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07_À FLOR DA PELE: O vitiligo além da superfície do Espelho

Alencar Tognon

“Jamais me olhas lá de onde te vejo.
Inversamente,
o que eu enxergo é o que jamais quero ver.” 

(Lacan, Seminário XI, 1964/1998, p. 100)

“Eu quero profundidade.”

Essa foi uma frase anunciada, na primeira sessão, por uma mulher de vinte anos, angustiada por carregar na pele, desde a infância, algumas manchas que destruíam sua autoestima. Para ela, era difícil demais ter uma “aparência manchada”.

Verônica, nome fictício que será usado aqui, procurou-me para iniciar análise devido ao vitiligo – doença crônica de perda progressiva da pigmentação da pele, caracterizada por manchas brancas em diferentes partes do corpo. Após passar por um processo de psicoterapia, ela se propôs analisar a questão com mais “profundidade”, acreditando que a psicanálise poderia ajudá-la.

Mencionando, com frequência, os métodos freudianos de tratamento conversivo das histéricas, Verônica acreditava que, além do talking cure, ao recordar cenas traumáticas de sua infância, o sintoma da pele desapareceria.

Com muita dificuldade de falar e de expressar seus sentimentos, o olhar era o que marcava a presença da paciente. Quase fotográfica, sua visão reparava em cada detalhe das pessoas e dos cenários ao seu redor. De vez em quando, ela chegava a notar meu corte de cabelo, minhas vestimentas e pequenas mudanças no consultório. A imagem chamava muito a sua atenção e seus impasses se apresentavam diante do que seus olhos capturavam, impedindo-a de ir além da primeira impressão.

A “profundidade” que ela tanto demandava na experiência psicanalítica encontrava um obstáculo na superfície. Seu olhar era atento e frenético ao movimento das manchas em seu corpo, impedindo-a de visualizar, falar ou explorar outras questões. Verônica mantinha-se, fixamente, como uma espectadora da própria pele.

Desse modo, o paradoxo entre olhar superficial x profundo se fez presente desde o início do tratamento, que durou mais de três anos de acompanhamento. O desafio clínico, apontado por Dunker (2021, p. 97) como “uma articulação da memória sem história; da vontade sem desejo; da imaginação sem fantasia”, parecia alarmante com essa paciente…

As manchas tomavam tanto sua visão que eram capazes de cegá-la para outros campos; algo, naquela superfície, impedia a profundidade a que ela tanto aspirava na experiência de análise.

 

A superfície que não cala

Verônica apostava alto que a psicanálise poderia eliminar suas marcas no corpo, uma vez que algumas dessas manchas desapareciam à medida que suas emoções ficavam estáveis.

Por ser caucasiana, para muitos, certas manchas de vitiligo passavam despercebidas, mas, para ela, visto que a doença não estava estabilizada, era uma tortura conviver com algo que “possui vida própria e se movimenta, na pele, como quer”.

No entanto, o vitiligo funcionava como um termômetro para Verônica avaliar se estava bem ou mal. Ao notar o aumento das manchas, constatava e convencia-se de que não estava bem emocionalmente; ao vê-las diminuírem, percebia-se melhor. Distante do concreto, ela não conseguia apreender nada… precisava olhar-se, como uma estrangeira de si mesma, para acessar seus sentimentos.

Quando a paciente conseguia falar de si, usava apenas adjetivos de recriminações no diminutivo – “desajeitadinha”, “inadequadinha”, “bobinha”, “manchadinha”. Curiosamente, eram palavras ditas com certo desafeto, sem permitir que fossem analisadas ou ponderadas.

Apesar de a voz sair, a frequência audível do vazio era maior. O silêncio fazia com que sua pele falasse e, desse modo, só era possível escutar através dos olhos…

Parecia que não havia um sujeito ali, apenas as marcas dele. Tudo girava em torno das manchas na pele, a ponto de Verônica desaparecer diante delas. Perdia horas em frente ao espelho, observando, medindo tamanhos e tentando dar conta daquele “estranho” que percorria seu corpo.

Como diz Freud (1923/2011, p. 32): “O Eu é sobretudo corporal, não é apenas uma entidade superficial, mas ele mesmo a projeção de uma superfície”, acrescentando, em nota de rodapé, que “o Eu deriva, em última instância, das sensações corporais, principalmente daquelas oriundas da superfície do corpo” (Freud, 1923/2011, p. 32). 

Mas por quê, no caso de Verônica, parecia que o Eu era corpo?

A subjetividade da paciente era desconsiderada, não havia interesse em quem ela era. Parecia que se tratava apenas de um vazio com uma casca manchada.

Com base em Freud, esses elementos podiam indicar uma melancolia, que o autor diferencia do luto, ao afirmar: “no luto é o mundo que se torna pobre e vazio; na melancolia é o próprio Eu” (Freud, 1917/2010, p. 176), e argumenta:

No quadro clínico da melancolia, a insatisfação moral com o próprio Eu é destacada relativamente a outras coisas: defeitos físicos, feiúra, debilidade, inferioridade social, muito mais raramente são objeto de autoavaliação; só o empobrecimento ocupa lugar privilegiado entre os temores e os dizeres do paciente (Freud, 1917/2010, p. 179).

Mas, afinal, por que as manchas eram maiores do que Verônica? O que elas queriam dizer? Haveria motivo de elas estarem ali, insistindo tanto para aparecer?

No texto “Introdução ao Narcisismo”, Freud discorre sobre a distribuição da libido no corpo e usa, como exemplo, a hipocondria: “o hipocondríaco retira interesse e libido dos objetos do mundo exterior e concentra ambos nos órgãos que ocupa” (Freud, 1914/2010, p. 26-27). Nesse sentido, o sujeito mantém-se no centro das atenções, através do órgão, deixando quase nulos outros aspectos de interesse. Freud ainda compara esse quadro com as psicoses, em que há “um represamento da libido do Eu” (Freud, 1914/2010, p. 28), ou seja, uma dificuldade desses indivíduos na passagem para os investimentos objetais.

Podemos pensar que o vitiligo de Verônica atendia ao mesmo propósito do exemplo dado por Freud?

Perante fenômenos do corpo semelhantes aos ocorridos com Verônica, Lacan (1964/1998, p. 225) advém: “é certamente algo da mesma ordem da psicose”.

Não obstante de Verônica dizer que suas manchas lhe causavam vergonha, parecia que, de certo modo, eram o que mais exibia durante as sessões. Quando falava, fazia gestos de maneira que as deixava mais explícitas.

Do lado de cá, apesar de tentar resistir, era inevitável que meus olhos não fossem em direção ao vitiligo. Ele chamava atenção por si só, devido ao contraste de cor na pele, e, como as manchas eram o assunto central das sessões, meu olhar permanecia capturado.

Ali, então, acontecia um grande espetáculo. O corpo da paciente parecia um palco onde ocorria um show de dança há mais de vinte anos, cujas bailarinas eram manchas que davam passos largos e fechados no compasso dos afetos de Verônica. E ela, sentada na plateia, assistia a cada milímetro dos movimentos daquela cena, com um olhar atento e frenético, capturando e reparando em cada detalhe, sem descansar.

Diante da demanda de cessar as manchas de sua pele e da alta insistência em tratar o que lhe ocorria visualmente, a súplica da paciente me tomou como analista… uma urgência de investigar as aparições do vitiligo, na transferência, foi sentida como uma preocupação constante sobre o aumento ou a diminuição das marcas. Dessa forma, me vi ali, também, como um espectador assíduo das manchas de Verônica.

Freud desenvolve a ideia de que esses fenômenos que ocorrem no setting analítico são de extrema importância para o tratamento, pois “essa luta entre médico e paciente, entre intelecto e vida instintual, entre conhecer e querer ‘dar corpo’, desenrola-se quase exclusivamente nos fenômenos da transferência” (Freud, 1912/2010, p. 146, grifo próprio).

O pai da psicanálise explica que o fenômeno da transferência é capaz de causar no profissional as mesmas sensações de conflito que o paciente vivencia. Essa ferramenta se torna “a mais forte alavanca do sucesso, e [ao mesmo tempo] o mais poderoso meio da resistência” (Freud, 1912/2010, p 137); ou seja, a transferência, do mesmo modo que demonstra o meio para a cura do paciente, é o perigo do fracasso da análise.

Como analista, parecia que eu tinha assumido também um lugar na plateia, preocupado com as bailarinas, que tendiam a aumentar seus passos, mesmo na expectativa de diminuí-los, e, ao mesmo tempo, capturado pela apresentação do espetáculo, que se desenrolava sem a necessidade de qualquer narrativa; elas se apresentavam apenas por meio de movimentos e parecia que isso bastava. A imagem era suficiente para hipnotizar o espectador.

As bailarinas eram mudas e eu precisava fazer com o que o palco deixasse de ser apenas um cenário de danças silenciosas para, finalmente, abrir espaço a um monólogo com narrativas do autor. Era necessário que eu me reconfigurasse como analista, pois já havia caído na armadilha transferencial de ser capturado pela imagem.

Procurei, assim, buscar um lugar mais “profundo” que o espetáculo pudesse oferecer. Saí das poltronas da plateia e resolvi adentrar os bastidores…

 

A imagem do avesso

Com os dados da experiência transferencial, na qual eu era capaz de sentir uma angústia junto com Verônica em relação às aparições e às desaparições das manchas de vitiligo, comecei a investigar com ela os bastidores, o lado avesso das marcas.

O que havia por dentro que lhe saltava para fora? Quais situações lhe causavam desconforto, capaz de sentir uma angústia tão intensa que afetava a superfície do seu corpo?

Aos poucos, enfim, Verônica começou a expressar o medo de perder o marido. “Se ele me trair ou quiser divorciar, eu prefiro morrer”. Com isso, foi possível tecer as nuances de sua dificuldade em existir sozinha, sem a ancoragem do outro.

Em determinado momento do tratamento, a paciente engravidou e sofreu um aborto. As únicas reações que conseguiu expressar se relacionaram ao momento em que estava no hospital para fazer a curetagem: “me senti bem por ter o meu marido comigo”. “Ver ele lá, com aqueles olhinhos de preocupação, me fez sentir alguém”.

Verônica se ligava ao máximo àqueles pelos quais tinha afeição. Ligação tamanha que chegava a ser uma fusão, a ponto de ela não se reconhecer. Precisava deles para existir e sentia que tudo isso podia, facilmente, escorrer pelas mãos.

A paciente também confessava ser “muito apegada” e enfatizava frases como: “o meu jogo de talheres”, “a minha louça”, “o meu carro”, “o meu marido”, “a minha casa”. Eram ciúmes – tanto de coisas quanto de pessoas – que invadiam seu corpo, de modo a sentir um queimado percorrendo a pele.

Ela precisava estar atenta para não perder, não podia desviar os olhos daquilo que considerava precioso. Era uma ligação que dependia da visão. Tudo tinha que estar sob vigia e, na perspectiva da paciente, isso preservaria a estadia da pessoa, ou do objeto material, junto com ela – nela.

Longe da visão, nada sentia. O que os olhos não veem o coração não sente?

Assim, na margem entre a preservação do que a fazia existir e o medo da perda, a paciente começou a desvelar conflitos com a figura da sogra, que, segundo ela, era uma ameaça para a sua relação conjugal. A mera aparição dela dava-lhe “nos nervos”.

No passado, durante o namoro com o cônjuge, a sogra rivalizava com Verônica e sutilmente se declarava contra o relacionamento dos dois. Quando ficava perto dela, Verônica sentia um queimado percorrendo o peito, chegando até a garganta, dificultando a saída das lágrimas e, muito menos, das palavras. Chegou a declarar que era inaceitável a ideia de ter um filho pelo fato de, consequentemente, dar um neto para a sogra. 

A presença da sogra era sentida, na pele, como invasiva.

Buscando justificativas para tamanha aversão à mãe de seu marido, Verônica recorria, novamente, à imagem: “mulher simplesinha demais”, “não sabe se vestir”, “feia”. Por isso, desejava o máximo de distância possível, pois a sogra representava algo que podia adentrar sua casa e impregnar.

A imagem era contagiosa. Na concepção de Verônica, ver determinadas coisas poderia fazê-las grudar nela. A aparência de sua rival lhe incomodava mais do que o normal. Embora para muitos essa situação parecesse banal, o que a paciente via da sogra lhe causava uma angústia profunda, sentida à flor da pele.

Em suma, elucidava-se o mecanismo que mantinha Verônica em constante sofrimento: ver e se ligar. O que os seus olhos capturavam deixava marcas, ligando-se de tal forma que as sentia na própria pele. Não à toa que o nome de seu conflito anunciava isso: vi-ti-ligo. Ver (vi) e ligação (ligo).

As sessões continuavam e o discurso de Verônica parecia o mesmo. “Não quero que ela lave minha louça”, “ela tem maus hábitos”, “ela é feia…”. Verônica deixava evidente a sua incapacidade de ir para outros caminhos além da superfície. Ficava presa no que via e qualquer tentativa de relativização era quase nula.

Seria possível os olhos enxergarem além da superfície da imagem?

Provavelmente, toda a questão era mais complexa do que simplesmente uma “imagem negativa da sogra”. Eu continuava tentando aprofundar esses impasses que, a meu ver, pareciam triviais demais. A sensação era de que a análise estava “superficial”, parecendo demandas de conselhos comportamentais. O olhar também passou a ser uma questão perturbadora no setting, parecia que a visão dificultava a escuta.

Sempre frente a frente, olho a olho, a análise acontecia na esfera de dizer, constantemente, coisas óbvias, como: “você é diferente das outras pessoas”, “o amor de um filho é diferente do amor de um esposo”, “tem que saber dizer não”, entre outras. Parecia uma novidade para a paciente se ver com autonomia diante dos outros e, na análise, era crucial marcar isso; caso contrário, a fusão acontecia.

Ofereci o divã, Verônica recusou-se a ir… falar, exigia, olhar.

A minha aposta era de que, sem a visão condensadora do outro, a paciente poderia começar a ligar-se consigo mesma. No entanto, a sua recusa em utilizar o divã me fez perceber que, apesar de tudo, o olhar do outro a sustentava de alguma forma.

“Eu não consigo ver e deixar de lado, preciso aprender a me desligar.

Lacan, em sua teoria do Estádio do Espelho, desenvolve a ideia de que o processo de constituição do sujeito ocorre de maneira transindividual. Isso significa que o Eu só adquire consistência a partir da relação espelhada com o outro, pois é somente outra pessoa que pode servir de modelo para a sua constituição e que pode, também, atestar sua identidade diante do espelho, diferenciando-o da outra imagem que é vista. Para o autor, visa-se “compreender o estádio do espelho como uma identificação, ou seja, a transformação produzida no sujeito quando ele assume uma imagem” (Lacan, 1966/1998, p. 97.)

Ocorre que, diante do estádio do espelho, muitos podem ficar aprisionados nessa forma “espelhada” de se relacionar, em uma dinâmica especular, dualizada e quase fusionada, assim como acontecia com Verônica, para quem o registro do simbólico era precário e não fazia uma boa intermediação entre ela e o outro.

As manchas no corpo da paciente revelavam sua tentativa eminente de se diferenciar, porém de maneira tênue, muito frágil, existindo em um descompasso entre “ser diferente do outro” e “ser o outro”.

A aparição do vitiligo está num tempo lógico anterior ao da alteração deliberada: está no tempo de estádio do espelho. Mais precisamente, numa provável “falha” nesse estádio. Por algum motivo, não se deu corpo (Carvalho Neto, 2021, p. 69, ).

Não se dando corpo no estádio do espelho, Verônica produziu um recurso na pele para defendê-la da invasão do outro: uma barreira, em formato de manchas, que lhe destacava constantemente que ela era alguém. Uma súplica visual de que havia um corpo ali e de que ele precisava estabelecer fronteiras em relação ao outro. 

Stelio de Carvalho Neto  (2021, p. 68, grifo próprio) reitera: “O Vitiligo faz um corpo num sem-corpo”.

No caso de Verônica, as manchas podem ser entendidas como uma manifestação física dessa luta interna pela diferenciação e pela necessidade de se afirmar como um sujeito autônomo, separado do outro. A fragilidade e o descompasso entre a busca pela diferenciação e a fusão com o outro faziam com que a paciente ficasse presa em uma dinâmica especular e imagética, em que a imagem do outro refletia-se diretamente em sua própria imagem, sem uma mediação simbólica adequada.

Estava claro que as fronteiras entre a paciente e a sogra não estavam bem demarcadas. Era necessário aprofundar essa questão para que o tratamento pudesse seguir. Porém, o discurso parecia paralisado no dilema da vigilância implacável da sogra, e Verônica parecia incapaz de mergulhar nas profundezas de si mesma.

Como proceder para tornar o assunto mais profundo se a superfície da imagem já era capaz de afogar a paciente?

Enfim, para não mergulhar sozinho nas águas turvas de um mar narcísico, decidi respeitar o limite do raso sinalizado pela paciente e comecei a adotar a estratégia de recolher os significantes soltos na superfície – aqueles que Verônica podia enxergar – e de usá-los para demarcar a instância do Eu que não conseguia fazer isso por si só.

Através de uma “transferência espelhada”, em que eu podia ocupar o lugar daquele que, no estádio do espelho, a diferenciava das imagens alheias, comecei a não me preocupar mais com a tão demandada “profundidade” e passei a fazer uso da superfície como a ferramenta principal do trabalho.

Sendo um espelho com voz, o palco do setting analítico deixou de ser apenas refletido por imagens e passou a adquirir consistência por meio das palavras; estas também puderam ser refletidas através de um eco, permitindo que Verônica escutasse o que ela mesma dizia e se reconhecesse em um corpo que falava.

“Feinha”, “não sabe se portar”, “mulher humildezinha”, “pobrezinha”, todas essas palavras que a paciente usava para se referir à sogra, em sessões passadas, já as havia usado para se intitular. Ao acessar seu próprio reflexo no que dizia, Verônica se surpreendeu no reconhecimento daquilo que mais temia. Então, ela se permitiu ir mais fundo…

Revisitando a sua história de vida, a paciente foi aprofundando seus conflitos a partir da relação com aqueles com quem deveria ter uma “ligação mais forte”. Primeira filha, sempre se sentira rejeitada pelos pais. A mãe não preparava refeições e seu pai se recusava a fazer pequenos atos de cuidado, como levá-la para o hospital quando ardia em febre ou para a escola quando chovia.

Durante a infância, não suportava ficar distante da mãe. Há relatos de que, quando bebê, a mãe não podia tirá-la dos braços, pois o choro era constante se ficasse descolada dela.

Verônica relembrava: primeiro dia de creche, aos quatro anos, a mãe “a deixara” na escola, sem razões – uma vez que a genitora não trabalhava –, e Verônica sentiu-se abandonada. Os registros desse momento eram fotográficos… lembrava-se perfeitamente e descrevia com detalhes a “roupinha” em que estava, bem como a sandália que lhe foi colocada. Tentou fugir da creche, mas sem sucesso. Não conseguia dormir nem fazer as atividades de socialização com as outras crianças do local.

Mais tarde, a relação da paciente com a genitora se tornava ainda pior. Verônica expunha cenas em que, quando adolescente, sua mãe usava suas roupas e pertences, sem permissão, para ir a festas que eram mais adequadas à idade da filha. A mãe se vestia como uma garota às custas de Verônica e a rivalidade entre as duas se dava de igual para igual, sem a inserção de um terceiro que pudesse dar um “basta” no caos que era a convivência familiar.

A mãe de Verônica revelava-se como uma pessoa invasiva. As duas moravam em uma casa “humildezinha e pobrezinha”, sem portas nos quartos ou qualquer delimitação de espaço entre elas. A qualquer momento, a rival podia entrar, ver e pegar o que quisesse, sem que a paciente conseguisse expressar um “não” que barrasse tais ações.

Quanto ao pai, sempre ausente e não demonstrando qualquer afeto, a paciente recordava apenas uma frase que ele sempre lhe dizia quando criança, referindo-se aos conflitos conjugais que ele tinha com a esposa: “Você tem que agradecer que sua mãe casou comigo, porque senão você teria cabelo crespo e pele escura, igual o homem com quem ela quase se casou antes de mim”.

Verônica se declarava “racista”. Martirizava-se por ser assim, dizendo que “é mais forte do que eu”. A partir da frase do pai, tornou-se um terror para ela imaginar-se negra, com vitiligo, tendo suas manchas ainda mais destacadas. 

A psicanalista Isildinha Baptista Nogueira escreve a respeito do racismo segundo uma visão psicanalítica e aponta o fator estrutural desse problema na sociedade, explicando que se trata de um fenômeno aprendido em que o negro, historicamente, é marcado pela rejeição e pela anulação do próprio corpo. Consequentemente, nas palavras dela, a relação perversa da sociedade com os negros os torna um “não-sujeito”: “Negar e anular o próprio corpo não torna o sujeito ‘outro’, visto que só existimos como sujeito em relação ao outro, à alteridade; portanto, ser sujeito é ser outro e ser o outro é não ser o próprio sujeito” (Nogueira, 2021, p. 111).

Doravante, com a frase do pai, Verônica tinha passado “muito perto” de ser negra, e, assim, precisava marcar, constantemente, a sua branquitude em um olhar sempre taxativo à diferença: “ele negro – eu branca”. Dessa forma, garantia um lugar de “discriminação” dela e do outro (no sentido duplo da palavra). 

Freud (1921/2011) trabalha o conceito de narcisismo das pequenas diferenças, o qual geralmente se refere ao apego aos detalhes pelos quais pessoas ou grupos se agarram para se distinguir e promover desavenças. Diante de uma sociedade racista e de uma classe média composta por diversos segmentos, a paciente se apegava aos menores pertences para destacar sua própria distinção. Verônica revelava, em constância, um sujeito que precisou se marcar muito para aparecer.

Toda vez que duas famílias se unem por casamento, cada uma delas se acha melhor ou mais nobre que a outra. Havendo duas cidades vizinhas, cada uma se torna a maldosa concorrente da outra; cada pequenino cantão olha com desdém para o outro. […] Já não nos surpreende que diferenças maiores resultem numa aversão difícil de superar, como a do gaulês pelo germano, do ariano pelo semita, do branco pelo homem de cor (Freud, 1921/2011, p. 57, grifo próprio).

Ainda, a paciente relatava que sempre fora apaixonada, desde criança, por um primo que a esnobava e que a fazia de “gato e sapato”. Suas associações em torno do início do vitiligo datavam justamente dessa época. Descobrira a paixão e, junto disso, a barreira de anunciar esse amor, pois tratava-se de um romance proibido por serem da mesma família. Na lógica de Verônica, desde sempre, precisava “dar o couro” para merecer o amor de alguém.

Adentrando esse amor renunciado, a paciente abordou as questões envolvendo a mãe de seu primo. De acordo com a paciente, essa tia seria a primeira a rejeitar o amor que os dois primos poderiam sentir.

Pouco a pouco, esclarecia-se o grande dilema de Verônica. As dificuldades em torno das figuras maternas ficavam cada vez mais explícitas ao longo das sessões. A tia – a mãe de seu amor. A sogra – a mãe de seu marido. E, acima de tudo, a própria mãe. Todas elas figuras intrusivas e rejeitadoras.

O significante mãe, colado no significado “rejeição” e, mais especificamente, “invasão”, fazia com que Verônica, ao se relacionar com essas mulheres, atualizasse o conflito vivido no passado com a mãe. Precisava garantir seu lugar e, por isso, encarregava-se de marcar, enfaticamente, a diferença entre elas, embora capengasse, conseguindo apenas uma fronteira bastante permeável para distanciá-las.

Até então, não havia uma noção de causalidade, para a paciente, entre o que lhe ocorria com a sogra e a sua relação caótica com a mãe. Portava-se com a mãe de seu marido da mesma maneira que a criança Verônica tinha de se portar, assegurando tudo, dormindo de olho aberto, apegada ao máximo para garantir um corpo autônomo e para não ser invadida, como ocorria repetidamente no passado.

Enfim, com o percurso de análise, parecia ter sido feita a ligação entre as marcas e o afeto, a ponto de o vitiligo nunca mais ser o assunto central das sessões…

Diferentemente da imagem que não permitia dialética ou ponderação, as palavras foram, na análise, a arma para os afetos encontrarem a ligação apropriada; livrando Verônica, um pouco, da defesa incansável de se diferenciar.

De um sujeito que se via “manchado”, incapaz de aparecer devido às sombras brancas no corpo provenientes do assombro da mãe, a seguinte intervenção foi o motor para que a paciente adotasse um novo posicionamento: “você não é uma mulher manchada, mas sim marcada”.

Eram marcas da vida que precisavam ganhar voz, na margem daquilo que só tinha imagem, culminado a ganhar palavras.

Enfim, tomada de posse de um corpo que antes suplicava por visibilidade, surpreendentemente, no auge da elaboração de seus conflitos com a figura materna, Verônica começou a gerar um corpo em seu corpo. Grávida, viu-se no desafio de ser aquilo que mais causou impasses em sua vida: mãe.

 

A ligação mais profunda

Verônica dá luz a uma menina, a quem deu o nome de Vitória. Com uma gravidez de risco, seguiu à risca as recomendações médicas, incluindo uma dieta restrita e exercícios físicos. Consciente da identificação que teve da maternidade, se esforça para garantir à filha uma experiência diferente daquela que viveu.

No entanto, como ser mãe diante dessa identificação? Como agir na margem entre cuidado e invasão?

Freud aborda uma forma de Identificação que ocorre por meio da “via regressiva, através da Introjeção do objeto no Eu” (Freud, 1921/2011, p. 65), considerada pelo autor como a base das identificações melancólicas. O sujeito Introjeta o objeto no Eu, preservando-o de modo que fica anulada sua própria identidade – e passa a fazer recriminações contra o próprio Eu; recriminações que, na verdade, seriam direcionadas para o objeto identificado: “De maneira que temos a chave para o quadro clínico, ao perceber que as recriminações a si mesmo como recriminações a um objeto amoroso, que deste se voltaram para o próprio Eu” (Freud, 1917/2010, p. 179).

Dessa forma, é possível pensar que a paciente mantinha o objeto identificado – sua mãe – protegido nas sombras, sem acessá-lo diretamente, atualizando o conflito vivido com ela em figuras substitutas, como a tia e a sogra… Ao recordar e elaborar o conflito com a mãe, Verônica parece ter deixado de lado as autorrecriminações que sempre havia dirigido a si mesma, rotulando-se como “inadequadinha” e “desajeitadinha”, pois estas, na verdade, estavam relacionadas ao objeto, àquela contra quem Verônica tinha várias recriminações em relação à sua postura como mulher e como mãe.

O pai da psicanálise ensina que a dificuldade do melancólico reside, justamente, na diferenciação do objeto identificado, uma vez que “a sombra do objeto recai sobre o Eu” (Freud, 1917/2010, p. 67, grifo próprio).

Enfim, diferenciada, ao menos um pouco, do objeto identificado, Verônica assiste a uma nova cena, reeditando um cenário o qual seus olhos nunca foram capazes de reconhecer:

Precisando trabalhar e deixar Vitória sob os cuidados de sua mãe por meio período, Verônica observa uma mulher preocupada, cuidadosa e atenciosa que, agora, sendo avó, parecia recuperar o melhor da maternidade que não havia sido registrado pela paciente no passado. Salta ali, na pele, uma sensação diferente daquelas que sempre experimentou…

Verônica pôde ser filha, finalmente. Uma sensação de pertencimento colabora com o seu processo de construção da maternidade, em que, apesar de os tropeços das sombras das identificações insistirem, Verônica explora, de forma um pouco mais autêntica, a sua própria maneira de ser mãe, mulher e profissional; fazendo uso produtivo daquilo que sempre foi a sua maior tensão: a diferenciação.

Na pele, onde residiam seus tormentos sob a forma de manchas, Verônica encontra a sensibilidade; o órgão que, não obstante suas marcas, é capaz de acolher as mais variadas sensações e de endereçá-las para seus devidos destinos, permitindo, um pouco mais, a experiência de habitar a própria pele. 

Desligando-se do outro, é ali, onde ela não via, que Verônica encontra uma nova via, uma possibilidade inédita de ligação, aquela mais importante que nenhuma imagem é capaz de alcançar: a ligação consigo mesma.

A paciente pensa gerar um segundo filho, além de almejar a formação em psicanálise, sabendo que sua sensibilidade pode colaborar para o desenvolvimento da autonomia de outras pessoas.

Contudo, em meio à correria do trabalho, das tarefas domésticas e da maternidade, Verônica decide se desligar de seu analista, chorando por tal decisão. Sentindo a necessidade de ter um “tempo de qualidade” com a sua filha – não abrindo mão de alimentá-lo em seu único horário disponível –, se autoriza a seguir em frente com seus dilemas, sem depender da antiga ancoragem no outro, da qual eu fui suporte por um bom tempo.

Verônica se despede, dizendo: “a gente se vê, em breve”, alegando retorno futuro e deixando, junto com a sua interrupção, as marcas que ela registra na minha experiência como clínico. Marcas que não precisam de imagens para serem lembradas, pois continuam ecoando em uma experiência sensível que atinge muito além da superfície…

Por fim, não a vejo mais semanalmente, como o foram por três anos de intenso trabalho. Sobre o seu retorno prometido, eu a aguardo, mas não espero, ciente de que, apesar de o vitiligo continuar no corpo de Verônica, agora, ela parece ter outras coisas mais importantes para ver.

 

referências

Carvalho Neto, S. (2021) Um Corpo Ad Hoc. In: Dunker, C., Ramirez, H. A. & Assadi, T. C. (Orgs.) A pele como litoral: fenômeno psicossomático e psicanálise. 2. ed. São Paulo: Zaggodoni, 2021; pp. 67-76.

Dunker, C. (2021) Corporeidade em psicanálise: corpo, carne e organismo. . In: Dunker, C., Ramirez, H. A. & Assadi, T. C. (Orgs.) A pele como litoral: fenômeno psicossomático e psicanálise. 2. ed. São Paulo: Zaggodoni, 2021; pp 77-110.

Freud, S. (1912) A dinâmica da transferência. In: Sigmund Freud Obras completas. Vol. X. Trad. P. C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Freud, S. (1914) Introdução ao Narcisismo. In: Sigmund Freud Obras completas. Vol. XII. Trad. P. C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Freud, S. (1917) Luto e Melancolia. In: Sigmund Freud Obras completas. Vol. XII. Trad. P. C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

Freud, S. (1921) Psicologia das Massas e análise do Eu. In: Sigmund Freud Obras completas. Vol. XV. Trad. P. C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Freud, S. (1923) O Eu e o Id. In: Sigmund Freud Obras completas. Vol. XVI. Trad. P. C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011.

Lacan, J. (1964) Seminário, livro 11: os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Trad. M. D. Magno. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.

Lacan, J. (1966) O estádio do espelho como formador da função do eu. In: Escritos. Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1998.Nogueira, I. B. (2021) A cor do inconsciente: significações do corpo negro. São Paulo: Perspectiva, 2021.

 

Alencar Tognon

Psicanalista em formação continuada pelo Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae. Psicólogo especialista em “Psicanálise Clínica: o sujeito contemporâneo” pela UNIFEV (Centro Universitário de Votuporanga). Docente de psicanálise em pós-graduação no interior de São Paulo. Além da experiência em consultório, atuou na assistência social especializada com mulheres vítimas de violência doméstica e em clínica de internação. Autor de artigos publicados sobre psicanálise.