ulteriormente de “autismo”, ainda que ele empreste diretamente o termo de Bleuler. Um outro ponto parece essencial na concepção de Bleuler: o fato de que o autismo esquizofrênico seja, para ele, um transtorno que aparece num segundo momento, ao cabo de um processo, de forma em todo caso secundária com relação ao transtorno fundamental de associações, a “Spaltung”, na qual ele vê — com Otto Gross e Erwin Stransky — a origem clínica do transtorno. Na esquizofrenia, segundo Bleuler, o autismo aparece como modo radical de introversão. Bleuler introduz no lugar, portanto, o que desde então tem sido chamado de “pensamento autístico”, e que ele acabará chamando de “pensamento desreal” (dereistisches Denken).
O estatuto psicopatológico do autoerotismo freudiano é, pois, marcado por uma incerteza; com efeito, Freud hesitará entre diversas teses enquanto, para Bleuler, o autismo ganha o sentido muito particular de introversão. O termo “autismo” ganhará, sob o impulso de Kanner, um sentido mais radical, ainda que a problemática pulsional não seja, por isso, tratada de modo mais preciso.
Um autismo desde o início, para Leo Kanner
É em 1943 que Kanner descreve, pela primeira vez, o que designa como “distúrbios autísticos do contato afetivo” — descrição-piloto da síndrome que ele nomeia em 1944 como “autismo infantil precoce”. Seu projeto é descrever um tipo de psicose infantil claramente definido, distinto das esquizofrenias infantis, ainda que em 1955 ele não hesitasse em incluir o autismo infantil “no interior da categoria ampla das esquizofrenias” (Kanner, 1955, p. 238). Desejando que fosse dado lugar à sua síndrome, ele a apresenta como uma síndrome específica caracterizada pelas precocidade, sintomatologia, evolução e perturbações das relações afetivas.
O interesse do artigo-piloto de Kanner não se limita somente ao seu valor histórico de descrição de uma nova síndrome. O que nos parece interessante é o procedimento de Kanner, pois ele rompe com uma tradição da psiquiatria da criança, ainda em seus balbucios. Não se trata, para ele, de procurar na criança o que se encontra no adulto; o que ele faz é enunciar um determinado número de traços comuns a essas crianças.
Kanner apresenta onze casos de crianças (oito meninos e três meninas), de quem conta a história do nascimento até a idade de onze anos. Ele extrai “características fascinantes” de cada uma delas e depreende “um sintoma único, até então não descrito e bastante raro, ao que parece, mas que seria, contudo, provavelmente mais frequente do que a raridade dos casos observados indica” (Kanner, 1943, pp. 241-242). Kanner distingue, então, dois traços patognomônicos: a “aloneness” (a solidão extrema) e a “sameness” (uma necessidade de imutabilidade).
Em seu artigo de 1943, Kanner precisa claramente que, “a despeito de notáveis similitudes, esse estado difere em muitos aspectos de todas as outras formas conhecidas de esquizofrenia na criança” (Kanner, 1943, p. 248). Com efeito, escreve ele:
não se trata, como nas crianças ou nos adultos esquizofrênicos, de uma ruptura de relações previamente estabelecidas; não se trata de uma “reclusão” que sucede uma participação. Existe, de início, um retraimento autístico extremo que, cada vez que é possível, faz negligenciar, ignorar, recusar à criança tudo o que lhe vem do exterior. Um contato físico direto, um movimento ou um barulho que ameaça interromper esse isolamento são tratados “como se não existissem”; se isso não é suficiente, então são dolorosamente sentidos como intrusões perturbadoras. (Kanner, 1943, p. 242).
Assim, Kanner define a síndrome autística como uma entidade à parte com total autonomia própria. Para ele, a reclusão implica um retraimento de si depois de uma comunicação prévia; porém, as crianças autistas jamais comunicaram. Com efeito, “desde o início de suas vidas, essas crianças se encontram incapazes de estabelecer relações de modo normal com as pessoas e as situações”. Os pais relatam que seus filhos sempre foram “autossuficientes, como que numa casca, mais felizes quando ficavam sozinhos, agindo como se as pessoas não estivessem ali, dando impressão de uma sabedoria silenciosa” (Kanner, 1944, p. 211). Muito cedo os pais de Donald observaram que é quando o deixavam sozinho que ele ficava “mais feliz” — ele parece “bastar a si próprio. Não mostra afeição quando o acariciam; é indiferente às idas e vindas das pessoas e nunca parece contente em ver seu pai, sua mãe ou um coleguinha. Parece se fechar em sua casca e viver no interior de si mesmo, praticamente” (Kanner, 1944, p. 218).
Perto de trinta anos depois de sua descrição-piloto do autismo infantil precoce, Kanner explica as razões pelas quais manteve o termo “autismo infantil precoce” para nomear sua síndrome. Em 1973, Kanner insiste novamente na precocidade quanto ao aparecimento dos transtornos: “em minha pesquisa por um nome apropriado escolhi o termo ‘autismo infantil precoce’, acentuando assim o período das primeiras manifestações e a acessibilidade limitada das crianças” (Kanner, 1973, p. 94). Kanner reconhece que a escolha desse termo não é completamente conveniente, mas indica que não encontrou outro mais adequado:
essa definição não dá totalmente conta da posição de nossos pacientes. A reclusão implica num retraimento de si depois de uma comunicação prévia. Essas crianças nunca comunicaram. Elas começaram sua existência sem os indícios universais de resposta infantil. Isso é evidente desde o primeiro mês de vida, pela ausência de reação antecipatória habitual quando nos aproximamos das crianças para pegá-las nos braços e pela falta de adaptação postural à pessoa que vai pegá-las. Elas não se fecham ao mundo exterior como tal. Ao passo que se afastam do contato afetivo e comunicativo com as pessoas, desenvolvem uma notável relação com o entorno inanimado. Elas podem se agarrar obstinadamente às coisas, entrar em êxtase quando brinquedos estão em movimento ou giram ao redor delas, e ficar com raiva quando objetos não se submetem facilmente ao desempenho esperado. Com efeito, são de tal modo inquietas com o mundo exterior que ficam atentas com uma vigilância intensa para terem certeza de que seu entorno permaneça imutável, que a totalidade de uma experiência seja renovada nos mínimos detalhes, frequentemente numa identidade fotográfica e fônica […] tudo isso não parece estar de acordo com o critério de Bleuler para o autismo. Não se trata de uma reclusão no sentido corrente dessa palavra, mas de um tipo específico de contato com o mundo exterior[, mas,] apesar disso, eu era incapaz de encontrar uma expressão concisa que fosse mais apropriada. (Kanner, 1973, pp. 94-95)
Kanner justifica, então, a escolha do termo “autismo” indicando que os transtornos dessas crianças, que aparecem desde o início, são bastante próximos daqueles da esquizofrenia, que aparecem mais tardiamente. O termo “autismo” permite, então, que Kanner insista no “distanciamento do mundo exterior” para a criança autista. Logo, ele nomeia a síndrome e um dos seus sintomas fundamentais com o mesmo termo. Assim o autismo é, ao mesmo tempo, um transtorno relacional segundo a definição dada por Kanner, e, do ponto de vista fenomenológico, uma solidão excessiva (Kanner, 1946, pp. 242-246).
Com efeito, mesmo nos mais precoces casos conhecidos de entrada na esquizofrenia — o que inclui, para Kanner, a demência precocíssima de Sante de Sanctis e a demência infantil de Heller —, as primeiras manifestações observáveis foram precedidas por dois anos, ao menos, “de desenvolvimento normal, e os estudos de caso insistem especificamente acerca da mudança mais ou menos gradual do comportamento do paciente” (Kanner, 1943, p. 248). Kanner utiliza, então, a categoria clínica empregada por Bleuler, invertendo-a: enquanto Bleuler considera o autismo uma consequência tardia dos processos esquizofrênicos, para Kanner trata-se de um “autismo primário”, um “autismo desde o início”.
Esse ponto capital de “autismo desde o início” se presta a inúmeras confusões. Ainda hoje ele é mal compreendido. Com efeito, Kanner não relaciona o inatismo a uma causa orgânica, nem a apreende como tradução de um déficit inato da ordem perceptiva, psíquica ou intelectual. Ele afirma que essas crianças se encontram livres de anomalias orgânicas e que são inteligentes. Essa perturbação inicial, tal como descrita por Kanner, teria antes mesmo de ser aproximada de uma forma de “não consentimento” ao Outro, de não consentimento de se resignar ao Outro. Esse “não consentimento” ao Outro persiste ao longo dos anos. O que o autista recusaria seria, então, o assujeitamento, ou seja, o consentimento à “falta ao ser”. Logo, nenhuma deficiência do organismo, nenhum erro dos pais ou do entorno, nem nenhum dado de anamnese se mostram ponto de origem do transtorno na descrição-piloto do autismo infantil por Kanner.
“Aloneness” e “sameness”, traços patognomônicos do autismo infantil
A experiência clínica ensina que mais vale abordar as crianças autistas de costas, resguardar-se um pouco, falar cantarolando para fazer como se fosse mais um ruído que uma voz, dirigir-se a elas “sem emoção”. Nesse aspecto, Hans Asperger havia notado que, para se fazer escutar pelas crianças autistas, mais valia não se entreter demais com elas, “nunca se zangar, ficar com raiva, e sim ser gentil ou adaptar-se às crianças”. Ele aconselhava falar “sem se aproximar delas pessoalmente”, com calma e sem emoção e apresentar-se “com uma paixão desbotada” (Asperger, 1944/1998, p. 69). Trata-se, então, de tentar se confundir com o mundo dos objetos.
Essa estratégia responde à constatação de que a criança reage de modo paroxístico (urra, sapateia, arranca os cabelos…) ao encontro com o olhar e a voz ou, mais geralmente, a tudo o que é imprevisível, tudo o que é da ordem do sinal da presença do Outro. Barulhos vindo de fora são tamanhas “intrusões” que desencadeiam, escreve Kanner, “uma reação de horror”, ou ainda “grandes crises de pânico”. Frederick W. tem medo de todos os objetos mecânicos e foge deles correndo. “Há tempos ele teve medo da batedeira de sua mãe e sempre fica petrificado com o aspirador. Os elevadores representam para ele uma experiência terrificante e ele tem medo de piões” (Kanner, 1943, pp. 222-223).
Kanner nota que não são propriamente o barulho ou o movimento que são temidos, mas que “a perturbação provém do fato de que o ruído ou o movimento se introduzem, ou tentam se introduzir no isolamento da criança”. Ao contrário, a criança pode produzir um barulho tão forte quanto aqueles que ela teme, ou deslocar objetos ao seu bem entender. Mas os “barulhos produzidos pela criança, seus movimentos e todos os seus atos são monótonas repetições, tanto quanto suas falas”. “A conduta da criança”, escreve Kanner, “é ainda regida por uma ‘obsessão ansiosa pela imutabilidade que ninguém pode romper, exceto a própria criança, e somente em raras ocasiões’” (Kanner, 1943, p. 245). A “perseguição” de que essas crianças parecem objeto é, então, correlata disso que os autores descrevem como sua tendência ao ritual, aos estereótipos: é preciso que nada se mova, a presença é intrusiva.
Para Kanner, os estereótipos das crianças autistas não são indícios de demência, mas vêm indicar a angústia que lhes é inerente. Ainda que essas crianças sejam “conscientes” da presença das pessoas, nelas não prestam atenção. Para Kanner, “seria falso dizer que elas não fossem conscientes da presença dessas pessoas, porém, na medida em que deixavam as crianças quietas, representavam para elas praticamente a mesma coisa que o escritório, a estante ou o ficheiro de pastas”. Kanner já havia reparado que as crianças autistas fazem como se o Outro não existisse — elas tentam, assim, anular a presença do Outro.
A criança autista “procura romper todo e qualquer laço com o Outro real, presente para além do seu mundo assegurado — no dos viventes imprevisíveis e inquietantes” (Maleval, 2009/2018, p. 307). Paul G. “se comportava como se as pessoas como tais não tivessem nenhuma importância, ou até mesmo como se elas não existissem. Não fazia nenhuma diferença caso falássemos com ele de uma forma amigável ou duramente” (Kanner, 1944, p. 212). A mãe de Frederick W. diz o seguinte:
até o ano passado ele não se interessava pelas outras pessoas em geral. Quando tínhamos convidados em casa, não dava atenção nenhuma para eles. Olhava as criancinhas com curiosidade e daí saía completamente só. Ele agia como se as pessoas definitivamente não estivessem lá, até com seus avós. [… A]s pessoas são um incômodo. Ele afasta as pessoas para longe: se chegam perto demais, ele as empurra. Não quer que eu o toque ou o abrace — mas a mim ele vem tocar. (Kanner, 1944, p. 223).
Para Kanner, essa presença “intrusiva” do Outro se manifesta sobretudo a propósito da comida, que ele qualifica como “primeira intrusão” na vida da criança autista. Ele observa que essas crianças, “as quais desejam ansiosamente rejeitar o mundo exterior, traduzem essa rejeição por uma recusa da comida […], encadeando severos distúrbios alimentares desde o começo de suas vidas” (Kanner, 1944, p. 244).
No artigo de 1943, entre as onze crianças, seis apresentaram dificuldades alimentares. Donald T., por exemplo,
recebeu aleitamento misto: sua mãe o alimentou no seio, complementando sua alimentação por meio de mamadeiras até o fim do oitavo mês; as mudanças de leite eram frequentes […], comer sempre foi problema: Donald jamais teve um apetite normal e nunca ficou tentado ao ver doces e sorvetes. (Kanner, 1944, p. 217)
Barbara K., por sua vez,
mamava pouco no seio e foi colocada na mamadeira em torno do fim da primeira semana. Parou totalmente de ingerir alimentos aos três meses de idade. Foi alimentada através de sonda cinco vezes por dia até a idade de um ano. Daí começou a comer, mas ainda teve bastante dificuldade até os 18 meses. (Kanner, 1944, p. 228)
Kanner interpreta a recusa ao alimento como recusa a entrar em contato com o mundo. Desde os primeiros trabalhos de Freud, a alimentação não pode mais se sustentar como uma simples função de ingestão e assimilação; o que está em causa é, isso sim, um objeto pulsional, o objeto oral, que tem de se inscrever no circuito da demanda.
“O que é uma demanda oral?”, interroga Lacan.
É a demanda de ser alimentado. Que se dirige a quem, a quê? Ela se dirige a este Outro que espera e que, neste nível primário da enunciação da demanda, pode realmente ser designado como aquilo que chamamos de lugar do Outro. […] [Assim,] toda demanda, pelo fato de ser fala, tende a se estruturar no seguinte: no fato de que ela atrai do outro sua resposta invertida. Ela evoca, por força de sua estrutura, sua própria forma transposta segundo uma certa inversão. Por força da estrutura significante, à demanda de ser alimentado responde, assim […], no lugar do Outro […], a demanda de se deixar alimentar. (Lacan, [1960-1961]1991/2010 p. 251)
A demanda oral tem um outro sentido que não a satisfação da fome:
a partir do momento em que a necessidade é dita; a partir do momento em que há uma demanda, a necessidade não se resume à sua resposta, isto é, à contribuição concreta do que ela supõe. Dito de outro modo, o alimento não é equivalente à fome, o alimento não anula a fome. (Silvestre, 1997, p. 13)
A demanda, como definida por Lacan, implica um terceiro termo que é o desejo enigmático do Outro. Por isso, o circuito da demanda,
antes de mais nada, é para o sujeito que sua fala é uma mensagem, porque ela se produz no lugar do Outro. Que, em virtude disso, sua própria demanda provenha dele e seja formulada como tal não significa apenas que ela está submetida ao código do Outro. É que é desse lugar do Outro (ou mesmo de sua época) que ela data. (Lacan, [1958]1966/1998, p. 640).
É muito precisamente na demanda e na pulsão oral que estão implicados o estatuto do grito e o da resposta, ou não, do Outro. Com efeito, que o grito se articule como um chamado depende da recepção acusada que o Outro dá disso: “Antes, ele se comprazerá em encontrar ali as marcas de resposta que tiveram o poder de fazer de seu grito um apelo. Assim ficam circunscritas na realidade, pelo traço do significante, as marcas onde se inscreve a onipotência da resposta” (Lacan, [1960]1966/1998, p. 686). O grito é uma reação às necessidades do organismo que vai se tornar significante por conta da resposta do Outro. Ora, o chamado se mostra impossível para a criança autista, na medida em que ela convoca um segundo significante que deve representar o Outro da fala, com relação a que o sujeito se faria representar por um segundo significante.
Para os autistas, a invasão se situa além do campo da demanda e do desejo. Ele se situa no nível da pura presença do Outro que é experienciado em excesso, do lado do olhar ou da voz. Assim, quem se depara com uma criança autista só pode ser atingido pela estranheza de seu olhar. Ela tem um olhar vazio, cego, sobre o mundo vivo que a rodeia. As crianças autistas evitam o olhar; elas nunca cruzam o nosso olhar. Paul G. “nunca levantava os olhos para olhar o rosto das pessoas” (Kanner, 1944, p. 212). O que impressiona, de início, a propósito de Marie-Françoise, “é seu olhar que erra no vazio, perdido; ele está morto e dá a impressão de um muro”, escreve Rosine Lefort (Lefort & Lefort, 1980/1984, p. 177). Marie-Françoise está “num mundo em que a relação com o Outro e com o objeto só pode se fazer através da aderência ao seu olhar, sem acomodação. Ela encontra nele o real do impossível — daí sua ausência de olhar tão típica do autista” (Lefort & Lefort, 2007, p. 18). O objeto olhar, com relação ao Outro, está “ausente”: “seus olhos (de autistas) parecem ver tudo, exceto aquele que com ele fala”, escreve Temple Grandin.
Eles olham para longe durante horas, especialmente pela janela. A criança autista pode ficar fascinada por uma fenda na parede, um furo, o sifão de um lavabo ou uma torneira que pinga. Susan T., nota Kanner (1951, p. 24), fica olhando as fissuras no teto e nas paredes. O que a captura não são as representações, mas “puros fenômenos”, como a descontinuidade de uma superfície, a simetria, o aparecimento de uma marca, de uma fenda. O momento em que, num tratamento, a criança olha pela primeira vez é um momento importante.
Odile Bernard-Desoria, a propósito de um autista, observa que a primeira vez em que viu que ele a estava olhando foi um momento em que, aborrecida, ela estava completamente alhures. Ela estava se ausentando completamente; tinha anulado de tal modo os sinais de sua presença que, saindo de sua distração, pôde pela primeira vez ver a criança que a olhava.
Jean-Robert Rabanel relata o caso de uma criança autista de doze anos numa instituição. O olhar do Outro é insuportável para ela e provoca crises de pânico. Rabanel teve a intuição de interpor uma tela, por intermédio de uma revista, entre seu próprio olhar e o da criança. A criança, então, se acalmou e instaurou-se um tipo de jogo de esconde-esconde, mas com um prolongamento inesperado. Com efeito, a partir daquele momento, a criança autista se apresenta na instituição com uma roupa na cabeça e um livro diante dos olhos. Amparando-se nessa tela como tentativa de tratar o olhar do Outro, ela interpela as outras crianças. Esse “improviso” permite a ela, vestida assim, fazer “laço social”.
Marie-Françoise, por sua vez, aplica objetos no olho; ela chega bem perto dos olhos de Rosine Lefort ou, ainda, tenta enfiar uma colher no olho dela. Ela também pode extrair do Outro um objeto real que tem a ver com o objeto olhar, os óculos, e interpor entre seu olho e o marinheiro, “seu duplo que a defende do significante do objeto de meu corpo”, escreve Rosine Lefort (Lefort & Lefort, 1980/1984, p. 233). Da mesma forma, o sujeito apreende pela voz do Outro algo de seu desejo, “uma presença exterior a ele mesmo e cheia de estranheza” (Leiris, 1948). Marie-Françoise é “sensível à escuta de minha voz, escreve R. Lefort, mas emite fenômenos agressivos quando falo; ela quer me fazer ficar calada, única forma que ela tem de me anular. A fala do Outro redobra sua presença real” (Lefort & Lefort, 1997, p. 21).
Algumas crianças autistas evitam a voz. Eles não utilizam a sua como suporte para demandar algo, para se dirigir ao Outro. Outras utilizam a voz, mas não fazem com que ela sirva de objeto de troca com o Outro. Então tagarelam, repetem as mesmas palavras, os mesmos fonemas, de maneira contínua, feito uma música, feito um barulho de fundo. Algumas crianças autistas repetem indistintamente as palavras, as frases do Outro, com exatamente a mesma entonação, qualquer que seja o enunciado. Noutros casos, a criança autista exige que o Outro repita determinadas frases: assim, Donald T.
não saía da cama depois da sesta sem que lhe dissessem: “Bu, diz: ‘Don, quer descer?’” e sua mãe (que ele chamava de “Bu”) obedecia. Donald saía, então, de sua cama. […] Donald continuava: “Agora diz: ‘Muito bem’”. Novamente, a mãe devia obedecer, senão Donald soltava um grito desesperador. (Kanner, 1951, p. 26)
Do objeto voz, Grandin diz justamente o que ele é para ela: “Às vezes eu ouvia e entendia, mas outras vezes os sons ou a fala chegavam ao meu cérebro como o barulho insuportável de um trem de carga a toda a velocidade” (Grandin, 1989/1999, p. 147). Em outras circunstâncias, era capaz de se isolar como se fosse surda. A criança autista se mostra, portanto, bastante ocupada com a manipulação dos objetos pulsionais, que são como que tratamentos do que há de insuportável nos sinais da presença do Outro.
As duas principais preocupações da criança autista como definidas por Kanner são, por um lado, a manutenção da solidão (aloneness), ocupando-se do Outro; e, por outro lado, a busca de uma imutabilidade de seu entorno (sameness), entregando-se à manutenção de referências fixas:
a integralidade de uma experiência que, do exterior, acontece com a criança deve ser repetida, frequentemente com todos os seus detalhes constitutivos, numa completa identidade fotográfica e fonográfica. Nenhuma parte dessa totalidade pode ser mudada no que concerne à forma, à ordem ou ao espaço. A menor mudança de disposição é algo tão mínimo que dificilmente é perceptível por outros, mas pode provocar, no entanto, uma violenta explosão de raiva. (Kanner, 1951, p. 23)
Malcolm H., quando levado para passear, insiste bastante em percorrer o mesmo caminho percorrido em passeios anteriores, e resiste fortemente para que não haja nenhuma mudança no percurso. Por isso, nota Kanner, as crianças autistas mostram-se muito inquietas quando veem algo escondido ou incompleto:
geralmente John F. dava pouca ou nenhuma atenção para bonecas. Quando notou que estava faltando a touca numa delas, pediu imediatamente “o chapéu”; pegou a boneca, subiu e desceu, correndo com ela, e ficou exigindo o chapéu, gritando. Não sossegou até que a touca lhe fosse dada. Assegurou-se de que o chapéu se ajustava corretamente, daí colocou a boneca de volta e perdeu completamente o interesse por ela. (Kanner, 1951, p. 24)
O exame da imutabilidade vem então revelar o empenho do sujeito em colocar ordem num mundo caótico. A classificação dos objetos se revela uma tentativa da criança autista de ordenar o mundo:
Uma vez ajuntados pela criança de uma determinada maneira, cubos, esferas ou bastões são reagrupados mais tarde exatamente da mesma forma […]. A memória dessas crianças é fenomenal nesse aspecto. Depois de muitos dias, um monte de cubos podia ser muito surpreendentemente ordenado por Donald T. e Susan T., precisamente da mesma forma, voltados com a mesma cor, com cada imagem ou letra da face superior, em cada um deles, voltada para a mesma direção de antes. A ausência de um cubo […] era imediatamente notada, e a criança exigia imperativamente que a peça que faltava fosse colocada de volta. Se alguém pegasse um cubo, a criança se batia para reavê-lo e, batendo a mão que o segurava, entrava em pânico até tê-lo de volta. Daí, na calma repentina que sobrevinha à tempestade, ela retornava ao modelo e recolocava o cubo. (Kanner, 1951, p. 24)
Isso dá indicações sobre aquilo de que a criança autista sofre e sobre o que ela tenta remediar.
Contribuição de Leo Kanner ao estudo dos distúrbios da linguagem no autismo
Em seu artigo inaugural sobre os transtornos autísticos do contato afetivo, Kanner fora pouco eloquente acerca das especificidades linguísticas das crianças autistas. Ele as apresentava de acordo com sua descrição da “aloneness” e como uma forma de introdução à “sameness”. Kanner se contenta, então, em apontar que a linguagem, quando presente, durante anos não parecia servir para transmitir mensagem aos outros (Kanner, 1943, p. 243). Aqui, portanto, é “a função de comunicação […] que parece estar em causa: nenhuma produção de uma significação plausível” (Grollier, 2007, p. 430). Isso contrasta fortemente com a capacidade que esses sujeitos possuem de nomear os objetos, assim como com a sua capacidade de aprender de cor, que era frequentemente acima da média, tornando-os prodígios.
Assim, “quase todos os pais relataram […] que as crianças tinham aprendido muito precocemente a repetir um número excepcional de cantigas, orações, listas de animais, o rol dos presidentes, o alfabeto de trás para frente, e mesmo canções de ninar em língua estrangeira […]. A excelência da faculdade de memorização, associada à incapacidade de utilizar a linguagem de outra maneira, com frequência levaram os pais a empanturrá-las com poesia, termos zoológicos e botânicos, títulos de música, nomes de compositores que apareciam em discos e outras coisas parecidas. Assim a linguagem — que as crianças não utilizavam para comunicar — foi, desde o começo, consideravelmente desviada para se tornar um exercício de memória independente, sem nenhum valor semântico, nem conversacional, ou comportando graves distorções. Todas essas palavras, cifras ou poemas […] dificilmente podiam ter mais sentido para uma criança de 2 ou 3 anos do que teria, para adultos, um conjunto de sílabas sem significação. (Kanner, 1943, p. 243)
Assim, quando a criança autista consente em falar não é para dizer, para tomar a fala em seu nome.
Em 1946, em seu artigo intitulado “A linguagem metafórica e despropositada no autismo infantil precoce”, Kanner (1946, pp. 242-246) dá ênfase aos enunciados das crianças autistas a partir dos quais parece “poder apreender algo disso que faz o estabelecimento de um laço social na criança autista” (Grollier, 2007, p. 430). Nesse texto, os distúrbios de linguagem não são mais encarados sob o ângulo da preservação do mesmo (literalidade, ecolalia, inversão pronominal), mas parece que se amplia a extensão a fenômenos paradoxais: as crianças autistas parecem quase mudas, porém são capazes de “proferir frases inteiras em situações de urgência” (Druel & Sauvagnat, 2002, p. 195). Trata-se de situações em que as estratégias protetoras do sujeito caem, fazendo-o “abandonar, por um instante, a sua recusa em convocar o Outro e a sua recusa em inscrever a voz na fala” (Maleval, 2009/2018, p. 91).
Por exemplo, a primeira frase pronunciada por Birger Sellin (1994, p. 24) é “me dá minha bola!”, quando seu pai estava vindo pegar um de seus objetos autísticos. Um garotinho de 5 anos de idade “que ninguém nunca ouvira pronunciar uma palavra sequer em toda a sua vida, incomodou-se quando a pele de uma ameixa colou em seu palato; ele exclamou, então, claramente: ‘Tira isso de mim!’, depois retornou ao seu mutismo anterior” (Berquez, 1983, p. 107). Todas essas frases têm em comum a presença do sujeito da enunciação. Só numa situação de extrema angústia tal enunciado pode se produzir; ele é então “vivido como uma mutilação, uma vez que coloca em jogo não somente a alteridade, mas uma cessão do objeto do gozo vocal ao gozo do Outro” (Maleval, 2009/2018, p. 93).
Kanner vai insistir, então, na ausência de diferença — do ponto de vista da utilização da linguagem — entre as crianças autistas que falam e as que não falam. Isso se deve, precisa ele, à ecolalia. Com efeito, quando finalmente as frases são formadas, elas permanecer durante um bom tempo como combinações de palavras ouvidas e repetidas “feito um papagaio” (Kanner, 1943, p. 243). Assim, Charles N. “repetia o que outra pessoa estava dizendo […] toda sua conversa é uma réplica de tudo o que lhe pôde ser dito” (Kanner, 1944, p. 213). O sentido de uma palavra torna-se inflexível e só pode ser utilizado com a conotação adquirida na origem.
Apenas a repetição parece ser possível para os sujeitos em sua relação com o significante: é assim que, quando se trata de expressar uma concordância, o acesso ao “sim” é impossível a eles, e devem repetir a frase dirigida. Desse modo, “Donald aprendeu a dizer “sim” quando seu pai lhe disse que o colocaria nos ombros caso dissesse “sim”; essa palavra, consequentemente, passou a “significar” apenas o desejo de estar sobre os ombros do pai. Foram necessários meses até que ele chegasse a separar a palavra “sim” dessa situação específica, e muito mais ainda até poder utilizá-la como termo geral de afirmação” (Kanner, 1944, pp. 243-244).
Kanner foi o primeiro a insistir na presença de dois tipos de ecolalia no autismo. Antes de seus trabalhos sobre o autismo, a ecolalia geralmente era incluída nas estereotipias. Decerto Kanner situou o fenômeno como uma característica da “sameness”, mas ele o discute principalmente quando tenta especificar os distúrbios da linguagem no autismo infantil. Em seguida, autores anglo-saxões debateram para saber se a ecolalia consiste simplesmente numa forma automática e repetitiva de articulação, não colocando em jogo a interação, ou se, pelo contrário, trata-se de uma “tentativa de manter o contato social”, como parecia pensar Kanner em 1973.
Com efeito, Kanner considera a ecolalia adiada ou “retardada’ um estádio intermediário entre a ecolalia imediata e uma tentativa de interação. Na ecolalia imediata as palavras ou frases são imediatamente repetidas em eco. Um dos efeitos da ecolalia é a utilização do “sentido literal”. Com efeito, crianças autistas utilizam a repetição integral contra uma pergunta que lhes é endereçada. Por exemplo, à pergunta “Você quer chocolate?” a criança vai dizer “Você quer chocolate”. Não há inversão, mas uma repetição literal da pergunta que foi feita. Essa “literalidade” serve, aliás, para que Kanner explique a reversão pronominal característica do autismo: com efeito, a ausência de frases espontâneas e a repetição ecolálica desencadeiam, segundo ele, um fenômeno gramatical particular em cada uma das crianças “falando”: os pronomes pessoais são repetidos exatamente como ouvidos, sem alteração para se adaptarem à nova situação. Por conseguinte, elas sempre vão falar de si mesmas dizendo “você” e da pessoa a quem se dirigem dizendo “eu”.
Na ecolalia “retardada” — mais frequente, segundo Kanner — as frases são “armazenadas” pela criança e repetidas mais tarde. A ecolalia “retardada” participa, para ele, na emergência da linguagem inapropriada, “despropositada”. Com efeito, essas frases não parecem ter relação significativa com a situação em que são expressas. Tais coisas ditas pela criança são qualificadas como “absurdas”, “estúpidas”, “incoerentes” e “despropositadas” pelos pais, médicos e educadores infantis. “É principalmente o referencial privado, original”, sublinha ele, “que fazia com que essas substituições parecessem estranhas” (Kanner, 1946, p. 244).
Por exemplo, Paul G. grita palavras ou expressões que não podem ser relacionadas com a situação do momento: “as pessoas no hotel”; “você machucou a perna”; “bombom foi embora, bombom tá vazio”, “você vai cair da bicicleta e bater a cabeça” (Kanner, 1944, p. 212). Essas frases têm, contudo, um sentido preciso que Kanner encontra com o tempo. Esse sentido está associado a uma situação anterior e é repetido quando a criança se vê novamente confrontada à mesma situação, a um acontecimento ou objeto associados a essa situação inicial.
O exemplo mais impressionante é o desta criança, chamada Paul G., que diz, aos 5 anos de idade: “Não joga o cachorro da sacada.” Essa frase que surge “despropositadamente” é utilizada pela criança para toda situação em que ela deve jogar alguma coisa. Kanner soube que, três anos antes, Paul havia jogado um brinquedo em forma de cachorro pela sacada de um hotel em Londres, onde a família estava hospedada. Sua mãe, cansada de recuperar o brinquedo, diz a ele, com certa irritação: “Não joga o cachorro da sacada”. Depois desse dia, Paul, cada vez que tentava jogar alguma coisa, utilizava essas palavras para se dar advertências e se repreender.
Paul G. diz “Peter comedor” tão logo vê uma caçarola. Kanner pôde reconstruir a associação quando soube que a mãe da criança, sempre que cozinhava, cantarolava a canção “Peter, Peter, comedor de abobrinha” para manter o filho calmo. Um dia, enquanto ela cantava a canção, deixou cair uma caçarola. Kanner dá, assim, vários exemplos “em que um enunciado funciona como pontuação de um acontecimento” (Grollier, 2007, p. 431). Não se trata, aí, de uma interlocução que se dirige a outrem. A ecolalia adiada das crianças autistas deveria ser aproximada, segundo François Sauvagnat, do
uso de neologismos semânticos feito pelos delirantes adultos, [na medida em que neologismos] permitem estruturar uma experiência delirante, incitar um esboço de sistematização e, com isso, às vezes solidificar uma compostura do corpo. Nesse sentido, essas ecolalias de valor neológico são bastante notáveis […], e o jovem sujeito as utiliza frequentemente em voz alta de modo repetitivo quando se trata, para ele, de se orientar numa situação ambígua. (Sauvagnat, 1999-2000, pp. 50-51)
De sua parte, com referência à terminologia poética, Kanner qualifica essas expressões inapropriadas de “substituição metafórica”; todavia, em vez de elas se assentarem em “substituições aceitáveis e aceites como as encontradas na poesia e na fraseologia da conversação, estão enraizadas nas expressões concretas, específicas, pessoais da criança que as utiliza” (Kanner, 1946, p. 244), cuja “semântica só é transferível na medida em que um ouvinte pode, por seus próprios esforços, encontrar a fonte da analogia” (Druel & Sauvagnat, 2002, p. 197). Esse fenômeno de substituição, precisa Kanner, seria comum a todas as crianças autistas.
Que Kanner qualifique como metafórica a “linguagem inapropriada” de sujeitos autistas não é particularmente surpreendente, se acaso nos lembrarmos que a tradição clássica considera a metáfora a figura de retórica por excelência — e que Aristóteles, por exemplo, confere a ela uma extensão particularmente ampla. Evoquemos brevemente a definição dada pelo filósofo grego em sua Poética, separando quatro tipos de metáforas, para tentar apreender qual a inflexão realizada por Kanner: “metáfora é a designação de uma coisa mediante um nome que designa outra coisa, {transporte} que se dá ou do gênero para a espécie, ou da espécie para o gênero, ou da espécie para a espécie, ou segundo uma relação de analogia” (Aristóteles, 384-322 a.C./2017, p. 169)[3].
Kanner, por sua vez, propõe outra definição das metáforas (no plural), como “figuras do discurso mediante as quais uma coisa é substituída por outra com a qual ela apenas parece”; e ele distingue três tipos: a analogia, a generalização e a restrição.
— A “metáfora por analogia substitutiva”: uma palavra ou uma expressão é colocada no lugar de outra. Gary T., aos cinco anos, designa um cesto de pães como “feito em casa”. Donald T., aos cinco anos de idade, rabisca com lápis e diz: “Annette mais Cécile dá violeta”. Donald tem cinco garrafas de pintura. Ele as designa uma a uma com nome das quíntuplas Dionne. Azul vira Annette, e vermelho, Cécile. Em seguida, “Annette” se tornou sua palavra para azul, e “Cécile”, para o vermelho. Violeta não era uma das cinco cores, permanecia violeta.
— A “metáfora por generalização”: Totum pro parte. “Não joga o cachorro da sacada” ganha o sentido de autorreprimenda em todos os casos nos quais a criança deve se repreender. Uma criança autista se refere sem parar ao “Mégane vermelho” para designar todo e qualquer meio de transporte. Essa criança empreendeu um longo trabalho de busca e acúmulo de enfeites, depois de classificação, para reduzir o amontoamento, o que lhe permite diferenciar os veículos (Grollier, 2007, p. 431).
— A “metáfora por restrição”: Pars pro toto. A idade de uma das avós de Anthony é 55 anos: ele designa a avó dizendo “55”. Partindo de um anúncio que diz “Blum diz a verdade”, Jay S., a quem se pede que diga a verdade, chama a si mesmo de “Blum”. Donald T., sete anos, a quem se faz a seguinte pergunta: “Se eu for comprar um bombom que custa quatro sous[4] e der dez ao vendedor, quanto de dinheiro vai me sobrar?”, responde: “Vou desenhar um hexágono” e não “6 sous”. Assim, cada vez que lhe pedem para dizer o número 6, ele diz “hexágono”.
Com relação à definição de Aristóteles, a articulação “gênero/espécie” é substituída, em Kanner, pela articulação “todo/parte” — a passagem do todo à parte provocando uma restrição; a da parte ao todo, uma generalização —, enquanto ele conserva a noção de analogia. Dito de outro modo, Kanner faz da metáfora um tipo de sinédoque — instituindo uma relação privilegiada entre a parte e o todo —, isto é, uma figura que teria de se aproximar, na terminologia jakobsoniana, dos mecanismos de contiguidade, isto é, da metonímia.
A partir dos enunciados das crianças autistas, Kanner tentou caracterizar — e isso é precioso — os distúrbios da linguagem observáveis na clínica do autismo. A partir do ensino de Lacan, propomos esclarecer o trabalho de Kanner e estudar o autismo como um fenômeno de fala. Para a psicanálise, a enunciação é uma das características do significante, é dele que nasce o sujeito: o significante representa o sujeito, “a dimensão da linguagem à qual cada um é alienado por seu S1, que o prende à aparelhagem linguística” (Gueguen, 2006, p. 9). Assim, “sustenta-se sempre na clínica essa inscrição necessária do sujeito na linguagem por um significante que o marca (chamado de “significante-mestre”), alienação necessária a um uso possível da linguagem” (Grollier, 2007, pp. 427-428).
Ora, por definição, um significante só é significante em sua relação com outro significante, o que conduz à seguinte afirmação lacaniana: “o significante representa o sujeito para outro significante”. É na articulação significante, que Lacan escreve S1-S2, que o sujeito aparece. Esse sujeito, que Lacan chama de “sujeito do inconsciente”, é dividido pelo significante — dividido entre o significante que o representa, S1, e os outros graças aos quais ele é significante, ou seja, S2.
A noção de enunciação em Lacan está intimamente ligada à supremacia do significante. Ele insiste quanto à necessidade de ultrapassar o plano do enunciado para descrever a situação verbal. Se a linguística é fundada sobre o conceito de signo como união de significante e significado, a psicanálise lacaniana o definiu como aquilo que representa algo para alguém. Assim, a clínica do autismo não está do lado do sentido, mas do “extrassenso”.
No decorrer das Conferências que ministrou nas universidades norte-americanas em 1975, Lacan definiu a análise como “partida entre alguém que fala, mas que foi advertido de que o seu falatório tinha importância”. A isso Lacan acrescenta:
Os senhores sabem que tem gente, com quem se tem de lidar na análise, de quem obter isso é dureza. Há pessoas para quem dizer algumas palavras não é tão fácil. Chama-se isso de autismo. […] São simplesmente pessoas para as quais o peso das palavras é muito sério e que não estão facilmente dispostas a ficar à vontade com essas palavras”.[5]
Contrariamente à representação habitual da criança autista como uma criança muda, Lacan dará mais ênfase a um uso particular da linguagem, que ele chama de “verborreia”; dito de outro modo, um uso da linguagem caracterizado por uma ausência de posição de enunciação. Assim, em 1975, na sua conferência em Genebra sobre o sintoma, ele dirá: “que vocês tenham dificuldade de ouvir, de dar alcance ao que eles dizem, isso não impede que eles sejam personagens sobretudo verborrágicos” (Lacan, 1975/1985, p. 20). É o que Kanner, de modo pertinente, havia notado quando dizia que as crianças autistas falam “feito papagaio”, ou afirmava antes mesmo a existência da “ecolalia retardada”.
As crianças autistas podem adquirir palavras novas, sem com isso aprender a falar, “no sentido em que a fala testemunhe uma expressividade do sujeito” (Maleval, 2009/2018, p. 88). A criança autista pronuncia palavras, mas não as utiliza. As palavras são “mais emitidas do que faladas”, dificultando para esses sujeitos uma “expressão pessoal” (Williams, 1994/1996, p. 73). Despert observa, com razão, que “falta à voz essa tonalidade emocional que marca o indivíduo, na medida em que ele é ele próprio, e diferente de outros; ela é descrita frequentemente como artificial, particular; falta-lhe expressividade e frequentemente não parece pertencer à personalidade” (Kanner, 1946, p. 245).
Ainda que o sujeito autista tenha dificuldade de falar de si, e de expressar sentimentos íntimos, são sujeitos que frequentemente exasperam o entorno por meio de conversas unilaterais e com perguntas incessantes (Attwood, 2003, pp. 41, 46). “No seu assunto preferido, escreve Tony Attwood (2003, p. 64), o entusiasmo lhes inspira um discurso verborrágico, até mesmo uma verborreia incessante”. Ainda que Temple Grandin tenha apresentado um retardo quanto à aquisição da fala, quando a adquiriu apelidaram-na de “gralha” ou “vitrola”: “ela fazia repetitivamente a mesma pergunta e esperava, com prazer, a mesma resposta; sustentava discursos sem fim sobre assuntos que detinham a sua curiosidade; adorava brincar com jogos de associação de palavras” (Maleval, 2009/2018, p. 89).
O essencial da conversação de Donald T. consistia “em questões de natureza obsessiva para as quais ele incansavelmente encontrava novas variações: ‘quantos dias tem numa semana?, anos, num século?, horas num dia?, horas, em metade do dia?, semanas, num século?, séculos, em meio milênio?’ etc.” (Kanner, 1943, p. 222). Donna Williams descreve outro tipo de verborreia, sublinhando a sua “inexpressividade intrínseca” (Maleval, 2009/2018, p. 89): “as asserções que não tinham relação comigo e que não suscitavam minhas preocupações me despencavam da boca como as gozações de um comediante de music-hall[6]” (Williams, 1992/1992, p. 89). Ela não pode expressar simultaneamente emoções e palavras porque não há articulações do significante com o gozo. Essa ausência de articulação se traduz igualmente por anomalias no manejo da linguagem e na entonação da voz (tom monocórdio, voz entrecortada etc.).
É, com efeito, no significante da identificação primordial, o S1, que vem se fixar o gozo. É pelo significante que o sujeito se fará representar junto a outros significantes (S2) — ele funda a enunciação permitindo que o gozo do sujeito seja conectado à cadeia significante. Na ausência da identificação primordial ao S1, o gozo não pode ser a ele conectado, então o gozo se desloca. Se o sujeito autista busca se comunicar, faz “ele o faz tanto quanto possível de uma maneira que não coloque em jogo nem o seu gozo vocal, nem a sua presença, nem os seus afetos. […] Ele fala sem problemas, contanto que não diga” (Maleval, 2009/2018, p. 90).
A “verborreia” é uma forma de o autista colocar a voz à distância. Do mesmo jeito que ele pode tapar suas orelhas.
A voz enquanto objeto pulsional não é a sonoridade da palavra, mas aquilo que carerga a presença de um sujeito em seu dizer […] [O sujeito autista se protege] de toda e qualquer emergência angustiante do objeto voz. Da sua própria, pela verborreia ou pelo mutismo; da do Outro, pela evitação da interlocução […] A maior parte deles, Asperger já havia observado, obedece melhor se a eles não nos dirigimos pessoal, mas sim indiretamente. A fala pode lhes interessar, contanto que não seja portadora da voz. Daí sua atração pelo papo-furado vazio e a música da fala. A verborreia autística é um tranquilizador exercício de fala sem voz. (Maleval, 2009/2018, p. 91)[7]
Parece que uma das características estruturais que determina a solidão autística é a de recusar “ceder o objeto do seu gozo vocal” (Maleval, 2009/2018, p. 94), de tal modo que ele recusa a representação de seu ser no campo do significante e, com isso, situar-se em posição de enunciação. A recusa radical de ceder ao gozo vocal põe em causa a inscrição do sujeito no campo do Outro. “O que me prende ao Outro, sublinha Jacques-Alain Miller, é a voz do campo do Outro” (Miller, 1989, p. 184). Quando essa amarração não se produz, o S1 não cifra o gozo e não representa o sujeito junto a outros significantes. A carência da fixação do gozo no significante pelo qual se opera a identificação primordial encontra-se, então, no princípio de um dos dois sintomas fundamentais descrito por Kanner: a “aloneness”. Assim, os sujeitos autistas encontram soluções para entrar em comunicação sem colocar em jogo o gozo vocal: a linguagem dos signos ou dos gestos; a escrita ou, ainda, a comunicação facilitada. Para os que falam corretamente, como os autistas de alto rendimento, fazem-no sem dizer. Nesse caso, estamos no mundo da “verborreia”.
Essa dificuldade linguística da criança autista verifica-se muito precocemente. Com efeito, sublinha Maleval, “todos os estudos convergem para constatar que [a balbuciação das crianças autistas] não possui a riqueza da […] das outras crianças” (Maleval, 2009/2018, p. 105). É um sujeito que não é introduzido na linguagem passando pelo balbucio — este ou está ausente, ou é pobre ou estranho. Quando está presente, aparece o mais frequentemente de forma monótona, sem entusiasmo, sem inflexão intencional (Ricks & Wing, 1976, p. 133).
O balbucio não se presta à comunicação, contrariamente aos gritos e choros, mas já testemunha “uma captura do sujeito numa relação com o Outro da linguagem” (Maleval, 2009/2018, p. 106). Quando no balbucio se opera a alienação primeira pela qual o gozo do sujeito se prende à linguagem, ele se identifica ao que Lacan chama de “lalíngua”, tanto que lalíngua vem designar “uma materialidade significante destacada de toda e qualquer significação e de toda e qualquer intenção de comunicação” (Maleval, 2009/2018, p. 105). “Lalíngua” é constituída por significantes “que não convocam nada”, S1 ou S2.
A entrada no significante se faz na ocasião da cifragem do gozo em lalíngua.
A pobreza ou ausência de balbucio dos sujeitos autistas atestam certa carência na mortificação do gozo do vivo operada pela linguagem, o que eles experimentam como uma dificuldade intrínseca de enlaçar os afetos e a fala […] Com isso, não está dado à criança autista, de início, saber que os sons pronunciados pelas pessoas que a rodeiam estão em conexão com uma apreciação emocional. (Maleval, 2009/2018, pp. 108-110)
Assim, “quando o clínico sabe apagar sua presença e sua enunciação — com uma indiferença calculada, com palavras indiretas, cantaroladas, murmuradas, faladas ao vento, registradas em gravador etc. —, é mais fácil entrar em contato com os autistas (Maleval, 2009/2018, pp. 111).
Uma “relação hábil com os objetos” (Leo Kanner)
Diversas vezes Kanner, em seus escritos, insiste no seguinte: a criança autista
tem boas relações com os objetos; interessa-se por eles e pode brincar com eles, empolgadamente, durante horas. Pode ser indulgente com eles ou ter raiva, se, por exemplo, não puder acomodá-los num determinado lugar. Quando está com eles, tem a prazerosa sensação de um poder e de um controle incontestes. (Kanner, 1943, p. 246)
Ela “pode manipulá-los […]. É hábil e ágil no manejo deles” (Kanner, 1954, p. 379). Assim, Paul G., com a idade de cinco anos, entrando num cômodo, “se atirava por sobre os objetos e os utilizava corretamente. Ele não tinha um comportamento destrutivo e tratava os objetos com cuidado, até mesmo com afeição” (Kanner, 1944, p. 212).
Tustin (1977, p. 69) faz a mesma constatação, insistindo em diferenciar o objeto autístico do objeto transicional como descrito por Donald Woods Winnicott: “o objeto autístico”, escreve ela, “é um objeto percebido como totalmente ‘eu’, enquanto o objeto transicional é uma mistura de ‘eu’ e ‘não-eu’, e a criança tem vaga consciência disso”. Por outro lado, a criança autista utiliza os objetos autísticos de um modo que não corresponde à sua função; ela não brinca com esse objeto, sublinha Tustin (1977, p. 119).
Contrariamente ao objeto transicional, uma das características do objeto autístico é a de ser rígido (brinquedos mecânicos, conchas, trens, carros…):
As crianças autistas passeiam frequentemente com seus objetos rígidos, ou tentam justamente se colar a tais objetos, a fim de se sentirem, elas mesmas, rígidas e fortes. Para essas crianças, as sensações de rigidez produzidas por esses objetos são mais importantes do que as funções para as quais eles normalmente foram concebidos. Sua principal característica é que a criança sente como se eles fizessem parte do corpo delas. Assim, um menino de seis anos […] arrastava para todo lado um grande chaveiro, com diversas chaves, que ele sentia como parte do próprio corpo, garantindo a sua segurança […]. Outras crianças guardam consigo uma pequena locomotiva; não brincam com ela, mas a colocam debaixo do travesseiro. Da mesma maneira, algumas guardam consigo, na mão fechada, um carrinho. Ele parece constituir uma parte suplementar do corpo delas […] dá a elas uma sensação de segurança. A “segurança” é, assim, a nota dominante desses objetos autísticos rígidos. (Tustin, 1992, p. 126)
Tustin dá ênfase à função tranquilizante e protetora de objetos autísticos. Williams expressa muito precisamente: “para mim as pessoas que eu adorava eram objetos, e esses objetos (ou as coisas que os evocavam) eram minha proteção contra as coisas de que eu não gostava, isto é, as outras pessoas […]. Comunicar por meio dos objetos não oferecia perigo” (Williams, 1992/1992, p. 23). Parece, então, que o objeto autístico tem função de preservar a criança autista da “intrusão” — termo utilizado por Kanner — do “devastador” desejo do Outro. Assim, para Tustin, a essencial razão de ser dos objetos autísticos é suprimir as ameaças de ataque corporal:
apoiando nesses objetos autísticos, ela evita tomar consciência de sua separação corporal e constitui em si a ilusão de poder resistir às invasões provenientes do mundo exterior. É com essa finalidade que ela polariza sua atenção para essas sensações corporais familiares mais do que para o estranho mundo exterior não-si. (Tustin, 1986, p. 124)
A perda do objeto autístico, precisa Tustin, é vivida pela criança autista como perda de uma parte de seu corpo. A criança poderá, todavia, substituir esse objeto autístico por outro, que ela não diferenciará do primeiro.
Outra característica do objeto autístico é a possibilidade, para a criança autista, de colocá-lo em movimento:
Donald e Charles começaram, no seu segundo ano, a exercer esse poder girando todo objeto que pudesse ser girado; e pulando de pés juntos, em êxtase, eles olhavam os objetos girando para todo lado. Frederick pulava de pés juntos e se levantava em grande júbilo quando jogava boliche e via os pinos caindo. (Kanner, 1944, p. 216)
Quando estava com um ano e meio, Charles N. “começou a fazer brinquedos, garrafas e potes rodopiarem. Ele tinha muita destreza manual na aptidão de fazer girar os cilindros. Olhava-os, ficava muito excitado e pulava de alegria” (Kanner, 1944, p. 213). Richard, por sua vez,
era fascinado pelas luzes e pelos objetos rodopiando sobre si mesmos, e neles fixava o olhar, rindo, batendo palmas e dançando na ponta dos pés. Ele fazia os mesmos movimentos escutando música […]. Ficava excessivamente grudado a um carrinho que segurava na mão, dia e noite, mas não brincava nunca de maneira imaginativa com ele, nem com nenhum outro brinquedo […]. Também podia ficar girando em círculos sem objetivo. (Spitzer et al., 2008, p. 267)
Quando criança, Daniel Tammet passava grande parte do tempo numa caixa de areia “amontoando e daí espalhando a areia, pois cada um dos grãos me fascinava”, escreve ele. “Daí me veio a fascinação pelas ampulhetas […] e eu me lembro de ter olhado, nas ampulhetas, grãos de areia caírem uns depois dos outros, enquanto, ao meu redor, as crianças brincavam entre si” (Tammet, 2006, pp. 28-29). A ocupação preferida de Birger Sellin consiste em fazer escorregar, “por horas sem fim, bolinhas de gude e miçangas entre seus dedos. Ele é capaz de se entregar a essa atividade com a mesma intensidade tanto num jardim quanto num parquinho, substituindo as bolinhas por areia, que ele deixa escorrer por entre os dedos” (Sellin, 1994, p. 23). Por sua vez, Stanley sempre manifestou
particular interesse pelas coisas mecânicas. Havia, por exemplo, […] um letreiro de cerveja representando um robô numa bicicleta. Esse robô era animado por um movimento incessante, vinte e quatro horas por dia. Stanley sempre pedia aos pais para o levassem lá, onde ele pudesse ver ‘o homem de bicicleta’ […]. Stanley movia as pernas como se estivesse ele próprio sobre uma bicicleta. Girava os braços sem razão aparente e bem do jeito de um robô. Comportava-se igualmente de modo mecânico, robotizado […]. (Mahler, 1977, p. 98)
A particularidade desses objetos autísticos é “possuir uma vitalidade, uma dinâmica própria” (Maleval, 2003, p. 198). Kanner havia notado que as crianças autistas não distinguem as pessoas dos objetos; assim, “elas se colam contra um muro, ou uma parte dura do corpo de alguém, como se fosse de um objeto inanimado, ou ainda colam suas costas às pessoas” (Tustin, 1992, p. 35). Paul G. “tratava [as pessoas], ou sobretudo as partes de seus corpos, como se fossem objetos. Ele utilizava uma mão para conduzi-lo” (Kanner, 1944, p. 212). Outras crianças autistas seguravam a mão de um adulto para fazê-lo efetuar um gesto que elas próprios quisessem executar.
A propósito de Stanley, Mahler descreve muito precisamente esses fenômenos de “conexão” e “desconexão”, bem como suas incidências sobre o corpo da criança. Stanley não apenas brinca com jogos on-off — acende, apaga… —, mas ele próprio se conecta e se desconecta. Mahler observa que, quando se desconecta, ele fica inerte e cai numa indiferença total. Ao contrário, quando se conecta, anima-se feito um autômato. Stanley se “conecta” quer se juntando ao corpo da terapeuta, tocando-a, ou a imagens dele mesmo, oriundas de um livro de leitura; quer na condição de que a palavra “bebê” seja pronunciada.
Por vezes a “animação libidinal” se redobra com uma “conexão” a uma máquina de verdade. A. Alpert e E. Pfeiffer relatam o caso de uma criança autista que “só se interessava por moinhos de vento” e “se preocupava em fazer com que os objetos redondos girassem […]. A mãe explicava isso como a forma que a criança possuía de se colocar em funcionamento e se desligar como uma máquina” (Alpert & Pfeiter, 1964, pp. 591-616).
O corpo de Joey só funciona com a condição de se juntar a uma máquina de verdade. Ele é uma “criança-máquina”, conectada à máquina: “Joey devia estar conectado à rede para poder funcionar” (Bettelheim, 1967/1969, pp. 303, 306). Joey, que no momento anterior não estava lá, no instante seguinte parecia uma máquina cujas engrenagens rodam e oscilam sem parar. Joey, que vivia mudo e sem se mover, na maior calma, brutalmente se colocava a correr para todos os lados e gritando: “crack! crack!” ou “explosão!”, acionando uma lâmpada ou um motor. Assim que o objeto acionado parava e que seu barulho se extinguia, Joey extinguia junto. Sem transição nenhuma, ele voltava à sua não existência. Assim que a máquina explodia, não havia mais movimento, vida, nada. Joey dá um nome para suas máquinas, por exemplo “quebrador de crânio”. Outras possuem cores (Bettelheim, 1967/1969, p. 324).
Motores e lanternas têm uma vida autônoma: “essa lâmpada elétrica vai ter um ataque de raiva”, a outra começa a sangrar, “os objetos, em particular as peças, motores e lanternas, que controlam as máquinas, tinham uma vida própria, tinham nomes que não mudavam, tinham até mesmo sentimentos”, “visto que elas tinham sentimentos, as lâmpadas também sofriam. Elas ‘sangravam’ quando eram feridas e às vezes adoeciam”, “as lâmpadas e as máquinas viviam a vida que nele estava apagada” (Bettelheim, 1967/1969, pp. 325, 326). O corpo de Joey é movido por máquinas: ele se mune de lâmpadas elétricas, lanternas, fios. Para respirar, tem o seu carburador; para comer, seu grande motor; para dormir, uma aparelhagem complexa instalada ao pé da cama. Ele não podia fazer nada sem ser movido por máquinas. Antes de ir para a cama, até mesmo antes de se sentar, era preciso que conectasse sua mesa a uma fonte de energia. Em seguida, ele próprio devia se conectar, conectar seus livros e seus lápis à mesa e se ajustar ao comprimento de onda certo (Bettelheim, 1967/1969, p. 325).
A “máquina de apertar” de Temple Grandin, derivada do seu “brete de gado”, é uma máquina que permite captar e regular seu gozo (Druel, pp. 117-124) — ela a utiliza para apaziguar seu sistema nervoso e suas emoções. Coloca-se nela, no lugar do animal, complementando-se com uma máquina “que se molda ao corpo do utilizador”. Ela encontra nisso, então, um estado de relaxamento a propósito do qual confessa a Oliver Sacks supor que “algumas pessoas chegam ao mesmo resultado unindo-se a uma outra” (Sacks, 1995/1996, p. 346). A “máquina de apertar” de Grandin é um objeto autístico que não é um duplo do sujeito; ela serve para tratar o duplo, mas ela própria não é um. Assim, na medida em que constitui uma “parte suplementar” (Tustin, 1992, p. 126) do corpo da criança, o objeto autístico se mostra “um precursor do duplo” (Maleval, 2003, p. 198). Com efeito, o objeto autístico constitui uma parte do corpo exteriorizada, um objeto que faz borda, próprio para se tornar suporte de um duplo.
A ausência de sua representação por um significante unário leva o autista, de fato, a um encontro estrutural completamente essencial: o encontro com o duplo. Assim, “Brisbane” era um dos duplos de Grandin:
Um dos personagens principais das histórias que eu inventava era Brisbane, um dos atores da série Our Gang/Little Rascals [Os Batutinhas]. A melhor qualidade do meu personagem Brisbane era sua capacidade de controlar as coisas. Eu queria controlar tudo, e Brisbane era o meu alter ego. (Grandin, 1989/1999, p. 41)[8]
O duplo se apresenta, sobretudo no caso de Grandin, com os traços do animal. Grandin supõe que os animais pensam, assim como ela, em imagens, ao passo que ela considera poder se colocar na pele de uma vaca, a fim de ver o mundo através de seus olhos: “quando me imagino no lugar de uma vaca, preciso verdadeiramente ser uma vaca, e não uma pessoa disfarçada de vaca. Lanço mão de meu pensamento visual para tentar saber o que um animal escuta ou vê nessa ou naquela situação. Coloco-me dentro do seu corpo e imagino o que ela sente” (Grandin, 1995/1997, p. 166).
Assim, Grandin se conecta imaginariamente à sensação do duplo que a completa, permitindo uma animação libidinal do sujeito independente do objeto. Desse modo, fazem-na notar que a entonação de sua voz tinha mudado, ela está menos apagada e mais viva: “no fim das contas, concluí que na medida em que minha percepção social aumentava, a entonação da minha voz ia melhorando. Suponho que eu não tinha mais necessidade de me defender do mundo exterior” (Grandin, 1995/1997, p. 104).
De um modo parecido com o objeto autístico, o duplo possui um alcance protetor e contribui para com uma estruturação da imagem do corpo. As duas funções principais do duplo residem em “sua capacidade de enquadrar o gozo, o que pode permitir uma animação libidinal do sujeito, e em sua aptidão para se articular com um Outro de suplência que contribui na ordenação da realidade e na atenuação do gozo” (Maleval, 2003, p. 201). A propósito de um de seus duplos, chamado de “cão viajante”, Williams escreve que ele está “destinado a servir de ponte entre mim e os outros viventes, para além do muro do meu próprio corpo” (Williams, 1992/1992, p. 278). “Willie” e “Carol” eram “os únicos interlocutores que me eram acessíveis” (Williams, 1992/1992, p. 167).
“Conectar-se” a um duplo permite ao sujeito autista que ele se anime, se conecte ao vivo e, assim, abra-se para o mundo. Sem recorrer a um duplo, o ser do sujeito se desvela, entregue ao gozo do Outro. A criança autista se encontra, então, impelida a se automutilar, quebrar, urrar; na melhor das hipóteses, a correr a comportamentos “autossensuais”. O objeto autístico, assim como o duplo, se mostra com uma função protetora da qual o sujeito autista não deve ser “privado”. Por outro lado, o autista precisa de uma “identificação imaginária transitivista para falar” (Maleval, 2009/2018, p. 325). Assim, Birger Sellin, na ausência da imagem do duplo, não chega a falar. O duplo se encontra, então, encarnado para ele em objetos concretos, tais como o seu braço conectado a um “facilitador”, que permite que ele escreva…
[1] Tradução do original francês “L’autisme infantile précoce de L. Kanner: de la clinique à la structure”. In Maleval, J.-C., L’autiste, son double et ses objets. Rennes: Presses Universitaires de Rennes, 2009, pp. 15-49, revisto e atualizado pela autora em 2024.
[2] Gwénola Druel é professora associada de Psicopatologia Clínica na Université Rennes 2 (França). Membro do laboratório de pesquisa “Psychopathologie clinique et Psychanalyse” (RPpsy). Psicóloga clínica e psicanalista.
[3] Em grego, Poética (1457 b 6-8): “μεταφορὰ δέ ἐστιν ὀνόματος ἀλλοτρίου ἐπιφορὰ ἢ ἀπὸ τοῦ γένους ἐπὶ εἶδος ἢ ἀπὸ τοῦ εἴδους ἐπὶ τὸ γένος ἢ ἀπὸ τοῦ εἴδους ἐπὶ εἶδος ἢ κατὰ τὸ ἀνάλογον” [Metaforá dé estin onómatos allotríou epiforá í apó toú génous epí eídos í apó toú eídous epí tó génos í apó toú eídous epí eídos í katá tó análogon]. A quadripartição das metáforas e o caráter fundamental da analogia são confirmados na Retórica (1410 a, b): “Entre as quatro espécies de metáfora, o gosto recai sobretudo nas que são baseadas na analogia”. Notemos a passagem em que Aristóteles sustenta o caráter de “transporte” próprio à metáfora: para ele, a metaforá é justamente uma epiforá carregando o nome (ónoma) do objeto.
[4] Unidade monetária que valia um vigésimo do antigo franco. [N.T.]
[5] Lacan, J. (1975) “Conferência na Universidade de Columbia — Auditório da Escola de Relações Internacionais”. In: Escritos avulsos. Trad. P. S. de Souza Jr.. Disponível em: <escritosavulsos.com/1975/12/01/columbia-auditorio-relacoes-internacionais/>. [N.T.]
[6] Espetáculo de variedades. [N.T.]
[7] O trecho a partir de “A maior parte deles…” não consta no livro, apenas no artigo publicado previamente. Cf. Maleval, J.-C. (2007) “Plutôt verbeux” les autistes. La Cause freudienne, vol. 2, n. 66, p. 129. Disponível em: <https://shs.cairn.info/revue-la-cause-freudienne-2007-2-page-127>.
[8] Na tradução brasileira do livro de Grandin, “Brisbane” aparece como “Bisban”. [N.T.]
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