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10_Um a um, uns com os outros: invenções de cuidado com adolescentes em crise nos CAPSij

Júlia Hatakeyama Gioia

Priscyla Mamy Okuyama

Adela Judith Stoppel de Gueller

(Azevedo, 2022, p.51)

A partir de algumas situações clínicas de atendimento de adolescentes em crise nos Centros de Atenção Psicossocial Infantojuvenis (CAPSij) III, na cidade de São Paulo (SP), traremos reflexões sobre os modos singulares de acolhimento dadas pelas equipes interdisciplinares[1]. Tais elaborações são fruto do trabalho do Sustentar – psicanálise, infâncias e saúde pública, um grupo de discussão clínica e de pesquisa que se debruça sobre as práticas clínico-institucionais realizadas com crianças e adolescentes no Sistema Único de Saúde (SUS), a partir das experiências trazidas por psicanalistas e trabalhadores da rede.[2]

O CAPS III é um equipamento que funciona vinte e quatro horas por dia e tem vagas de acolhimento integral para pessoas em crise aguda, em situação de risco e/ou alta vulnerabilidade. O tempo médio de permanência nesse dispositivo é de quinze dias, buscando garantir uma intervenção breve que não cronifique a situação de crise do adolescente. Problemas econômicos, sanitários, sociais e ambientais reverberam nas falas dos jovens em/com crises que são acolhidos nesses dispositivos e que nos interrogam acerca de nosso tempo e dos modos de habitar nossa cidade. A escolha de escrever sobre adolescentes se deu em função da constatação empírica de que, após quinze anos de experiência dos CAPS III, são eles os que mais acessam e se beneficiam do recurso do acolhimento noturno. Nesse mesmo período, constatou-se a necessidade de tornar os CAPS mais receptivos e atrativos para os adolescentes, já que, tradicionalmente, esses serviços estavam mais amplamente associados à infância pela população. Tal processo culminou na inclusão do “j” na sigla do antigo CAPSi, marcando um movimento ativo de priorizar as demandas de saúde mental de adolescentes, que vinham sendo invisibilizadas (Moreno, 2016).

A noção de crise na Reforma Psiquiátrica, apesar de bastante heterogênea e por vezes pouco precisa, vem marcando profundamente um novo modo de enxergar as demandas em saúde mental e seus dispositivos de cuidado. Historicamente, as ideias de urgência ou de emergência psiquiátricas imprimiram uma ótica biomédica reducionista no cuidado com a loucura, remetendo as crises ao momento de agudização da sintomatologia psicopatológica do transtorno mental. Sob essa compreensão, as manifestações costumavam ser interpretadas exclusivamente a partir da semiologia, sem levar em conta o contexto social. Os efeitos disso resultavam em intervenções quase exclusivas de contenção ou de aplacamento medicamentoso (Dassoler & Palombini, 2020). Conforme tal ótica, portanto, a complexidade presente nas situações de crise e as relações com seu entorno eram vistas apenas sob o prisma da minimização do risco, da perda do controle e da evidência de sinais psicopatológicos.

Com foco no sofrimento psíquico e na territorialização do cuidado – não no diagnóstico –, a Reforma Psiquiátrica trouxe novos paradigmas e dispositivos de intervenção e de cuidado. A noção de crise se desgarrou, então, da perspectiva médica da urgência para definir uma experiência existencial e desestabilizadora do sujeito em relação ao social, sujeito que necessita de um cuidado imediato e integral. Esse sentido, contrário ao recorte da agudização do sintoma psiquiátrico, comporta um processo que, a despeito de carregar um sofrimento intenso, tem um grande potencial transformador.

Ferigato, Campos e Ballarin (2007) relembram a etimologia sânscrita da palavra “crise”, cujo significado remete aos atos de desembaraçar e de purificar ou, ainda, aos processos de separação, de mudança e de desequilíbrio temporário, sentidos que encontramos nas crises adolescentes, como processos que permitem uma metamorfose da subjetividade. Dassoler e Palombini (2020) também enfatizam a importância de poder significar a crise por meio da palavra, de inscrevê-la numa história, de modo que a crise possa ser pensada como um processo importante de subjetivação. Nessa perspectiva, cuidar da crise passa a ser um trabalho múltiplo e complexo que conta com diferentes saberes e possibilidades de intervenção: o atendimento familiar, a mediação de conflitos, a presença constante nos momentos de angústia, a palavra como mediadora do sofrimento e também a abordagem medicamentosa são estratégias desse cuidado integral.[3]

A partir da Reforma Psiquiátrica, os CAPS foram designados como os lugares de cuidado da crise, em suas diferentes modalidades. Para situações que necessitassem de uma intensificação de acolhimento, com afastamento temporário do convívio social, foram criados os CAPS III e os leitos psiquiátricos em hospitais gerais. Essa nova modalidade de CAPS desafiou a rede a pensar quais seriam os critérios para indicar a necessidade de acolhimento integral numa lógica que não reproduzisse a manicomial nem respondesse à demanda por segregação social. Hoje, entende-se que, no âmbito da infância e da adolescência, a crise exige cuidado intensivo, institucional, interdisciplinar e em rede. Além disso, essas situações-limite explicitam que, para além do cuidado comunitário, o afastamento da família e do entorno pode ser necessário por um breve período, respeitando os direitos das crianças e adolescentes.

Foi só a partir de 2009 que, na cidade de São Paulo (SP), os CAPSij[4] passaram a funcionar nessa modalidade e tornaram-se referência de acolhimento noturno de crianças e adolescentes em crise no município. O recurso oferecido foi nomeado “cama” e não “leito”, recusando a herança manicomial e buscando afirmar uma outra forma de intensificação do cuidado: interdisciplinar, não hospitalar, breve e articulada com a família e com a rede de cuidados. Estar em acolhimento noturno significa, assim, um afastamento temporário do sujeito em relação à família, à rua ou ao serviço de acolhimento, de forma a minimizar riscos iminentes e a abrir um espaço-tempo de compreensão e de intervenção da situação.

Muitos adolescentes necessitam acessar o acolhimento integral mais de uma vez e, portanto, podem até circular entre diferentes CAPSij III. Isso faz com que conheçam diversas equipes e outros adolescentes que, assim como eles, precisam de uma intensificação temporária do acompanhamento. Eles chegam, permanecem por um tempo e depois retornam às suas casas, onde muitas vezes estão em situação de grande isolamento. O CAPSij III os acolhe quando surge uma situação insuportável na família, no serviço de acolhimento institucional ou quando a vulnerabilidade da vida nas ruas se torna insustentável, causando a intensificação do sofrimento psíquico. Os CAPSij II de referência desses sujeitos fazem a articulação com os CAPS III e se mantêm no acompanhamento durante todo o processo de acolhimento da crise, realizando, com os CAPS III, discussões clínicas, articulações de rede, bem como atendimentos à família no território de moradia. Isso garante que, apesar da separação momentânea de seu ambiente cotidiano, o jovem não fique em completo isolamento, como seria numa internação.

O Fórum Municipal dos CAPSij[5] construiu coletivamente, ao longo dos últimos anos, alguns parâmetros compartilhados sobre o funcionamento dos CAPSij III, que culminaram na Portaria nº 342, de 26 de setembro de 2019, produzida pela Secretaria Municipal de Saúde, em conjunto com diversos CAPSij para o acolhimento noturno (São Paulo, 2009). Esse documento buscou instituir um novo lugar de cuidados intensivos que não reproduzisse os critérios norteadores disciplinares e medicamentosos das antigas internações.

No entanto, muitas questões seguem em aberto. A oferta da acolhida noturna vem ativando uma demanda social pela institucionalização de crianças e adolescentes que “não cabem” em outros lugares. O trabalho exige resistir a tal processo em um esforço constante para abrir espaço e disponibilidade para que o sujeito e a crise possam existir e sejam acolhidos em outros lugares, como na escola, na família, no abrigo.

Entendemos que o contexto contemporâneo funciona de modo paradoxal: por um lado, produz continuamente crises e, por outro, busca extirpá-las, juntamente com a eliminação do risco e das incertezas. A busca por neutralização ou evitação dos conflitos continua sendo a voz que fala mais alto. Não por acaso, os processos de medicalização do sofrimento e de tudo aquilo que não se encaixa nos padrões constituem uma das principais respostas sociais às crises. Tentar abrir espaço e tempo para significar a crise desde a palavra, em um processo subjetivante, vem sendo um trabalho constante  das equipes para frear o  avanço do discurso médico disciplinador.

Donna Haraway (2016/2023) propõe que, em tempos de urgência, ao invés de acreditarmos nas resoluções rápidas e fáceis que prometem eficiência – e que podem encobrir ou simplesmente mascarar a crise –, possamos ficar com o problema[6]. Isso significa estarmos verdadeiramente presentes nas situações reais e específicas, para  sermos capazes de responder não com práticas resolutivas, mas com “respons-habilidade” e com ações que transformem e cultivem os processos. Haraway cria esse neologismo a partir do desdobramento da palavra responsability, numa dupla direção: response, resposta, e ability, habilidade. As respostas e as práticas só podem surgir no encontro com o problema, não na tentativa de eliminá-lo.

No cotidiano dos CAPS, a crise do sujeito se apresenta muitas vezes como a manifestação parcial e aguda, a “ponta do iceberg”, de uma complexa trama em que convergem a história individual, familiar e social, vulnerabilidades e precariedades. Não há resoluções simples e rápidas, a despeito de todos os recursos de que podemos lançar mão. A crise é o começo de um acompanhamento intensivo que, ao longo do processo, se desdobrará em diferentes intensidades, proximidades e modalidades de acompanhamento de cada caso. Por isso, a proposição de Haraway parece se aproximar da experiência clínica cotidiana dos CAPS, nos quais os cuidados são pensados, cultivados, ajustados na fricção contínua com as vidas e com os problemas, em processo.  Assim, pensar o cuidado da crise, interrogando essas cenas e essas experiências de acolhimento integral de adolescentes, norteia-se constantemente por uma ética do cuidado.

Nesse sentido, considerar a adolescência hoje é também lidar com essa categoria representante e emblemática da crise, em suas múltiplas facetas: a crise adolescente, a crise da perda da infância, a crise da busca de um novo lugar no laço social, com todos os desarranjos e conflitos que surgem a partir daí e fazem com que esses sujeitos sejam os usuários mais frequentes do dispositivo em questão.

Os adolescentes chegam aos CAPS solicitando apoio de formas muito variadas; em geral, vêm acompanhados por suas famílias ou responsáveis e encaminhados ou não por outros serviços. “Ela não quer mais comer, não fala com ninguém, descobrimos que está pesquisando sobre suicídio na internet”; “há dias em que ele está agitado, falando sozinho, levei ele no pronto-socorro e pediram para trazê-lo aqui”; “ele sumiu durante quatro dias e voltou parecendo ter usado muita droga, mas não quer falar”. Frequentemente, esses relatos chegam acompanhados de uma nomeação diagnóstica prévia, que pode ter sido dada por um acompanhamento médico anterior ou por diagnósticos que circulam nas redes sociais: “ele está assim, pois tem TDAH”; “tenho crise de ansiedade”; “sou bipolar”.

Por vezes, as descrições parecem mais vindas de um manual de psiquiatria do que palavras que contam um enredo familiar. Em um primeiro momento, a equipe escuta e dá lugar a esses nomes, uma vez que indicam uma posição de sofrimento e, ao mesmo tempo, de reconhecimento social. Observamos como o diagnóstico psiquiátrico tem criado, entre outros efeitos, uma experiência de reconhecimento do sofrimento na relação com os semelhantes, adquirindo função de nome próprio, embora seja transitório e por empréstimo, já que permite que o sujeito se apresente com “sua” sigla perante outrem. No entanto, no momento seguinte, esses CIDs pouco dizem sobre o que se passa com o sujeito naquele momento de desorganização e de sofrimento intensificado.

“Trouxe ele aqui porque vocês entendem disso, eu não sei mais o que fazer”. Se, em um primeiro momento, é importante acolher a demanda endereçada aos profissionais enquanto equipe de especialistas “que sabem o que ele tem”, no momento seguinte, torna-se necessário suspender esse saber, abrindo espaço para ouvir a história que precede a sua chegada ao CAPSij. No tempo que se segue, então, surgem perguntas acerca do que se passa com o sujeito e podem aparecer outras histórias, inclusive a de que o levou até ali. Emergem fatos e elementos que, inicialmente, não eram entendidos como pertinentes ao processo terapêutico e como desencadeadores da crise. Diante de uma situação que necessite de acompanhamento intensivo, decide-se, portanto, disponibilizar a acolhida integral (no próprio CAPS que o recebeu ou em outro que também ofereça camas). Com a ida do adolescente ao CAPS III, uma separação se faz e o adolescente pode ensaiar, recolher e enunciar um dizer próprio sobre a narrativa familiar.

 

 

A crise como potência e emergência do sujeito

Fernanda chegou ao CAPS com uma “crise de mania”. Esse foi o rótulo diagnóstico com que se apresentou. Comia muito e falava sem parar, seu pensamento estava desorganizado, quase não dormia e estava muito acelerada. Havia chegado recentemente de outro estado, onde tinha morado toda sua vida junto com a tia, que falecera recentemente. Como os pais haviam falecido quando ela era criança, veio para São Paulo ficar aos cuidados de um familiar com quem também não tinha qualquer vínculo. No acolhimento noturno, foi começando a desacelerar, pôde falar sobre seu doloroso luto, que havia reencenado perdas da infância, deixando-a novamente com uma sensação profunda de orfandade. Com o passar do tempo e dos atendimentos, abriram-se também outras dimensões de seu contexto atual. Sua desorganização psíquica justificava o impedimento de aceder ao dinheiro que seus pais haviam deixado para ela. Após quase vinte dias no CAPS, foi possível passar a pensar em projetos para uma vida futura e a recobrar novamente sua autonomia.

Fernanda sofre um descompasso de tempo, não consegue dormir. A perda da tia marca o início de uma deriva contínua, em que se torna impossível aportar em terra firme, pensar, figurar, elaborar. Sua fala incessante e excessiva parece funcionar como uma proteção perante os outros, assim como uma urgente necessidade de construir um dizer próprio. Tudo é em excesso: a comida, a movimentação, o andar, a gesticulação.

Lembramos aqui de Bollas (2012/2024), tal como formula o colapso psíquico: experiência em que o sujeito, por efeito de eventos externos (perdas, rupturas ou eventos aparentemente insignificantes), vê-se diante de uma desestruturação de seu mundo interno. Sua condição colapsada é paradoxal: exige que o sujeito se defronte com uma crise existencial e, ao mesmo tempo, que desafie as defesas armadas a tanto custo para manter um sentimento de integridade. Bollas revitaliza a ideia de crise, propondo uma escuta sensível e disponível do terapeuta nesses momentos, inclusive oferecendo uma temporalidade estendida, que possa produzir efeitos profundamente transformadores no sujeito[7].

Ir para o CAPS III propiciou a Fernanda que um corpo coletivo, institucional, acolhesse essa agitação, acompanhasse, dialogasse e pudesse também introduzir alguma pausa, algum silêncio. Ao mesmo tempo, o afastamento da família naquele momento foi fundamental para criar uma espécie de parêntese nas falas familiares sobre seu destino, as quais dificultavam que ela pudesse formular-se perguntas. No encontro com esses profissionais de saúde e com outros adolescentes, todos “não familiares”, ela teve de se contar e contar de si a partir de um lugar próprio. Esse trabalho de enunciação foi introduzindo uma temporalidade e uma espacialidade que lhe faltavam quando chegou.

Para Viganó (2012), a crise faz emergir uma temporalidade muito particular, que possibilita interrogar a condição de existir do sujeito e, em suma, fazê-lo nascer. A temporalidade, aqui, não condiz com o tempo de Cronos, o tempo cronológico, dos dias e das horas, mas sim com o Kairós, o tempo da ocasião, do momento oportuno, do acontecimento (Gueller, 2005). A temporalidade psíquica se desencontra do tempo cronológico, produzindo, por vezes, desarranjos subjetivos. Ninguém acompanhava o tempo de Fernanda, a velocidade de sua fala, sua insônia. Foram necessários muitos

corpos, quartos, paredes, outros adolescentes, jogos, um refeitório, para desacelerar essa vertigem subjetiva e para introduzir alguma espera, algum intervalo, algum espaço.

Fernanda sai da crise ao completar dezoito anos. Essa data produz um encontro entre Cronos e Kairós, tudo se condensa, a data e o símbolo: o marco legal do início da vida adulta tem um efeito de reorganização. A menina bem comportada da infância que havia se perdido na crise reaparece transformada. Fernanda emergiu da crise como um novo sujeito, conforme aponta Viganó (2012). Podemos entender aqui, portanto, a “emergência de um sujeito” em seu duplo sentido: como um sujeito que demanda a urgência de ser atendido e também como um sujeito que emerge, na medida em que a urgência catalisa intensos processos transformadores.

 

Fazer das memórias uma história:  adiar o fim do mundo

Samuel, dezessete anos, chegou ao CAPS com um olhar aflito e angustiado. Não dormia, não comia direito e tinha perdido a memória. Chegou encaminhado pelo médico do pronto-socorro, onde havia contado que ia se jogar da ponte. No momento inicial, Samuel não conseguia falar. Quando abria a boca, as palavras não saíam e era seu pai que respondia por ele. Pedia que ele listasse as capitais do Brasil para provar a memória do filho. Mas Samuel dizia que não se lembrava de nada, que não conseguia pensar por si e que sentia muito medo de que o mundo acabasse, o que visivelmente lhe causava um estado de medo permanente. Os pensamentos suicidas vinham como alternativa para acabar com esse desespero. Ficou em acolhimento noturno no CAPSij III. Não brincava nem ria, parecia permanentemente atormentado por seus pensamentos. Conseguiu localizar o início da crise quando escutou um pastor fazer previsões sobre o fim do mundo, o pastor dizia que Jesus viria salvar aqueles que merecessem. Lembrou, na sequência, que, quando estava com oito anos, jogava em uma escolinha de futebol e tinha chances de começar a se profissionalizar. No entanto, sua família lhe proibiu de jogar, achando que, como ele sentia falta de ar, poderia ter um mal súbito e morrer. Desde então, ficou assolado por uma ideia de fragilidade de seu corpo, de iminência da morte e da necessidade de ser um bom filho para ser salvo. Na semana em que estava em acolhimento, ocorreram as enchentes no Rio Grande do Sul e, para Samuel, aquilo era uma prova de que o fim estava próximo. A equipe se lembrou do livro Ideias para adiar o fim do mundo, de Ailton Krenak, e passou a trabalhar com essa ideia do adiamento, fazendo leituras diárias com ele. Seu tom catastrofista foi se esvaziando e sua condição se estabilizando, foi recuperando a espontaneidade e a vivacidade, reapropriando-se de seus pensamentos e de sua memória.

 

Samuel parece emblemático do contexto contemporâneo por se fazer porta-voz da incorporação dos desastres, da ideia do fim do mundo e da falta de perspectivas de vida dos jovens. Cronos e Kairós se encontram novamente, reunindo, num colapso, o encontro entre suas fantasias de aniquilamento terríveis e uma realidade que confirma o tempo todo a possibilidade de catástrofe e de morte iminente. Ele chega para atendimento tendo perdido a capacidade de lembrar e de narrar. Em seu lugar, uma memória mecânica é convocada pelo pai, que pede para ele listar as capitais dos estados brasileiros. Talvez resistindo à ideia de ter perdido o filho bonzinho da infância, o pai lhe demandava essa produção mecânica, sem afeto e dessubjetivada. O discurso familiar o encurralava mais uma vez, dizendo: “ele é frágil, vai morrer, temos que protegê-lo”. Entretanto, em crise, Samuel não encontrava acolhimento junto aos familiares, que não reconheciam a gravidade de seu sofrimento, fosse negando, fosse, por vezes, fazendo piadas com o que ele trazia. 

Durante o cuidado da crise, Samuel foi convidado a revisitar sua história. Passou tanto a lembrar-se dela como a ressignificá-la. Rememorar o passado não é só acessar a memória, mas re-historizar, ressignificar, perlaborar, como diz Freud (1914/1989). Foi somente no contato com o não familiar – a estada no CAPS com seus profissionais, a suspensão temporária da rotina de casa – que essa história pôde ser resgatada sob um encadeamento afetivo. Estar acompanhado de perto no seu pavor de aniquilação foi fundamental para que ele pudesse sobreviver a isso, deslocando sentidos, a princípio tão avassaladores. Haraway (2016/2023) renova a significação de remember, ao destacar o re-membrar: a reunião de membros esparsos é possível pela criação de dispositivos como os CAPS, que abrem lugar para que narrativas e memórias coletivas sejam criadas, voltando  a unir o que estava aparentemente desmembrado e esquecido. Na convivência com outros adolescentes e crianças com histórias muito diferentes, Samuel foi convidado a trocar e a brincar; com isso, voltou a jogar e ser competitivo, trazendo à tona, nas relações, sua agressividade, que ele antes reprimia e direcionava a si mesmo, por considerar que, assim, seria “salvo”.

As tentativas de convencer Samuel de que o fim do mundo não aconteceria eram em vão. Ele tinha certeza da iminência de uma catástrofe final, o que o fazia sucumbir ao colapso e procurar saídas para expiar seus pecados, machucando-se. Ao incorporar a ideia de adiar o fim do mundo com ele, a equipe escutou seu temor, ao mesmo tempo que ofereceu um contraponto às fantasias de aniquilamento. Adiar o fim do mundo era ficar com o problema, ou seja, era diferente de negar que o mundo iria acabar, era acolher e fazer algo com essa tragédia, assumindo que, de fato, nada o impedia de imaginar o final. Para Krenak, diante da queda e da ideia do fim, paralisamos, assolados em medo; em suas palavras: “talvez o que a gente tenha de fazer é descobrir um paraquedas. Não eliminar a queda, mas inventar e fabricar milhares de paraquedas coloridos, divertidos, inclusive prazerosos” (Krenak, 2019, p. 62-63). Com Samuel, foi possível abrir paulatinamente possibilidades de resistir e de viver no mundo em ruínas, forjando alguns paraquedas, ainda que provisórios, mas com possibilidade de cuidado para consigo e para com os outros.

 

Acolher o que não tem lugar

Kennedy é um adolescente venezuelano de catorze anos, que chega ao CAPS com uma recusa severa de alimentar-se. Apesar de já estar no Brasil há pelo menos um ano e de ter aprendido a língua, recusava-se a falar com pessoas que não fossem da família. Não tomava banho, ficava em casa recolhido em um mocó que criara para si, onde dormia, defecava e guardava as fezes. Emagrecido e sujo, parecia um animal acuado. Passou a frequentar a Praça da Sé e ali começou a se alimentar com as marmitas distribuídas gratuitamente. Era a única comida que aceitava. Com suas idas à rua cada vez mais frequentes, sua condição foi se deteriorando. Nesse momento, foi articulada uma remoção forçada de sua casa para o CAPS III. Kennedy quase não opôs resistência: seu corpo emagrecido e frágil, que inicialmente ensaiava uma resposta agressiva, logo se deixou arrastar como uma criança contrariada, não foi necessário contê-lo.

Uma vez no CAPS III, também quis instalar seu mocó, urinando e guardando suas fezes embaixo da cama onde dormia. Apesar da limpeza do ambiente ser realizada, dele exalava um odor forte, pois continuava se recusando a tomar banho. Para ficar ao seu lado, era preciso suportar aquele cheiro. Aos poucos, Kennedy começou a se abrir e a contar suas fantasias com um megalodonte que poderia sair do chuveiro e das torneiras e com um “americano” que o perseguia e queria matá-lo. Dizia também que a comida de sua mãe estava envenenada. Lentamente passou a sair do quarto, a circular pelo espaço, a aceitar melhor a comida e a tomar banho. Certa vez, o gesto que fazia com o braço para pedir distância foi devolvido como um “está contigo”. A ressignificação gestual se transformou num pega-pega e Kennedy passou a jogar e a achar formas alternativas de se comunicar. Estar longe da mãe e da família, ao mesmo tempo que recebia visitas frequentes deles, pareceu exercer uma importante função de intermitência, instaurando pausas e descontinuidades em uma relação que, para ele, era insuportavelmente ameaçadora e intrusiva.

Kennedy fazia com que nos interrogássemos sobre as fronteiras do cuidado e dos lugares que habitamos. Ao chegar, nos perguntávamos: é um caso clínico, dados o seu emagrecimento e a sua desidratação? Psiquiátrico, devido aos seus comportamentos evitativos e bizarros? Ou social, dado que os conflitos com a família eclodiam em cenas de violência? De que exatamente Kennedy precisava? De comida, de remédios antipsicóticos, de escuta psicológica ou de um abrigo? De quem era a responsabilidade do caso: da família, da Saúde, da Assistência Social, do Conselho Tutelar? A escolha pelo CAPS III priorizava a questão da saúde mental naquele momento. No entanto, essa decisão situava-se em um terreno especialmente difícil na articulação de políticas públicas, já que o caso era atravessado por múltiplas demandas, que acabavam sendo minimizadas quando direcionadas prioritariamente ao campo da saúde.

Kennedy levantou também questões acerca da própria instituição, uma vez que, para ser acolhido, foram necessárias algumas concessões de certas regras e protocolos de higiene, de alimentação e de medicação. A imposição de condutas e de regras rígidas ameaçava gerar situações de violência e reforçar uma lógica manicomial. A equipe sustentou, durante certo tempo, essa flexibilização das regras, até que alguns integrantes avaliaram a necessidade de fazer Kennedy tomar banho em nome da higiene e do convívio com as outras pessoas. Quais seriam os efeitos de tais imposições? Seriam terapêuticas ou incrementariam as ameaças persecutórias daquele adolescente? Naquele momento, tratava-se de uma aposta de que se corriam alguns riscos.   

Serres (2008/2011) propõe pensar que, para os animais, humanos ou não, a sujeira e a poluição têm uma função de apropriação. Uma pessoa pode cuspir no seu prato de sopa para que outros não toquem em sua comida. O ato de cuspir na própria comida é, portanto, um gesto de apropriação. Kennedy repetia essa lógica ao criar seu mocó com urina e fezes, recusando-se a limpá-lo, cultivando uma crosta grossa de sujeira em seu corpo, impondo distância em relação aos outros, delimitando suas fronteiras. Era com o fedor que ele criava distância dos outros. Era com as fezes que ele delimitava um território próprio. Por isso, temia-se que as imposições de limpeza e medicação produzissem efeitos de um maior afastamento e silenciamento, ao invés de favorecer maior organização psíquica. As condutas foram muito discutidas em equipe e com o próprio Kennedy, que aos poucos começou a reconhecer os diferentes modos de cada pessoa se aproximar. A equipe já não era mais um bloco em quem ele não confiava. Ele passou a permitir que um técnico de enfermagem o conduzisse ao banho, o que em seguida se estendeu aos outros profissionais, passando inclusive a aceitar medicação.

A crise de Kennedy, como a de muitos outros jovens, nos fala de alguém “sem lugar”. Apesar de ter uma casa e uma família, Kennedy se situava com um desterrado, sem casa, sem família, sem laço social. Paradoxalmente, o primeiro lugar onde ele se sentiu acolhido foi a Praça da Sé, espaço emblemático: de todos e de ninguém. Kennedy encontrou, ali, seres semelhantes a ele, que também se sentiam sem lugar. Um deles era Leandro, também recebido no CAPS III.

 

Leandro foi levado ao CAPS III por um Centro de Convivência de Crianças em situação de rua, pois estava agressivo, paranoico, “no ódio”. Chegou brigando com as paredes e socando almofadas. Somente depois de alguns dias os conflitos e a agitação foram dando lugar a alguma conversa e mediação. Então, Leandro começou a contar-nos sua história: tinha um irmão gêmeo com quem vivera até os cinco anos em um abrigo. Ambos foram adotados e posteriormente abandonados pela família adotiva. Leandro passou a frequentar a rua, buscando ora os pais adotivos, ora o pai biológico. Seu modo de circular, contudo, nos fazia pensar que não tinha lugar em nenhuma família ou território. Diante das tentativas de cuidado da equipe, ele questionava: “quem disse que eu posso ser dependente de vocês? Meus pais me abandonaram, só posso contar com meu irmão!”. Foi só após uma semana de acolhimento no CAPS que ele conseguiu diminuir a agitação e começar a falar.

Ao ser acolhido pelo CAPS, Leandro viveu não a separação em relação à sua família, mas, ao contrário, o encontro com o próprio abandono familiar. Seu único vínculo era seu irmão gêmeo, que se encontrava privado de liberdade. Acolher Leandro se constituiu como um espaço/tempo de construção de um lugar que admitia o espanto e a agressividade e que não se deixava paralisar por essas manifestações. No CAPS, o estranho e a diferença tinham lugar. Foi junto da equipe do CAPS que ele pôde encontrar um lugar para criar e experienciar vínculos que não reproduzissem o abandono, ainda que continuamente convocasse rupturas e tivesse explosões de raiva que ameaçavam romper as relações com os semelhantes. A equipe recebeu seus ataques, nomeou, impôs limites mínimos para que a destrutividade não fosse excessiva e não se tornasse devastação. Acolheu Leandro, testemunhando seu doloroso sentimento de desproteção e desamparo, e se colocou como uma outra possibilidade de vínculo, diferente da família. O CAPS não supriu a totalidade dessas carências, pôde responder a elas apenas parcialmente, mas passou a articular uma rede de sustentação com os equipamentos da assistência social e do judiciário. No transcorrer do tempo, ele percebeu que a falta de um corpo integrado podia lentamente começar a se transformar.

Leandro interpelou a equipe: “diante do meu abandono, o que vocês podem fazer?”. “Podemos estar com você”, dissemos de formas variadas. “Podemos”, como diria Donna Haraway (2023), “acompanhar a sua crise com uma clínica da presença, da espera. Podemos oferecer-lhe tempo e lugar. Podemos nos implicar e ficar com seu problema, que passou a ser nosso também. Podemos abraçar o adoecimento sem medo do contágio, podemos deixar de ser estranhos e nos tornar alguém familiar. Podemos ficar atentos e escutar o que você traz, para juntos construirmos estratégias e possibilidades de navegar os momentos de turbulência. Podemos ajudá-lo a lembrar que uma crise não é somente uma ruptura do tecido individual, mas comporta uma dimensão social e coletiva”.

 

O CAPS III e uma ética da hospitalidade

Vimos como as invenções de cuidado nos CAPS levam em conta o tempo da crise e da urgência. Um tempo que requer uma intervenção in loco, que opere na lógica de Kairós. Mas isso se alterna com o tempo estendido, necessário à escuta daquilo que a crise tumultua e que, por vezes, está encoberto. O passar dos dias e das horas de Cronos, a convivência no cotidiano, as pequenas conversas nos corredores, os sutis gestos e olhares vão abrindo outra dimensão clínica. Acolher as crises requer uma disposição que está na contracorrente de um mundo que demanda resolutividade de problemas, que quer manuais, protocolos e medicações que garantam um atalho para neutralizar conflitos com rapidez e eficácia. A lógica da produtividade se contrapõe à lógica do acolhimento.

Para construir o trabalho nessa contracorrente, é necessário sustentar um lugar de receptividade para aquilo que não cabe em outros lugares e instâncias, além de uma disponibilidade – do profissional, da equipe e da instituição – muito particular. Jacques Derrida (Derrida & Dufourmantelle, 2003), ao propor uma ética norteada pela hospitalidade incondicional, nos ajuda a pensar essa condição necessária à equipe do CAPS III para acolher os sujeitos em crise. Trata-se de uma disposição ética de cuidado e de respeito com o outro, a qual consiste em suspender a rejeição ao estrangeiro, em abrir-se a suportar a potência perturbadora e questionadora do estranho sem pré-julgar nem exigir daquele que chega de improviso  adaptação a outros modos de viver e conviver. Poder oferecer ao recém-chegado um lugar para si, sem pedir a ele seu nome ou lhe impor qualquer outra condição, trata de uma disposição que beira à utopia.

Por isso, a equipe do CAPS se debate permanentemente entre a acolhida incondicional e a imposição de regras e protocolos, sabendo que a chegada de alguém requer dos profissionais um máximo de abertura, já que o sujeito se encontra numa situação de escassos recursos de adaptação a normas e a regras alheias. A abertura e a espera são, nesse primeiro momento, fundamentais. Podemos pensar que tal condição é inventada e recriada a cada vez pela singularidade de quem chega, pela equipe que o recebe e pelo dispositivo que lhe oferece um lugar. Há, é claro, protocolos, padronizações, fluxos e limites que formatam e operacionalizam o funcionamento institucional, mas há também abertura[8] e flexibilidade que permitem experimentar o encontro singular, o kairós de cada encontro.

A etimologia dos termos hospitalidade e hóspede provém de uma composição de palavras latinas: hostis e pot (amo). Hostis corresponderia à hóspede. Porém, adverte Benveniste (1969/1983), no latim, hostis também significava estrangeiro e inimigo. Daí hóspede e inimigo convergirem na noção de estrangeiro. Na Roma Antiga, o estrangeiro tinha o mesmo status e os mesmos direitos de um cidadão, mas essa noção de reciprocidade foi abolida e restou apenas a distinção entre interior e exterior das cidades. Foi a partir desse momento que caiu o sentido de mutualidade e de intercâmbio: hostis deixou de ser o estrangeiro amigo e hóspede, passando a ser o inimigo. Exterior e inimigo passaram a ter correspondência.

Pensamos que acolher um sujeito em crise passa pela supressão da desconfiança e da predeterminação do outro como hostil. Isso implica não só estabelecer uma relação “não alérgica” com o sofrimento e com as situações-limite desafiadoras, como também cultivar uma ética da hospitalidade incondicional. Sustentar com “respons-habilidade” sujeitos em sofrimento psíquico intenso exige uma disposição que está além da capacidade do “eu” de cada membro da equipe interdisciplinar e que desafia todas as defesas. Por isso, a dimensão extraindividual, a articulação de um corpo coletivo, o entre-vários de uma equipe e da rede são necessários. Sem essa dimensão coletiva, a ética da hospitalidade é inviável.

Derrida (2001) diz que o estrangeiro pode se apresentar na figura do visitante, presença inquietante de alteridade radical. Diferentemente do hóspede, o visitante não avisa da sua chegada, não aceita os costumes da casa e quer impor seus modos de vida, exigindo de quem o recebe, o hospedeiro, uma aceitação incondicional. A ética da hospitalidade implica poder acolher o visitante sem rejeitá-lo nem enfrentá-lo como um invasor inimigo e hostil. Para isso, é preciso que o hospedeiro possa suspender temporariamente suas regras e seus costumes, abstendo-se de julgar os modos de agir do visitante. Só sob essa condição poderá se instaurar um campo possível de troca e de intercâmbio, em que o visitante poderá vir a reconhecer as leis do lugar que o recebe e que o acolhe sem se sentir ameaçado. É necessário um tempo, muito variável e singular, para que o visitante possa se tornar um hóspede, como nos mostraram Samuel, Leandro, Kennedy e Fernanda.

Assim como Derrida propõe a inversão da lógica da hospitalidade, fazendo aquele que a recebe suspender suas regras e seus costumes, também reconhecemos uma inversão  radical na lógica da clínica dos CAPS em relação à lógica manicomial: enquanto o hospital psiquiátrico segregava os doentes para acolhê-los, os CAPS acolhem aqueles que estão segregados e trabalham para promover laços sociais. A aproximação e a possibilidade de trocas entre pessoas de diferentes contextos, classes sociais e histórias de vida geram benefícios e abrem perspectivas. Afetos e sensibilidades são mobilizados, favorecendo experiências e elaborações a partir de múltiplas escutas de quem antes sequer era considerado um par para caminhar lado a lado. Muitos adolescentes falam sobre essas participações e vinculações, antes impensáveis em seu processo terapêutico.

O processo coletivo de cuidado e de pertencimento parece operar de forma a dar um sentido mais compartilhado ao sofrimento. No acolhimento integral, poder estar em contato com outros adolescentes e com outras crises também produz efeitos. Em muitas situações, vemos os adolescentes acolhendo uns aos outros. Uma adolescente, após passar dez dias em acolhimento, relatou que estava se coordenando com outros adolescentes que conhecera no CAPS, através das redes sociais, para que todos simulassem novas crises com o intuito de se encontrarem novamente e de passarem mais tempo juntos. Por isso, um desafio do CAPS é o de oferecer cuidado e acolhimento, evitando a sedução, já que o sujeito pode se fixar no CAPS e nos novos vínculos, assim como outrora se fixara nos diagnósticos e na internação. Em suma, o desafio é tanto acolher quanto possibilitar que os jovens possam achar novos lugares no mundo, na família e na vida.

No CAPS III, também dá-se lugar aos visitantes que tentam impor seus modos e suas maneiras, suas regras e suas condições com a violência do silêncio e do grito, entendendo que essa voz, às vezes inaudível e incompreensível, precisa, como o estrangeiro, de um tempo de acolhimento para se tornar inteligível. A equipe se vê diante da necessidade de respeitar essas manifestações como um dizer mudo e singular, antes que elas possam se tornar palavra, historização e sentido. Antes da possibilidade de compreender, é necessário ficar com o problema, afirma Haraway (2023), corresponsabilizar-se por ele, suportar o incômodo do non-sense.

Os jovens que fizeram ouvir suas vozes aqui, através das manifestações de suas crises subjetivas, mostraram sua revolta com a normatização e com a padronização. Ao exigirem tempo de acolhimento, tolerância e escuta da equipe, criaram um lugar para a insubmissão. A potência da crise é resposta à resistência necessária para a aceitação superegoica de uma convenção única para todos. As crises dos adolescentes nos ensinam, assim, que é necessário recriar-se e reinventar-se para não sucumbir num mundo uniformizador, que é preciso mobilizar uns aos outros, produzir espaço e tempo para experimentar novas posições, ter a singularidade reconhecida e não obedecer aos mandatos dessubjetivantes do mundo contemporâneo. A adaptação pode ser muito difícil para o sujeito adolescente e para a sua família, mas não resistir pode ainda ser pior.

O acolhimento realizado nos CAPS possibilita que os adolescentes façam uma  passagem, que imaginem ou encontrem outros lugares habitáveis na vida adulta. Se, na crise, o sujeito se encontra numa espécie de queda livre, o cuidado pode servir como uma rede que dá anteparo e proteção. Sem eliminar os riscos e a radicalidade da queda implicada no processo, a crise vem relembrar que a queda pode ser uma travessia e não um fim.

[1] Agradecemos a Isabel Botter por sua leitura cuidadosa e revisão catalisadora da escrita deste artigo.

[2] Sustentar – psicanálise, infâncias e saúde pública é um projeto, criado em agosto de 2016, do Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae. Além das autoras, fazem parte do grupo e construíram a discussão expressa neste texto: Luciana Pires, Renata Lauretti Guarido, Barbara Cristina Mello, Diego Fontana Siqueira Cunha, Janaina Lopes Diogo, Marina da Silva Rodrigues, Maira Terra Cunha Di Sarno e Sthefânia K. Restiffe de Carvalho.

[3] Temos hoje os CAPS I, que atendem todo tipo de demanda para municípios com menos de 200.000 habitantes; os CAPS II, que são os serviços para municípios maiores e que atendem a uma área de abrangência, a partir de diferentes recortes: CAPS Adulto, CAPS Infantojuvenil e CAPS Álcool e Drogas; os CAPS III, que são semelhantes aos CAPS II, mas oferecem também a possibilidade de acolhida noturna, com camas.

[4] Atualmente, existem trinta e quatro CAPS infantojuvenis no município de São Paulo; destes, nove são CAPSij III, com funcionamento vinte e quatro horas (informação colhida em setembro de 2024).

[5] O Fórum existe desde 2016, em uma proposta de construção conjunta do cuidado em saúde mental infantojuvenil entre todos os CAPSij do município.

[6] Octavio Bonnet, em live no youtube do canal Compondo com Gaia (Pires, Bonnet & Rodrigues, 2024), associou a ideia de Haraway (2016/2023) à proposta de Christopher Bollas (2012/2024), de estender o tempo de trabalho com o analisando em estado de colapso mental para dar tempo a ele, sem necessariamente recorrer ao aplacamento da crise por meio do que poderia simplesmente ser uma operação de silenciamento.

[7] Abordamos esse tema em live do dia 28 de setembro de 2024, no canal “Compondo com Gaia”: Pires, L., Joia, J. & Fudissaku, F. (2024) Colapso mental e atendimento à crise na rede pública. In: Compondo com Gaia (canal do Youtube). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=o6bkeKixqGg. Acesso em: 28 set. 2024.

[8] A porta-aberta é uma característica definida pela Portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002, que redirecionou o modelo de atenção à saúde mental brasileira (Brasil, 2002). Define-se que qualquer pessoa pode ter acesso ao primeiro acolhimento do CAPS sem encaminhamento ou agendamento prévio, característica, determinada pela lei, que também se operacionaliza no funcionamento dos CAPS, contribuindo para qualificar o acolhimento.

 

referências

Bollas, C. (2012) Segure-os antes que caiam. Trad. L. Junior. São Paulo: Nós, 2024.

Benveniste, E. (1969) Vocabulario de las instituciones indoeuropeas. Vol. I: Economía, parentesco, sociedad. Trad. Mauro Armiño. Madri: Taurus, 1983.

Brasil. Ministério da Saúde (2002) Portaria nº 336, de 19 de fevereiro de 2002. Dispõe sobre as diretrizes de organização dos CAPS. Disponível em: http://www.jusbrasil.com.br/diarios/459319/pg-22-secao-1-diario-oficial-da-uniaodou-de-20-02-2002/pdfView. Acesso em: 08 ago. 2024.

Dassoler, V. A & Palombini, A. L. (2020) Atenção à crise na contemporaneidade: desafios à Reforma Psiquiátrica Brasileira. Saúde debate, Rio de Janeiro, vol. 44, n. esp. 3, pp. 278-291, 2020. Disponível em: https://doi.org/10.1590/0103-11042020E323. Acesso em: 21 jul. 2024.

Derrida, J. Amizade e hospitalidade. Palestra ministrada no Workshop Jacques Derrida/René Major no Brasil. Uma homenagem a Vilma Oakim, realizada no Planetário da Gávea, em 8 jun. 2001.

Derrida, J. & Dufourmantelle, A. (1997) Anne Dufourmantelle convida Jacques Derrida a falar da hospitalidade. Trad. Antônio Romane. São Paulo: Escuta, 2003.

Ferigato, S. H, Campos, R. T. O & Ballarin, M. L. G. S. (2007) O atendimento à crise em saúde mental: ampliando conceitos. Revista de Psicologia da UNESP, vol. 6, n. 1, pp. 31-44, 2007.

Freud, S. (1914) Recordar, repetir y reelaborar (Nuevos consejos sobre la técnica del psicoanálisis, II). In: Obras Completas. Vol. XII. Buenos Aires: Amorrortu, 1989, pp. 145-158.    

Gueller, A. S. (2005) Vestígios do tempo. Paradoxos da atemporalidade no pensamento freudiano. São Paulo: Arte & Ciência, 2005.

 

Haraway, D. J. (2016) Ficar com o problema: fazer parentes no Chthuluceno. Trad. A. L. Braga. São Paulo: n-1 edições, 2023.

Krenak, A. (2019) Ideias para adiar o fim do mundo. São Paulo: Companhia das Letras, 2019.

Moreno, M. I. (2016) ​​Os CAPS infantojuvenis como política pública de saúde mental infantojuvenil: recuperar a história para repensar caminhos. In: Secretaria Municipal de Saúde de São Paulo. I Encontro Municipal de CAPS infantojuvenil – CAPS IJ: relatos das rodas de conversa. São Paulo: Secretaria Municipal da Saúde, 2016, pp. 9-15. Disponível em: https://www.prefeitura.sp.gov.br/cidade/secretarias/upload/chamadas/anaisiencontromunicipaldesaudementalinfantojuvenil22122016_1482430629.pdf. Acesso em: 20 set. 2024.

Pires, L., Bonnet, O. & Rodrigues, M. (2024) Segure-os antes que caiam, de Christopher Bollas: modos de adoecimento e tratamento. In: Compondo com Gaia (canal do Youtube) Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=LmJIEhB7lGk. Acesso em: 06 abril 2024.

Pires, L., Joia, J. & Fudissaku, F. (2024) Colapso mental e atendimento à crise na rede pública. In: Compondo com Gaia (canal do Youtube). Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=o6bkeKixqGg. Acesso em: 28 set. 2024.

São Paulo. Secretaria Municipal de Saúde (2009) Portaria nº 342, de 26 de setembro de 2009. Define e regulamenta o serviço Caps infantojuvenil (ij) III, com funcionamento 24h, no município de São Paulo. Disponível em: http://legislacao.prefeitura.sp.gov.br/leis/portaria-secretaria-municipal-da-saude-sms-342-de-26-de-setembro-de-2019/detalhe. Acesso em: 15 set. 2024.

Serres, M. (2008) O mal limpo: poluir para se apropriar? Trad. J. Bastos. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2011.

Viganó, C. (2012). A construção do caso clínico. In: Alkmin, W. D. (Org.) Novas Conferências. Belo Horizonte: Scriptum, 2012, pp. 181-199.

Júlia Hatakeyama Gioia

Psicanalista e psicóloga. Ex-trabalhadora de CAPSIJ. Mestre em Psicologia Social pela PUC-SP.  Integrante do Sustentar – psicanálise, infâncias e saúde pública, do Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae, e do Grupo Veredas – psicanálise e imigração, do Laboratório Psicanálise, Sociedade e Política do Instituto de Psicologia da USP.

Priscyla Mamy Okuyama

Psicanalista, acompanhante terapêutica, terapeuta ocupacional. Trabalha em CAPSij III. Mestre em Educação pela Faculdade de Educação da USP. Membro associado do Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae. Integrante do Sustentar – psicanálise, infâncias e saúde pública.

Adela Judith Stoppel de Gueller

Psicanalista, mestre e doutora em Psicologia Clínica pela PUC-SP. Pós-doutora em Psicanálise pela UERJ. Coordena o Departamento de Psicanálise com Crianças do Instituto Sedes Sapientiae e é supervisora dos Projetos de Pesquisa Gemelar e  Sustentar – psicanálise, infâncias e saúde pública.