“Olhamos e vemos, e um tanto do que vemos nomeamos invisível. Sim, a invisibilidade não é o nome de uma ausência – quase sempre, pelo contrário, o invisível é da ordem do excesso, a invisibilidade é um modo de ver”
Martina ‒ uma das personagens do livro A família, de Sara Mesa (2024) ‒ vive com a família da tia materna desde que se tornou órfã, há uns quatro meses, tempo mais do que suficiente para se ver inundada por interrogações sobre a nova família e sobre seu funcionamento, permeado por segredos e silêncios. Curiosa, a menina ensaia algumas perguntas, mas logo aprende que de alguns assuntos, é melhor não falar.
“Um desses assuntos era seu passado e, dentro do passado, sua verdadeira mãe. O próprio sintagma, verdadeira mãe, resultava ferino para a nova mãe, porque, seguindo a lógica do antônimo, era como chamá‒la de falsa. A menina não sabia como devia nomear uma palavra – mãe – que agora era ocupada por outra pessoa” (Mesa, 2024, p.176).
Martina então concluiu: perguntar mancha.
Este texto foi escrito a partir de uma apresentação no encontro de final de ano do Instituto Gerar de Psicanálise, realizado em dezembro de 2023. Ele é a confluência de anos de pesquisa sobre a família, a parentalidade, a criação das crianças e as crianças separadas, de incômodos e estranhamentos, de restos e resíduos que foram se depositando nesses anos de clínica e de estudos. Ele é também o resultado do reconhecimento, na pele, daquilo que se inscreve na experiência de encontro amoroso de uma criança pequena com sua Outra cuidadora.
Tornou-se quase banalizada a fala de que é preciso uma aldeia para se criar uma criança. Mas o que é mesmo preciso para criar uma criança? Entre nós, a família se normalizou como o modo hegemônico. Mas, desde sempre, outros modos de cuidar (nos âmbitos doméstico, comunitário ou institucional) e outras cuidadoras (empregadas domésticas, educadoras e babás) vêm se mostrando como lugares possíveis para a criação das crianças.
A normalização da família como lugar indispensável para se criar crianças não se estabeleceu sem a desvalorização e as tentativas insistentes de apagamento de outras formas de organização e de outras cuidadoras. Como podemos avançar na direção de contar com a família como um dos modos possíveis para a criação das crianças? Como reconhecer outros modos ou outras cuidadoras sem que fiquem sempre referidos a esse modelo e de saída vistos como insuficientes e deficitários? Como reconhecer outros modos ou outras cuidadoras sem pensa-los imediatamente como substitutos ou como complementos da família, sem incorrer em uma hierarquização dos cuidados e das cuidadoras?
A família como resíduo
A principal referência na psicanálise lacaniana quando o tema é a família e a criação das crianças é a “Nota sobre a criança”, manuscrita por Lacan e endereçada a Jenny Aubry em 1969.
Na “Nota”, o psicanalista estabelece como objetivo reduzir a família à condição mínima para a transmissão dos elementos necessários para que haja sujeito, localizando o que é irredutível na transmissão: irredutível como necessário à experiência.
Para Lacan, na sua função de resíduo, o que persiste, para além do formato de família ou de quem ocupa o lugar, é a relação primordial com a criança, “que é de outra ordem que não a da vida segundo as satisfações das necessidades, mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo” (Lacan, 1969/2003, p. 369). Com esta definição, o psicanalista também aponta para o que não é redutível a uma determinada época, para o que permanece independentemente das formas de conjugalidade, das ficções jurídicas e dos discursos dos especialistas da família.
A família como resíduo é o espaço primordial onde se instala a pergunta sobre o desejo do Outro. Do lado da criança, é de suma importância o que fica como resto e resíduo dessa experiência. Um resto que é também aquilo que causa, uma vez que lança o sujeito a armar sua resposta singular.
A “Nota” é tão pequena quanto intrigante! Lacan dirige esse manuscrito a Jenny Aubry, psicanalista que era responsável por uma instituição de acolhimento a crianças separadas na França (Parent de Rosan) e que conduzia pesquisas sobre a carência materna (naquela época, outras referências sobre o tema eram Bolwby e Spitz). Podemos dizer que Aubry sustentava uma pergunta sobre as condições de criação das crianças em espaços coletivos. Vale destacar que as crianças encontradas pela psicanalista ao assumir o orfanato, dadas as inúmeras separações sofridas, as condições precárias da instituição e dos cuidados recebidos, apresentavam intenso sofrimento psíquico e atraso no desenvolvimento, quadros muitas vezes próximos ao hospitalismo descrito por Spitz (1979/1998).
Dirigindo-se a Jenny Aubry, Lacan inicia sua Nota referindo-se ao “fracasso das utopias comunitárias”:
“Ao que parece, ao ver o fracasso das utopias comunitárias, a posição de Lacan nos lembra a dimensão do que se segue. A função de resíduo exercida (e, ao mesmo tempo, mantida) pela família conjugal na evolução das sociedades destaca a irredutibilidade de uma transmissão ‒ que é de outra ordem que não a da vida segundo as satisfações das necessidades, mas é de uma constituição subjetiva, implicando a relação com um desejo que não seja anônimo” (Lacan, 1969/2003, p.369).
Lembremos que a “Nota” é de 1969, época de grande efervescência cultural na França, de liberação sexual e de questionamento das instituições como o casamento e a família… e também o auge da criação de comunidades alternativas, um modo ‒ bastante idealizado, diga-se de passagem ‒ de prescindir da família.
Estaria Lacan decretando a ausência de condições para a criação de crianças nos espaços coletivos? Encontramos autores, como Leserre (2015), que assim o entendem:
“…trata-se do fracasso em substituir a família em relação à função de transmissão, uma função situada para além das necessidades. As comunidades ligadas aos cuidados das crianças podem muito bem cobrir as necessidades, mas o fracasso está ligado à transmissão de um desejo que não seja anônimo, já que o coletivo de uma comunidade é algo anônimo, digamos que a quantidade não faz o nome” (Leserre, 2015, p. 11, tradução livre).
Leituras como essa soam familiaristas, normativas e redutoras do escrito lacaniano. Entendo que as utopias comunitárias fracassam ali onde a família também fracassa, produz restos. Fracasso estrutural que cria furos na consistência dos ideais, seja de família, seja de criação de crianças ou de vida comunitária.
As utopias comunitárias fracassam porque “não há relação sexual” – aforisma lacaniano que aponta para a impossibilidade estrutural de recobrimento da falta. Falta ou perda necessária e incontornável para o sujeito. Tal formulação não só denota que não existe um ajuste perfeito, mas revela que sempre há um resto. E isso vale para todos.
Notem que o significante “coletivo” é o que se repete nas duas menções realizadas por Lacan. O psicanalista poderia então estar propondo que, para a criação de crianças nos espaços coletivos, o fundamental seria a relação primordial dos adultos com a criança, algo que pode acontecer na família, mas não depende exclusivamente do modelo familiar. Adultos que se ocupem das funções constituintes, as quais o autor designa como função materna e função paterna, nomeações que podem levar a pensar que são precisos um pai e uma mãe, mas que não necessariamente precisam estar referidas a um homem e a uma mulher, tampouco aos genitores. Lembremos que Lacan busca estabelecer o irredutível em uma transmissão… talvez justamente para que possamos pensar e formular a criação das crianças em outros lugares para além da família.
A “Nota” estaria posta – e, se não estiver, precisamos urgentemente situá-la ‒ na direção inversa à consistência da família como o único lugar possível para a criação das crianças. Não se trataria de uma defesa ou de uma promoção dos valores da família, mas, ao reduzi-la à sua função de resíduo, de localizar e permitir pensar que essas condições podem estar presentes em outros lugares ‒ como espaços coletivos, por exemplo ‒ e por outros cuidadores – não necessariamente parentais – desde que façam operar o que é irredutível em uma transmissão.
Outras normalidades na criação das crianças
Cláudia Fonseca, antropóloga radicada no Brasil, sustentada em uma primorosa pesquisa etnográfica, identifica e reconhece dinâmicas familiares alternativas à família nuclear, “…que apesar de não se encaixarem no modelo dominante de família, gozam de popularidade e até legitimidade entre determinados setores da sociedade” (Fonseca, 2002).
A circulação de crianças é exemplo de uma dessas práticas familiares. No filme “Ciranda cirandinha”, de 1994, a partir do depoimento de mães, avós, madrinhas e crianças, a antropóloga mostra a trama das relações sociais que sustentam a circulação das crianças nos bairros populares de Porto Alegre.
Fonseca localiza e nomeia “outras normalidades” que não fecham necessariamente com as hegemonicamente aceitas e reconhecidas para se criar crianças. Uma vez que os desvios desta norma tendem a ser vistos como problemáticos, a autora destaca o quão importante é que “outras normalidades” não sejam identificadas como resultado da desorganização familiar, como deficitárias e insuficientes. “Outras normalidades” que fracassam tanto quanto a família, podemos acrescentar.
“Ressaltar os casos “positivos” não significa, portanto, que os problemáticos não existem. É reforçar a ideia de que tais comportamentos podem ser vividos e vistos como normais e daí, começar a imaginar outras normalidades que não fecham necessariamente com as hegemonicamente aceitas” (Fonseca, 2002, grifo da autora).
Ao insistir no reconhecimento de “outras normalidades” a autora também permite esvaziar a hierarquização dos modos de criar crianças, nos quais costumam estar fixadas no topo as famílias hétero e biparentais, e nos quais a maternidade costuma ser reconhecida como exclusiva, contínua e ininterrupta. Daí o título provocativo do artigo de Fonseca: “Mãe é uma só?”.
“Outras normalidades” podem apontar também para a possibilidade de suportar a diversidade. E talvez aí finalmente consigamos interromper a insistência sintomática de designar como “novas” famílias as diferentes configurações pelas quais as famílias podem se apresentar (Teperman, 2022).
Mães de criação e criação das crianças
Sabemos que os termos não são neutros e que tampouco o são os seus usos. Muitas vezes se introduz um novo termo na tentativa de propor uma nova lógica. Apesar de entender que só avançaremos como sociedade quando os cuidados, ou quando a criação das crianças for desfamiliarizada e desfeminizada, optei por manter o uso do artigo feminino ao referir-me às outras cuidadoras. Efetivamente são mulheres aquelas que majoritariamente se responsabilizam pelos cuidados em nossa cultura, embora não sejam as únicas detentoras dos recursos para promover cuidados, criar crianças, ocupar-se das funções constituintes do sujeito.
Ainda a propósito dos usos dos termos, optei por “criação das crianças”, pois, essa expressão, além de se referir ao cuidado de alguém em crescimento, inclui também o ato de criar, inventar. Não é incomum ouvirmos de uma cuidadora: “fui eu quem criou!” e, como bem dizem Barros e Vieira (2015, p. 105), “ambos são criados: o menino é criado pela mãe, e a mãe é criada, como mãe, pela presença do menino”. Vejam então que, embora costumemos designar “mãe de criação” aquela que se ocupa dos cuidados da criança na ausência da mãe, todas as mães são de criação.
Cuidados concomitantes?
Em “Algumas reflexões sobre o abandono materno”, de 2009, Claudia Fonseca, retoma os estudos acerca dos “efeitos colaterais problemáticos” da “teoria do apego” (John Bolwby, anos 30) no que tange à crescente culpabilização materna. A “teoria do apego” teria sido a que mais contribuiu para o imperativo do vínculo exclusivo entre a mãe e seu recém-nascido. Fonseca refere-se a essa teoria sobre os danos causados ao bebê pela separação de sua mãe como um “monotropismo” infantil.
Este é um importante elemento a ser considerado na construção do enunciado “mãe é uma só” e na sua conversão em um imperativo ao longo dos anos. Monotropismo é um interessante modo de nomear as teorias referidas por Fonseca, ao sustentarem que se trataria de um e apenas um lugar, cuja falta poderia ser avassaladora para o bebê e diante da qual, quando muito, poderíamos almejar a possibilidade de uma substituição (a qual seria sempre um remendo).
Recentemente, escutei uma fala de Geni Nuñez¹ acerca do tema da não-monogamia, em que ela marcava a nossa dificuldade cultural com a concomitância. Reconhecemos que uma pessoa pode ter várias relações amorosas ao longo da vida, relações que se sucedem, mas criamos resistência à ideia de “ao mesmo tempo” ao instituirmos a monogamia. Essa dificuldade também incidiria sobre outros campos da experiência, como a fé e os afetos.
Ancorada em referências como Ailton Krenak e Mestre Bispo, Nuñez nomeia a impossibilidade de conviver de maneira saudável com a concomitância, com a diversidade e com a multiplicidade como um “sistema de monocultura”: “Para além de uma questão de quantidade, a monocultura não é sobre o “um”, é sobre a afirmação deste “um” mediante a negação, ataque e destruição do que é produzido como o “diferente”, como o “outro” diante dessa norma” (Nuñez, 2024, p. 398).
Vejam que reconhecer a concomitância nos cuidados é fundamental para que possamos legitimar o lugar que outras cuidadoras podem ocupar na criação das crianças. Que exista mais de uma cuidadora principal não resulta necessariamente de uma situação de carência e insuficiência materna. Que exista mais que uma cuidadora tampouco precisaria implicar em uma substituição da mãe. A perspectiva da concomitância nos cuidados com as crianças representa uma contribuição importante não só para a revisão das teorias sobre o monotropismo e sobre seus efeitos nefastos, como para o reconhecimento das marcas que se imprimem na subjetividade das crianças a partir dos cuidados promovidos por outras cuidadoras.
Gostaria de acrescentar ainda que a ideia de concomitância é central para que possamos desinvisibilizar a multiplicidade do cuidado na criação das crianças, e poderia também contribuir para o esvaziamento das práticas de apagamento ou de a aspiração a um corte limpo de outras cuidadoras, práticas que examinaremos a seguir.
O apagamento das cuidadoras que criam as crianças no espaço doméstico
Em “A mãe preta e o objeto de amor nas sociedades colonizadas: o apagamento das babás na história da psicanálise”, Marino et al. (2021) ‒ sustentadas em importantes referências sobre o tema, como a antropóloga Rita Segato² ‒ mostram como as babás e as amas de leite sofreram um processo de apagamento da historiografia psicanalítica e do romance familiar burguês, ainda que representassem um importante elemento no processo de constituição da subjetividade. Perguntam: “Então, seria possível uma abordagem do desenvolvimento psíquico sem levar em consideração todas essas marcas do corpo dentro das particularidades de brasileiras e brasileiros?” (Marino et al., 2021).
Pereira (2011, p. 148) vai na mesma direção: “Essa relação, tão íntima e fundadora, tão complexa e ambígua, está na base dos processos de constituição das subjetividades e da socialização no Brasil”.
Tal apagamento parece remontar às origens da psicanálise, se observamos as importantes lembranças e registros de Freud acerca da sua babá, assim como a presença da figura da babá e de outras cuidadoras em seus casos clínicos, sem que, contudo, o psicanalista tenha inserido essas personagens no romance familiar do neurótico.
“As babás, e as criadas em geral, são de fato onipresentes no romance familiar dos círculos de Freud: o menino Hans, que tinha fobia por cavalos, cavalga a empregada e a intima a tirar a roupa; o “homem dos lobos”, como Freud, também tivera uma babá camponesa, que lhe contava histórias religiosas; Dora tinha duas governantas, uma da qual gostava, outra que abominava – além do fato de a babá das crianças da família K ter sido seduzida pelo dono da casa; Anna O. também gostava de uma governanta e detestava outra – e Anna Freud também teve uma babá católica, a quem amava. A filha mais velha de Freud, Mathilde, teve uma ama de leite, raramente mencionada, e a família Freud manteve relações com sua família durante muitos anos” (Corrêa, 2007, p. 68).
Contudo, há um breve comentário de Freud no qual podemos notar que o psicanalista intuía a importância das babás na criação das crianças:
“A natureza e a qualidade das relações da criança com as pessoas do seu próprio sexo e do sexo oposto, já foi firmada nos primeiros seis anos de suas vidas. Ela pode posteriormente desenvolvê-las e transformá-las em certas direções, mas não pode mais livrar-se delas. As pessoas a quem se acha assim ligada são os pais e os irmãos e irmãs. Todos que vem a conhecer mais tarde tornam-se figuras substitutas desses primeiros objetos de seus sentimentos. (Deveríamos talvez acrescentar aos pais algumas outras pessoas como babás, que dela cuidaram na infância)”. (Freud, 1914/1974).
Relegados a um assunto doméstico ou menor, os cuidados efetuados pelas amas pretas e pelas babás têm sofrido reiteradas tentativas de apagamento. Pouco se teorizou ou pouco se reconheceu acerca da transmissão desejante que pode operar a partir dessas outras cuidadoras, não parentais.
Vale destacar que Françoise Dolto foi uma psicanalista que não se furtou a localizar de babá como lugar desejante, com incidências na constituição psíquica das crianças a seus cuidados. No documentário “Você escolheu nascer” há o registro do sofrimento de Dolto quando bebê diante da separação abrupta da figura amorosa de sua babá irlandesa. Maud Mannoni também sofreu uma separação traumática de sua babá cingalesa (Fendrik, 2007). Vejam que na história dessas duas mulheres, psicanalistas pioneiras na psicanálise com crianças, encontramos o registro da separação de suas babás na primeira infância e o reconhecimento das funções constituintes operadas por essas cuidadoras. Nos dois casos, assim como no caso de Freud, as babás eram estrangeiras. Mas essa história vai ficar para outro momento…
A criação das crianças e a aspiração a um corte limpo
A produção política sobre o que é “natural” nas relações familiares é um processo atualizado a cada novo dia. Fonseca (2009) conta que, a partir da década de 60, nos Estados Unidos, concebendo a família “natural” como aquela na qual há apenas um pai e um mãe, nos casos de famílias adotivas, passou-se a pretender apagar os rastros e as memórias dos outros pais. Os arquivos de adoção, a partir dessa época, passaram a ser chaveados, garantindo uma “rutura limpa” entre as crianças adotadas e suas famílias de origem.
“Analistas que trabalham no campo de atendimento a crianças em diferentes partes do mundo descrevem o extremo desconforto de profissionais diante da possível separação da mãe com seus filhos (Motta 2005, Gaas 2004). Mas nem sempre lembram que boa parte desse desconforto é devida à radicalidade de medidas legais que preveem uma rápida transição entre colocação em lar substituto e adoção plena – implicando não somente separação física (o que, em muitos casos, poderia ser uma decisão consensual envolvendo pais biológicos), mas também um “corte limpo”, sem quaisquer pistas ou informações ligando a criança a seus pais e parentela de origem. Em outras palavras, caberia estranhar não a transferência em si, e sim a aspiração a um “corte limpo”. (Fonseca, 2009, p. 68)
O “corte limpo” (Fonseca, 2009) foi também uma prática frequente nos casos de sequestros de crianças na ditadura militar argentina. O regime militar se apropriava dos filhos dos desaparecidos (pessoas presas, sequestradas e mortas durante a ditadura) para, sob a proteção do sigilo da adoção, apagar suas genealogias e entrega-los “limpos” em adoção.
Em nome de uma suposta proteção à infância, justificavam-se práticas violentas e obscenas como o sequestro de crianças e o apagamento de suas origens.
Presenciamos também a implementação desta mesma lógica no terreno das cuidadoras domésticas (historicamente as mães pretas, na atualidade as babás). E é possível verificar como esta aspiração vem operando nos casos de gestação por ovodoação³.
A tentativa de apagamento de outras cuidadoras, parentais ou não, insiste e produz restos. Sustentada por práticas instituídas no laço social, parece também ir ao encontro de uma fantasia, amparada no imperativo de que mãe é uma só, daquelas que se ocupam ou virão a se ocupar da criança (famílias adotantes, mães gestando por ovodoação, mães “oficiais” diante de outras cuidadoras).
Do lado da criança, como esta aspiração a um corte limpo pode operar? A criança se verá afetada por essas práticas violentas e, na relação com seus cuidadores oficiais/oficializados, a aspiração pode se converter em uma demanda à criança pelo apagamento das suas origens ou das memórias referentes ao tempo anterior àquela gestão parental. Diante de tal demanda, a criança armará sua resposta. A aspiração a um corte limpo pode afetar profundamente as crianças, pois muitas delas testemunham em seus corpos o investimento libidinal e as marcas inscritas por meio dos cuidados recebidos por outras cuidadoras. Como vimos com Martina, a criança pode concluir que perguntar mancha…
Um corte limpo?
Podemos dizer que a família suja a cena dos discursos sobre a parentalidade ao fazer furo nas pretensões de competência, assepsia e eficiência, reintroduzindo o que é da ordem do sexual, da imperfeição, dos excessos e das contradições (Teperman, 2012).
E as babás? Bem, as babás sujam a cena da família, ao fazer furo no enunciado “mãe é uma só”, ao apontar para sua insuficiência e ao reintroduzir o que é da ordem do sexual nos cuidados de forma incômoda. Como bem diz Lélia Gonzalez: é a babá “quem vai dar uma rasteira na raça dominante” (Gonzalez, 1984, p. 235), notadamente porque ela transmite o “‘pretuguês”.
Na clínica com crianças a aspiração a um corte limpo ou a um apagamento em relação às cuidadoras não parentais retorna no sofrimento das crianças com alguma insistência. São incontáveis os casos de bebês e de crianças em sofrimento diante da saída de uma babá, saída abrupta, sem despedidas, seguida por uma tentativa de substituição rápida, “para a criança não notar”. Pais e mães que muitas vezes só localizam a coincidência da saída da cuidadora com o início das manifestações de sofrimento da criança, ali, durante a sessão. Também mais de uma vez conduzi tratamentos de crianças sustentados pela presença e pela implicação de outras cuidadoras, como babás.
Para um último comentário acerca da aspiração a um corte limpo, convido as leitoras e leitores a assistir “O dia em que eu não nasci” (Cossen, 2011). O filme começa com a personagem principal, uma nadadora alemã, que durante uma escala em Buenos Aires observa uma cena de acalanto: uma mulher entoa uma canção de ninar em castelhano enquanto acalanta seu bebê. A nadadora alemã, muito comovida, começa a movimentar os lábios, murmurando os sons, as palavras da canção (arroró mi niño).
Mais adiante ‒ aqui contém spoiler – descobriremos junto com a protagonista que ela havia sido sequestrada na infância e adotada por uma família estrangeira durante a ditadura militar na Argentina.
Ali onde se aspirava a um corte limpo, em uma de suas vertentes mais brutais como no caso das crianças sequestradas durante a ditadura militar argentina, se produziram restos e resíduos. Resíduos que restam de uma operação, que fazem marca, que permanecem.
Rosine Lefort e um “tu és… sem atributo”
Rosine Lefort foi uma das pioneiras da psicanálise lacaniana com crianças. Atendeu durante alguns anos crianças pequenas separadas e acolhidas na Instituição Parent de Rosan (dirigida por Jenny Aubry). Eram crianças que manifestavam inicialmente quadros de hospitalismo, conforme a descrição de Spitz (1979/1998). Analisante de Lacan, Rosine registrou minuciosamente os atendimentos e, vinte anos depois, escreveu e publicou quatro dos casos atendidos.
Os atendimentos e, depois, os escritos de Rosine, são marcados por um trabalho minucioso de formalização da clínica. A psicanalista dedicou-se a circunscrever o lugar do analista na clínica com crianças pequenas, lugar diferente do materno e da maternagem. Um lugar marcado pelo desejo de analista, um desejo muito particular, mas ainda assim um desejo. Um desejo prevenido, como propõe Lacan, e que conta com um limite, o fantasma do analista.
“No caso Nádia, Rosine dá uma pista sobre o que entende como desejo de analista: endereça ao sujeito em análise uma base gramatical sobre a qual uma construção pode se dar, um “tu és… sem atributo”. É com esta frase, “tu és…”, que ela nos deixa saber como sustenta a direção do tratamento e, consequentemente, a causação psíquica de crianças tão pequenas e em grave sofrimento. […] Rosine respondeu com o desejo de analista para que cada criança pudesse se dizer. Para isso, ela não se colocou no lugar do cuidador, manteve-se afastada das manipulações do corpo de seus pequenos pacientes, que eram crianças até então “manipuladas sem serem faladas” (Petri, 2024).
O “tu és… sem atributo” formulado por Rosine Lefort funciona numa análise como um suporte para que um predicado possa se armar do lado do sujeito.
O “tu és…” dirigido pelo Outro à pequena criança sob seus cuidados deve oferecer atributos. Podemos então reconhecer o agente da função materna (que pode coincidir com a figura da mãe, mas pode também ser ocupado por outro cuidador, em um espaço doméstico, comunitário ou institucional) como o lugar em que se instala, a partir do desejo – e um desejo é sempre não anônimo ‒ um “tu és… com atributos”.
Um “tu és… com atributo”
Como bem diz Iaconelli (2024) no início de seu Manifesto Antimaternalista, “…não perseguimos nossos temas de pesquisa: são eles que nos perseguem e, desde o inconsciente, nos fazem sonhar e produzir” (Iaconelli, 2024, p. 15).
Vejam que ao longo dos anos pesquisei temas como a família e a parentalidade, as crianças separadas de suas famílias, a história e a clínica das psicanalistas que atenderam crianças separadas, como Rosine Lefort e Françoise Dolto, o lugar das cuidadoras na constituição psíquica dos bebês em instituições em tempo parcial – como a creche – ou em situação de acolhimento. Como até aqui eu não tinha olhado mais detidamente para o tema das cuidadoras domésticas, como é o caso da figura da babá?
No começo do ano passado, quando adoeceu e depois faleceu aquela que cuidara de mim a partir dos dois anos, a Mari, no trabalho de luto e despedida, só então me dei conta de como seu olhar, sua voz, suas palavras me acompanharam, desde sempre. E só então pude nomear que ela tinha sido, o que ela segue sendo: um lugar para mim, um lugar que resta, mesmo depois de sua morte.
Com isso, faço aqui minha homenagem à Mari, um dos meus primeiros encontros amorosos, aos dois anos. E faço também um reconhecimento das marcas que um encontro com uma Outra cuidadora, por meio de cuidados concomitantes, pode produzir numa pequena criança.
[1] Realizada no dia 07 de julho de 2024 na Feira do Livro do Pacaembu São Paulo (SP).
[2] “A babá não é tratada nem para abordar aspectos de sua subjetividade, nem de sua inserção social. Muito menos investiga-se a respeito de sua presença a partir da perspectiva das crianças que ela viu crescer, ou das mães ‘legitimas’ que a ela delegaram o exercício de uma parte importante da tarefa materna” (Segato, 2021, p. 233).
[3] Ver Teperman, D. W. (2019). Sangue não é água, a convivência também não. Revista Cult. Dossiê parentalidade e vulnerabilidades, ano 22, 2019, pp. 36-39.
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Cossen, F. (2010) O dia em que eu não nasci. Direção de Florian Cossen. Distribuição de Art Films e Serendip Films. Alemanha, 2011, 95min.
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Teperman, D.W. (2012) Família, parentalidade e época: um “nós” que não existe. (Tese de Doutorado) Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em: doi:10.11606/T.48.2012.tde‒16082012‒112951.
Teperman, D.W. (2022) A parentalidade a criação das crianças: novos restos? In: Bernardino, L.F. (org.) Infâncias em tempos distópicos, o que pode a psicanálise? Salvador: Ágalma Psicanálise, 2022.
Psicóloga, Psicanalista, mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo IPUSP e doutora em Psicanálise e Educação pela FEUSP. Coordenadora do curso Psicanálise na Parentalidade e na Perinatalidade do Instituto Gerar de Psicanálise. É autora dos livros Clínica Psicanalítica com bebês – uma intervenção a tempo (Fapesp/Casa do Psicólogo) e Família, parentalidade e época: um estudo psicanalítico (Fapesp/Escuta); e coorganizadora da Coleção Parentalidade & Psicanálise (Autêntica, 5 volumes, 2020).