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04_Entrevista com Maria Lúcia da Silva

Tatiane Zaram

Paulo Beer

Vera Iaconelli

No final da tarde do dia 24 de julho de 2024, tivemos a honra de entrevistar Maria Lúcia da Silva, grande psicanalista que dedica seu trabalho às causas raciais e ao movimento negro. Nesta entrevista, a psicanalista discorre sobre sua clínica e sobre seus atravessamentos pessoais até chegar nos dias atuais, afirmando que originalmente dedicou um tempo ao espaço da Psicanálise com Crianças. Dialogamos sobre o início de seus atendimentos infantis, sobre o apagamento histórico não apenas da negritude, como também das infâncias pretas, sobre as produções de textos acerca da saúde mental das crianças e sobre a clínica racializada.

transcrição

[Tatiane Zaram] Bom, sou Tatiane Zaram, psicanalista, e hoje eu vou estar entrevistando a Maria Lúcia da Silva. Primeiramente, gostaria de agradecer por estar aqui conosco, por ter dedicado o seu tempo para estar aqui. Nós estamos conversando um pouco, dialogando para a Revista Traço. Vamos falar desse edital: nós estamos [nos] dedicando para a psicanálise com crianças. E é muito importante a gente poder também estar aqui e ouvi-la sobre esse lugar da criança e [sobre] esse lugar de como foi o seu atravessamento. Então, eu gostaria de iniciar esta entrevista perguntando para você… […] o primeiro contato que nós tivemos, você falou: “Tatiane, originalmente, eu sou… eu trabalhei com crianças”. Você não chegou a falar “psicanalista com crianças”…


[Maria Lúcia da Silva] Eu falei “ludoterapeuta”.


[Tatiane Zaram] Ludoterapeuta. […] Eu sei um pouco da tua história de se autorizar como psicanalista, mas eu gostaria de entender um pouco… [de] você poder falar um pouco desse lugar, que você também trabalhou com crianças, para a gente depois falar de todo o seu atravessamento na clínica.


[Maria Lúcia da Silva] Bom, primeiro obrigada, Tatiane, de estar aqui, pelo convite. Espero poder contribuir com reflexões a respeito desse tema, que é um tema bastante caro e custoso para nós, negras e negros, poder pensar a infância. Eu não saberia dizer para você por que eu escolhi ludoterapia pra fazer na minha formação. Eu fiz uma formação numa faculdade particular, terminei minha formação em 1985 e… acho importante dizer por que que eu fiz essa formação, porque não é assim “ai, vou fazer psicologia, porque psicologia é importante”, não. Eu, quando descobri que existia o racismo e quando eu descobri o que o racismo fez comigo, com a minha vida, com as oportunidades que eu não tive, com as angústias que eu vivia e que não tinham nome… e aí dois ativistas foram me contando o que era o racismo etc… eu fui me dando conta da minha história e dos sofrimentos que eu vivia: ele[s] tinha[m] um nome. O nome era angústia e tinha um motivo, o motivo era o racismo. Então, é nessa dimensão, na década de 70, que eu tomo a decisão de fazer psicologia, porque eu compreendi, naquele momento, que aquela questão não era minha, exclusivamente, aquela questão era nossa, aquela questão era do meu grupo. Aí que eu inicio o meu percurso de ativista e vou fazer psicologia, meio atravessada… não sei se naquela época… eu não tinha ideia que eu poderia cursar uma universidade pública, porque em 1970… faz muito tempo, né?!… a gente passava por um processo de ditadura no Brasil, por um lado, e, por outro lado, o tema do racismo não era um tema [com] que a gente tinha contato, [de] que a gente tinha pessoas falando, discutindo, então foi tudo muito novo. E aí eu vou pra uma faculdade pública, primeiro comecei o meu estudo na universidade de Mogi das Cruzes, não na Braz Cubas, em Mogi das Cruzes, depois vim pra uma faculdade que eu costumo chamar de “faculdade de fundo de quintal”, que foi a Faculdade Paulistana, aqui na Vila Mariana, aqui em São Paulo. Enfim, comecei a fazer meu curso e lá eu entrei em contato com a psicanálise. Bom, a gente sabe, porque Freud já disse que a gente descobre tudo a posteriori… e lá eu tive alguns professores muito bacanas, muito interessantes e importantes, e quem nos introduziu na psicanálise foi Marlene Guirado, que era nossa professora, e eu comecei a conhecer psicanálise conhecendo… quando a gente vai avançando na idade, vocês sabem, os lapsos… [risos] Enfim, lá nós tivemos uma questão, porque a gente descobriu, no quarto ano, que a gente não teria possibilidades de fazer as escolhas que a gente queria. Aí nos constituímos como um grupo, eu e uma companheira fomos as representantes da turma daquele grupo [de] umas cinquenta pessoas. A gente descobriu Lapassade1, Maio de 682, França, Análise Institucional. E a gente fez um enfrentamento na escola a partir da psicanálise institucional. Esse foi meu primeiro contato com a psicanálise. Aí, […] conquistamos esse lugar de o grupo fazer suas escolhas e a faculdade teria que se resolver pra isso. Eu escolho dois campos, eu escolho um campo de trabalho em grupo e escolho ludoterapia. Começo a atender na escola, que é uma formação… que foi uma formação bastante precária, do ponto de vista do tempo que você precisa pra aprender a ser uma psicóloga. Mas, enfim, me formei em 84, em 85 comecei a atender a primeira criança, que foi muito difícil, porque sair da faculdade e ir pra clínica é uma das coisas mais difíceis que tem, porque até hoje a faculdade não ensina a gente a ir pra clínica, a gente faz clínica fazendo a clínica.


[Tatiane Zaram] Sim. Você traz esse lugar da criança, do quanto é custoso pra essa criança negra… agora, ao mesmo tempo, eu ouvi, em uma entrevista sua, do seu primeiro movimento ativista no movimento negro, que você começou com três anos de idade [risos] já nesse lugar, pensando na sua infância, e com três anos você fez um movimento nesse espaço.


[Maria Lúcia da Silva] Então, eu diria que são as narrativas que eu tenho sobre a minha própria história. São duas narrativas bastante analíticas, eu diria, e que eu só descobri depois, em análise, que narrativas eram essas. A primeira narrativa é que, na separação dos meus pais… e eu adorava o meu pai, segundo as minhas irmãs, porque eu não lembro… na separação deles, eu fiz um corte com meu pai e escolhi minha mãe. Foi muito difícil, inclusive pra minha mãe, viver essa experiência, porque eu não queria mais ver meu pai. E eu […], a primeira narrativa que eu tenho sobre minha história é que eu tive uma atitude feminista, eu escolhi minha mãe ao invés do meu pai. E minha mãe sempre muito preocupada, porque ela dizia “eu não quero que o seu pai diga que eu não deixo você ir vê[-lo]”. Ela insistia toda semana pra eu ir. Essa é a primeira narrativa que eu faço sobre a minha história. Uma segunda narrativa é que, dos três meses até os nove meses, eu fiquei muito doente, com uma doença que ninguém sabia o que era, que tinha várias suposições, começou com algo aqui [aponta para a orelha], diziam que era um bichinho, e eu fiquei toda inchada, fiquei praticamente paralisada, não falava, não gemia, não chorava, toda inchada aqui [aponta para o rosto]. Meu pai era benzedor e a casa vivia cheia, morava no interior, morava no Mirassol, num lugar que hoje é uma cidade, mas na época devia ser uma aldeia, porque até hoje é um tiquinho de coisa. A casa vivia cheia e o conjunto das pessoas e a família fizeram promessas: se eu conseguisse viver, levavam uma cabeça de gesso, uma perna, um braço. E apareceu um médico na cidade, doutor Cicardi, que conseguiu dar conta de resolver o que tava acontecendo. Há muito pouco tempo, agora, este ano, que eu me apropriei do nome que era essa doença… eu nunca quis saber deste nome, as pessoas falavam, mas eu não acreditava que era… eu tive uma erisipela. A erisipela é uma doença que às vezes é fruto de um… não sei se é um bichinho que vive no porco, alguma coisa assim, mas também tem outras ramificações. Então, eu fiquei toda infeccionada, ele [o doutor] fez toda incisão aqui [aponta para a área em volta do queixo], eu tenho uma cicatriz, tenho incisão toda aqui [aponta para a região inferior da face], foi daí que eu curei. Aos três anos de idade, teve uma procissão na cidade para ir pagar as promessas: essa é minha segunda narrativa sobre a minha história, que foi a minha primeira manifestação pública e que eu [a] fui conduzindo. Bastante narcisista, eu sei [risos], mas eu gosto muito dessa ideia. É muito interessante, acho que é por isso que eu gosto tanto de Freud, porque ele traz muitas informações que, na hora que a gente vai ficando mais íntima, carinhosamente, da psicanálise, você vai gostando cada vez mais [dela]. Eu tenho uma… eu não sei se isso é qualidade ou se isso é uma questão… eu escuto absolutamente tudo o que eu não deveria escutar, digamos, ou o que eu não precisaria escutar com tanta ênfase, que são as coisas do racismo, as coisas dos feminismos, enfim, das violências. Assistir televisão pra mim, que é um divertimento, é uma coisa ruim, porque eu escuto tudo o que eles falam, num sentido crítico.


[Tatiane Zaram] Sim. Isso me chama muito a atenção, porque ao mesmo tempo que você diz “olha, o meu pai…” – a sua casa ficava sempre cheia –, nessa entrevista também você falou que seu pai é cego, nesse lugar de quem escuta muito. Isso vem também desse olhar, dessa escuta e, ao mesmo tempo, desse lugar da psicanálise. Como é essa clínica […] da criança que chega e [como é] ter essa escuta? [Por]que muita das vezes alguns psicanalistas acabam entrando nesse lugar da infância e se misturando – talvez com a fantasia da criança ou [com] não escutar, escutar só os pais […], não têm esse olhar da escuta da criança. Quando você diz que “olha, tinha algo ali”, [algo] que marca a tua infância, e também, depois, as outras marcas que você vai trazendo, quando você começou a trabalhar muito cedo… fala um pouquinho desse lugar?


[Maria Lúcia da Silva] É, são muitas as coisas. [Quando] Eu comecei a trabalhar, eu tinha seis anos de idade, eu tô com setenta e seis. Faz exatamente setenta anos que eu trabalho, porque eu sempre trabalhei. Eu comecei a trabalhar… nós viemos do interior nessa fase, [quando tinha] quatro anos, por aí. Morávamos num cortiço com… só morava a minha família: primos e primas com as famílias, com as suas crianças. […] Tinha uma prima que limpava boate, ia limpar boate e levava a meninada, mulheres fundamentalmente, pra ajudá-la. É muito interessante porque eu tenho a imagem da boate, um negócio tudo muito escuro, muita cortina escura, muito copo pra lavar. Esse foi o meu primeiro trabalho, tinha outras primas, mas esse foi o meu primeiro trabalho. E dali segui trabalhando. Ali [na boate] a gente trabalhava pra comer um doce, pra comprar bala. Acho que foi o primeiro momento de você ter a sua grana, que era provavelmente uma moeda, né?! [Risos] Depois, uma experiência bastante marcante para mim é que aos oito anos eu, nas férias, vou trabalhar durante um mês. Era época… naquele momento em que falavam “facções”, [quando] as roupas iam pra casa das mulheres, para as oficinas das mulheres, onde elas tinham lá as pessoas contratadas que faziam as roupas e depois mandavam embora. Então, eu fui trabalhar na casa de uma pessoa, fazendo… na máquina de costura, eu costurava, passava oito horas costurando… fazendo anáguas, combinação – hoje nem tem mais esse nome de “combinação”, acho que as pessoas nem sabem que que é isso. E eu trabalhei um mês nesta casa, entrando cedo e saindo tarde, tava de férias, e, quando eu recebi o salário, que eu olhei, eu voltei pra casa chorando. Eu cheguei em casa, todo mundo aflito: “mas o que que aconteceu?”. Eu falei: “eu trabalhei muito pra ganhar esse pouco”. Eu não sabia que nome eu dava pra isso, mas pra mim era muito nítida a desproporção do meu trabalho e do que eu estava recebendo, que eu acho que tem a ver com a criança e que a criança negra – não só, mas na sua maioria – tem uma experiência de trabalho muito precocemente, muito precocemente. Isso ainda não passou. Talvez [em] São Paulo a gente não vê isso, mas nos interiores, nas carvoarias, enfim, é onde as crianças negras estão trabalhando e elas estão trabalhando para ajudar a família: os meninos vendendo coisas na rua, os carrinhos… engraxando sapatos, o que hoje não tem mais, mas antes tinham muitas crianças engraxando sapatos, hoje acho que o tênis substituiu um pouco a graça. Eu diria que é uma experiência que quase todas nós, mulheres e homens negros, vivemos na infância, que é trabalhar. Eu não diria que o dinheiro que eu recebi fez algum efeito em casa, mas eu diria que o lugar do trabalho na infância sempre foi usado, as crianças negras sempre ajudaram mesmo no sustento da casa, não importa se era pouco ou se era muito. Eu também tenho essa experiência de um trabalho muito cedo, [com] oito anos; fora isso, depois disso, eu passei a trabalhar em oficinas de roupa, fazendo arremates, e tive a minha primeira carteira assinada aos catorze anos de idade. Aí sim, foi numa escola que existe até hoje, Instituto Universal Brasileiro, que é uma escola de ensino à distância, onde eu fiquei quatro anos lá. Mas a nossa experiência é uma experiência de trabalho muito precoce, por um lado; e, por outro lado, eu acho que, quando você chama atenção pra coisa da escuta, as crianças não são muito… hoje é diferente, mas, na minha época… olha, já tô falando “na minha época”, né?! [Risos]… na minha época […] os adultos não acreditavam que as crianças ouviam ou que compreendiam a fala deles, a gente tinha muito pouca importância no meio dos adultos. Tanto é que você me trouxe um dado [com] que eu ainda não tinha feito uma ligação… eu sempre tive uma escuta atenta; então, na separação dos meus pais, teve uma oportunidade que eu fui na casa do meu pai para vê-lo, eu descobri um segredo que todo mundo ficou muito tranquilamente falando, como se a gente não escutasse, não entendesse o que tava acontecendo. É interessante, porque eu acho que a minha escuta é afinada há muito tempo, só tô me dando conta mais precocemente [risos].


[Tatiane Zaram] Isso até pensando na criança, o quanto a criança também faz parte desse todo, o quanto a criança ouve, o quanto a criança também está inserida num ambiente em que ela está observando. Até mesmo esse lugar dos atravessamentos que acontecem talvez por um olhar ou por uma fala de um coleguinha, de algo que vai atravessar [a criança] nesse lugar do racismo. Aí a gente traz um pouco para as relações raciais. Ao mesmo tempo, eu fico pensando aqui, Maria Lúcia, [em] uma aula que você dá no AMMA Psique, que fala de todo o caminho do movimento negro, dos autores que chegam, que se posicionam, e também da tua entrada para pensar a saúde mental, em 1995, nesse lugar que você chega e fala assim: “nossa, a gente precisa pensar a saúde mental das pessoas pretas”. Como que é isso? […] Eu sei que o AMMA faz um novo movimento para pensar a saúde mental das crianças, a gente pode trazer um pouquinho até chegar…?


[Maria Lúcia da Silva] Então, a minha ocupação com o tema da saúde mental é anterior, porque começa em 89. Em 89, chega na minha mão uma publicação chamada “Projeto Nacional de Saúde das Mulheres Negras”, que era um projeto que tinha nos Estados Unidos, com sede em Atlanta, mas estava organizado nos vinte e dois estados americanos. Eu enlouqueço, quero ir pra lá, quero ir pra lá, e fui. Fui pra lá, passei quinze dias e, quando voltei, eu apliquei a metodologia aqui, com mulheres negras. Nessa época, eu tava no Geledés [Instituto da Mulher Negra] – eu sou uma das fundadoras do Geledés – e, durante três anos, eu trabalhei com mulheres negras, com grupos. A metodologia chamava “grupos de autoajuda”. Não precisava ser psicóloga pra trabalhar, mas eu era psicóloga e, no grupo, tinha mais uma psicóloga. Eu montei uma equipe e nós trabalhamos ao longo de dois, três anos, com uma média de cem mulheres em grupo, também capacitando mulheres para trabalhar em grupo. Essa foi a minha primeira experiência, do ponto de vista psíquico, para poder pensar a saúde das mulheres negras e o racismo, os atravessamentos do racismo. Foi uma experiência incrível, com experiências incríveis que a gente teve, que até então a gente não tinha se dado conta. Em 95, junto com mais quatro amigas, a gente começou a pensar a necessidade da instituição de um espaço de acolhimento – e aí não eram só mulheres negras, eram negras e negros, o nosso… quando a gente solta o nosso folder, era um chamado, era um manifesto, onde a gente chamava a sociedade brasileira para poder dar conta desse tema. E é interessante, eu acho que vale destacar, porque já tinha… a Neusa Santos [Souza] já tinha escrito em 95, Fanon já tava [escrevendo], mas não era ainda uma literatura que tava sendo feita. A Cida [Bento] acho que já tinha, na tese dela, usado a Neusa, a Isildinha [Baptista Nogueira] já tinha usado, mas não havia, no movimento negro, a dimensão do impacto do racismo na infância, aliás, nos negros e negras de uma maneira geral. O que se falava era que negros e negras tinham baixa autoestima, o que nós trouxemos não é que “tem baixa autoestima”, nós somos atravessadas pelo racismo e ele vai produzir questões na nossa saúde mental. A gente introduz, do ponto de vista psicólogico, como o racismo produz adoecimento e a gente inaugura, do ponto de vista político… é a primeira instituição do movimento negro a trazer o tema de psicologia, efeitos psicólogicos e racismo.


[Tatiane Zaram] Atualmente, o AMMA está fazendo um movimento: pesquisas direcionadas à infância, à subjetividade e [às] relações raciais. Eu estava ouvindo a Clélia Prestes e a Elisabeth [Figueroa] num podcast3 e elas comentaram desta pesquisa, que fizeram mais de novecentas… pesquisaram mais de novecentos artigos e, nesses artigos, geralmente falam mais sobre, por exemplo, a parentalidade ou o adulto, não têm notícias da criança, da criança preta. […] A gente pensa desse lugar de como a psicanálise também está em volta desses novecentos artigos, que não foram só artigos acadêmicos, parece que… só no finalzinho ela fala muito rapidamente que, se eu não me engano, catorze artigos têm algo sobre a criança mesmo. E [Clélia e Elisabete] vão lançar um livro que vai trazer esse lugar para a gente pensar tanto a clínica quanto movimentos, por exemplo, bibliotecas, lugares para as crianças, que elas possam estar inseridas também em movimentos para pensar a saúde, para pensar a vida, e não apenas para a gente ficar falando sobre o racismo, para ficar falando sobre dor, para ficar falando desse lugar que nos atravessa.


[Maria Lúcia da Silva] Eu entendo que é por agora que a criança começa a aparecer, no âmbito dos movimentos, de uma maneira geral, como sujeito. A criança, até então, ela era uma criança que você podia falar perto dela e tudo bem, porque ela era uma criança mesmo, ou ela não entendia, ou ela não escutava. As pessoas não se davam conta que a gente escuta e escuta mesmo, porque você tá lá, brincando, e as pessoas acham que você tá só brincando, por um lado. Por outro lado, tem um livro importante que é da Eliane Cavalleiro… a Eliane Cavalhareiro está fora do Brasil já há alguns anos… é o primeiro livro que discute educação e racismo, Do silêncio do lar ao silêncio escolar, onde ela faz um estudo [sobre] como a escola olha para isso e também como a família olha. Eu diria que é um livro clássico para nós, importante, porque ele abre um espaço mais amplo para pensar a criança como sujeito, como alguém que recebe, que impacta e que a gente precisa olhar para isso. Eu acho muito parecido com os jovens… faz muito pouco tempo que os jovens são jovens considerados como adultos, como quem pensa, como quem pode ser ativo. Sei lá, década de 80 talvez, é que a juventude começou a ganhar um espaço como sujeito, como sujeito político. Eu acho que está acontecendo agora com as crianças negras, como sujeito político. Eu fiz um… bom, eu adoro grupo, né, eu acho que é no grupo onde você pode, do ponto de vista do racismo, compreender os efeitos e sair da individualidade, porque a gente vive situações concretas, situações emocionais em que, se você não olha em companhia, parece que isso só tem a ver com você. Ao estar em companhia, fazendo essa discussão, você consegue perceber que todo mundo vive as mesmas experiências emocionais e considera essas experiências, que são experiências de violências e violação, produzidas pelo racismo. Mas, se você não olha no conjunto, você não tem essa dimensão. Então, eu acho muito importante. Eu fiz um projeto que era dirigido para os pais, para poder pensar a infância e o racismo, alguns anos atrás. Uma pessoa me procurou e eu fiz com ela um processo… quem me procurou foi uma mãe que tinha duas crianças negras adotadas… e eu fiz um trabalho com essa mãe, nesse sentido, um trabalho de escuta: o que que ela escutava? Por que ela se interessou? Assim, é recente a criança entrar na cena, ela está entrando na cena agora.

 

[Paulo Beer] Posso aproveitar e fazer uma pergunta, trazendo, inclusive, uma discussão que para mim vem de um outro espaço? Eu sou parte do NETT, que é um grupo de psicanalistas que trabalha com movimentos sociais. Na nossa última jornada, a gente estava discutindo justamente algo próximo disso, que é… a gente oferece escuta para os militantes, mas também para as famílias e para as crianças… e a gente estava discutindo justamente isso, como a militância, muitas vezes, é um tipo de experiência tão radical que a gente não pode pensar que a infância escapa a isso, muito pelo contrário, ela é atravessada profundamente por esse tipo de escolha dos pais, de algum modo, e que as crianças vão também escolher, de outra maneira. Como você pensa a militância nesse sentido? Você estava falando sobre o racismo, mas você também é uma militante, como que você pensa essa dimensão da infância na militância?

 

[Maria Lúcia da Silva] Quando você diz como eu penso a infância na militância, me fala um pouquinho mais para eu entender qual é a questão sua. 

 

[Paulo Beer] Acho que são várias questões […], pensando no tipo de atravessamento que a militância acaba produzindo para as crianças.

 

[Maria Lúcia da Silva] Ah, isso é legal [risos]. Isso é legal, porque, se a militância não tem a dimensão do impacto psíquico e emocional que o racismo, que o sexismo, que as transfobias produzem no sujeito, ela não pode pensar que a criança está atravessada por esses elementos. Para que a criança seja inserida num espaço protegido e de construção de estratégia para protegê-la, também esses adultos precisariam se colocar no lugar dessa criança, se pensar enquanto criança[s] que [foram]. A militância, ela é muito dura, ela é muito hard, você precisa resolver aquela questão agora. 1978, quando a gente vai pra rua, ditatura, Teatro Municipal, na rua, movimento negro na rua, você está pensando que você pode enfrentar os homens que vão em cima de você, vão bater, então você não pensa na criança e, também, você não pode pensar, muitas vezes, que você tem medo. Militância tem medo mas não fala, porque você tem que enfrentar as situações. Eu acho que a gente só pode pensar na criança, efetivamente, se você se pensar. Eu acho que muitos psicanalistas não pensam nas crianças, embora, teoricamente, eles saibam que quem vem pra análise é a criança. Eu deixei de atender criança porque eu resolvi atender criança grande [risos], porque era mais fácil de dialogar, de apontar, de compreender, porque não é simples atender uma criança, porque a gente precisa abrir mão de algumas coisas que [n]a gente acho que está muito encalacrado […]. Eu atendi… eu diria que eu atendi um pouco de criança, mas eu fiz bons atendimentos, eu acho, de criança, boas escutas, fiz boas brincadeiras e consegui atender algumas crianças que hoje estão grandes aí no movimento, elas nem sabem que eu as atendi [risos]. Chega um momento que… para a criança, você precisa de um tempo que é um tempo diferente para o adulto, né? Quando eu deixo de atender criança, é porque há uma emergência política e analítica, no sentido de pensar mais amplamente o tema. Porque, como eu gosto de grupo, como eu acho que é no grupo que a gente pode tomar maior consciência sobre si na relação com o outro, eu escolhi o grupo e o grupo de adulto, sem esquecer das crianças, porque o AMMA fez um caminho, de alguma maneira, desde muito tempo… momentos pontuais, fazendo encontros, crianças encontrando crianças e pais das crianças se encontrando e conversando. A gente, vários momentos, nós fizemos isso. Então, acho que é isso: a militância, às vezes… é contraditório o que vou dizer… às vezes, a gente se desumaniza tentando humanizar o mundo e isso é uma grande contradição. As crianças desses adultos se ressentem disso, porque às vezes elas não são vistas como crianças, porque o pai [faz um gesto com a mão, ao lado do ouvido, para indicar muita fala], na cabecinha delas: “tem que ser assim, tem que ser assim”. E as crianças, óbvio que você tem que ensiná-las, mas tem que ter uma pedagogia também, porque eu não posso dizer para ela: “o racismo existe, ele é assim, assim, assim”. Eu preciso primeiro aprender a escutar… talvez, antes até de escutar, preciso aprender a perguntar, porque os adultos vão contando da sua infância, [de] como eles não tinham coragem de falar para os pais o que eles estavam vivendo na infância. Isso é muito comum na clínica, você escutar um adulto dizer: “mas você dizia para os seus pais?”, “não”, “por quê?”, “nem sabia por quê”. Mas é porque era muito difícil, né? Como é que eu ia dizer para a minha mãe o que eu estava vivendo na minha escola, a minha mãe lavava e passava dia e noite para poder dar conta da casa, e arrumar a casa, e fazer isso? Quer dizer, também tem as condições materiais de existência que nem sempre dão conta. Se a gente pensar que as mulheres negras – muitas mulheres negras são as chefes de família – têm que trabalhar, têm que dar conta do filho, não dá para fazer, não dá para… às vezes não dá para ter espaço para a criança, porque não tem espaço para ela. Então, é dramático. Acho que a experiência das crianças negras é muito dramática, porque é uma experiência sem descanso, você passa a vida sem descanso, e isso é muito complexo.

 

[Tatiane Zaram] Eu penso muito nesse lugar, por exemplo: essa criança, ela vai se tornar adulta, ela vai se tornar mãe, vai continuar nesse lugar de uma repetição. Ao mesmo tempo, os grupos… por exemplo: tem crianças que vivem em vulnerabilidade, [tem criança] que vai estar ali e vai estar se conscientizando, ou tentando se conscientizar, daquilo que ela vive ou, até mesmo, de um lugar que ela acredita que “ali não é pra mim”, “olha, esse espaço não é pra mim”. Ou, ao mesmo tempo, outras crianças, se a gente está pensando em um todo. […] A gente está falando de uma raça, seja uma raça branca ou preta, nesse lugar racializado, [falando] de como que a criança também vai entender que há outros espaços. Por exemplo, você traz esse lugar do grupo, do AMMA: eu só fui ter um espaço com pessoas pretas no AMMA Psique, em estar em uma sala de aula com só pessoas pretas, professores pretos e aí eu me identificar nesse lugar. Eu tenho observado muito isso na clínica hoje, o quanto vêm crianças […] buscando também compreender esse lugar da raça, que às vezes a criança… ela chega e, quando olha, por exemplo, para o meu cabelo, ela é uma criança preta, ela se identifica ou, até mesmo, é difícil para ela falar sobre isso até um certo momento. Me veio muito uma cena de uma criança que… uma cena de um atendimento online, em que a criança começa e ela fica correndo pela casa, ela não conseguia parar e me olhar, até o momento que ela entra no banheiro e começa a fazer a sessão dela olhando para o espelho. Foi quando ela entra em análise, nesse lugar que ela gostaria de falar, que ela estava com dificuldade para falar, desse olhar para ela e, ao mesmo tempo, me olhar. Quando isso acontece, a análise dela inicia, ela dá espaço para esse lugar. Me recordo também de uma amiga que você traz, em uma das suas entrevistas, […] uma mulher adulta que não conseguia olhar para o espelho. Isso me remete a essas crianças que têm vindo de um lugar, de uma identificação, e que muita das vezes não consegue[m] esse olhar, não consegue[m] essa estrutura mesmo de poder dizer “olha, eu consigo me olhar no espelho”. Isso a gente vê nos adultos.

 

[Maria Lúcia da Silva] Essa é uma grande questão, porque aquela criança que não se olhava é um adulto hoje que também não pode se olhar muitas vezes. E que está junto da gente, brincando, trabalhando, ativista. Eu acho que falta um grande caminho para a gente percorrer, do ponto de vista analítico, para poder pensar efetivamente o impacto do racismo na nossa constituição, no nosso desenvolvimento e no lugar que a gente está hoje. Acho que é por isso que às vezes eu fico muito brava com a psicanálise como instituição, porque ela ocupou o lugar do opressor, no sentido da escolha política, né? Porque uma psicanálise que não olha o país que tá, a história que o país tem, também não está sabendo ler o legado que Freud deixou. Porque Freud deixou muitas coisas; entre elas, que a criança, antes de tudo, é uma criança social. E ele fala da herança, e ele fala da ancestralidade. O que eu fico pensando um pouco, quando a psicanálise não pode fazer isso… óbvio que nós estamos presenciando um outro momento da psicanálise, mas a gente está presenciando isso pelos dissidentes, eu diria assim, não pela institucionalidade da psicanálise. […] Freud trabalha a questão da herança o tempo todo. Ele diz, inclusive, que é no sujeito que você vai encontrar, recuperar toda a sua “ancestralidade” – vou falar “ancestralidade”, acho que ele não disse ancestralidade, mas ele fala disso. Então, eu acho que os psicanalistas não estão lendo a psicanálise como ela deveria ser, porque eles estão imbuídos de uma perspectiva de raça e de classe que os impede de ver o Brasil e de ver o mundo, porque agora não se trata só de ver o Brasil, se trata de ver como o mundo está, com todos os grupos raciais. Embora a gente possa pensar que negros e negras, no mundo, são – continuam sendo – o grupo mais atacado, hoje a gente vê o mundo em declínio, do ponto de vista da humanidade, dos migrantes no mundo inteiro. Há uma migração inteira, você vê todo o mundo… barcos esperando gente, sabendo que vai ter muitos migrantes no mar que vão precisar de ajuda, porque senão vão morrer, vão morrer mesmo. Você vê o que está acontecendo no Oriente, no Ocidente. Obviamente que o meu atravessamento como sujeito tem a ver com a questão racial, mas eu consigo me dar conta que hoje nós estamos num mundo que não está se vendo mais, ninguém vale mais, ninguém vale: os migrantes não valem… nem dá para dizer o nome, mas, de toda forma, quando você olha para a África, você está vendo uma África que está sendo completamente – continua sendo –, completamente destruída. O colonialismo continua muito presente, porque eles instituíram uma forma de negros se relacionarem que era para não dar certo mesmo. É muito duro, é muito duro. Hoje nós vivemos no Brasil uma… como é que é o nome agora?… uma escravização moderna. Estão dando esse nome. Porque nós não acabamos com a escravidão, né? Todos esses milhares de pessoas que são recuperadas, que são achadas em condições análogas à escravidão… não existe análogo à escravidão, existe uma situação que é uma situação de escravização, onde você está em um lugar que você não tem como dormir, você não tem como comer e você está prestando um serviço forçado para um cara que está ganhando muito dinheiro e que, inclusive, é protegido pela legislação, o nome dele não sai. Que que é isso? Mas voltamos, porque esse tema é hard.

 

[Tatiane Zaram] [Risos] Sim. A gente entra muito nesse lugar, né, Maria Lúcia, de que tem esse atravessamento que nos dói, mas, ao mesmo tempo, […] eu sei que o movimento negro, todo o ativismo, tudo o que você já esteve – e está – à frente faz nos impulsionar ainda mais. Eu sei que estar aqui hoje, na Traço, trazendo esse debate, trazendo essas questões, é justamente pra gente continuar essa ampliação, esse lugar de consciência, e que ainda tem um caminho a se seguir, mas, ao mesmo tempo, a gente não pode parar, né? 

 

[Maria Lúcia da Silva] Não, não.

 

[Tatiane Zaram] A gente não pode parar. É o que você também sempre pontua: estar dando espaço para outros. Assim como eu venho acompanhando no AMMA: hoje você está lá como conselheira e você sempre diz: “olha, eu estou dando outros espaços também, pra quem está vindo poder continuar”. Como é isso para você, Maria Lúcia?

 

[Maria Lúcia da Silva] Então… a idade chega, né? [Risos] A instituição tem que seguir e você precisa fazer novas lideranças. Eu acho que a nossa perspectiva hoje é estar junto, mas não à frente. Tem esse grupo de jovens… tem uma coisa que eu acho importante, que [são] as conquistas do movimento, que hoje a gente tá podendo, inclusive, fazer transições. Eu quero dizer dessas conquistas, quero dizer das ações afirmativas, que elas mudaram o colorismo das universidades, né? Para além disso, elas estão mudando o colorido das organizações que trabalham com psicanálise. Não dá mais para ficar no conforto da branquitude. Mais do que o conforto da branquitude, não dá mais para ficar só no Freud. Negros e negras têm produzido coisas… porque, se eu for lá no Freud e se eu considerar que é real que, naquele sujeito, toda a minha história está guardada ali, ou está escondida e talvez alguém precise achar, ou que precisa de um espaço de emersão, eu diria que a gente tem feito isso sem a psicanálise. Tudo o que está sendo produzido, todos os resgates que a gente vem fazendo… Virgínia Bicudo, Lélia Gongalez… porque está lá, fez a história, a gente está trazendo essa história, [podendo] dizer: “olha, tem isso, tem mais isso”… Juliano Moreira, os vários, isto é um investimento de uma parte da população que tem feito isso quase que sozinha. Esse movimento, quando você fala: “e aí, no AMMA, vocês…”, eu acho que tem a ver com isso. Nós temos hoje uma capacidade de ler o mundo graças a uma conquista de muito curto tempo, porque [em] 2012 há a Constitucionalidade das Ações Afirmativas. De 2012 para 2024, são doze anos. É muito pouco tempo para fazer tudo o que foi feito. Mesmo se eu pensar que as primeiras ações afirmativas aconteceram [em] 2002 – UERJ e UnB –, vinte anos é muito pouco tempo para tudo o que tá sendo feito, para tudo o que tá sendo produzido, para os resgates, para a história, para as novas epistemologias, para as novas discussões. Não tem nenhum grupo, não tem branco suficiente pra fazer tudo o que a gente fez nesse tempo. E por que que a gente fez? Porque, quando a gente tem um espaço, a gente faz e a gente faz rápido porque a gente não sabe o que é que vai acontecer com a gente. A gente não pode perder tempo – isso é uma outra questão. Nós não podemos tirar um ano sabático. E todo mundo deveria ter direito a um ano africático.

 

[Tatiane Zaram] [Risos] Ótimo.

 

[Maria Lúcia da Silva] Todo mundo teria que ter a oportunidade de ter um descanso. Mas a gente sabe que a gente tem que ser rápido, porque, inclusive, nós estamos num mundo onde a direita está tomando espaço e a esquerda não está sabendo mais o que ela faz, porque também ela é uma esquerda comprometida com a branquitude, completamente. É preciso também levar isso em conta, que o mundo muda quando os oprimidos produzem coisas que dão condição para o mundo mudar. 

 

[Tatiane Zaram] Eu fiquei impressionada com esse lugar da pesquisa que o AMMA se propôs fazer, esse lugar também de agilidade, de tudo o que eles conseguiram formular, que agora vai lançar esse livro. E a Clélia, ela comenta que é um trabalho de vinte e sete anos atrás. Vinte e sete anos porque iniciou com o AMMA e essas crianças, que hoje são adultas, elas reconheceram e falaram: “a gente precisa retornar nesse lugar da infância”. Vem nessa construção.

 

[Maria Lúcia da Silva] Sem omitir que, em começo de 2000, nós acompanhamos… começo do AMMA, ainda 98… nós acompanhamos um grupo de jovens negros durante três anos, que hoje eles estão aí. Uma tá trabalhando na África, outra… todos formados. A gente está querendo reunir esse grupo agora, que tinha treze, catorze anos, hoje estão com trinta, quarenta anos. É interessante poder escutá-los agora dizer: “a gente não entendia direito o que era aquilo, mas isso colocou a gente num outro lugar”. Eu acho que é o que está se fazendo agora com as crianças, né? Tem umas crianças negras que estão na internet, fazendo discussão de racismo, pequenininhas assim [faz um gesto com a mão, indicando pouca altura], sentadas, não sabem nem falar direito [risos] – o que ao mesmo tempo é bom, é engraçado, ao mesmo tempo é um trabalho. Isso também é trabalho infantil, né?

 

[Tatiane Zaram] Pensando em todo esse trabalho, Maria Lúcia, eu gostaria que você deixasse uma mensagem para os psicanalistas, justamente nesse lugar de como a psicanálise pode continuar buscando… porque esse é um dos desejos, principalmente aqui […], para que a gente possa continuar a pensar as relações raciais. Pensar nesse sintoma, né? No teu livro tem essa pontuação, que a psicanálise é um sintoma. E como a gente [pode] ainda continuar produzindo a partir disso, pensando também nas crianças pretas.

 

[Maria Lúcia da Silva] Eu acho que a psicanálise… não a psicanálise, os psicanalistas precisariam voltar ao Freud. Precisariam ler, eles não leram direitinho o Freud. Acho que precisariam voltar e precisariam se repensar. Porque qual que é a questão: o que que é a psicanálise? Quando a gente vai para psicanálise, vai para o psicanalista, qual que é a questão […], qual é a tarefa? Ele escuta, ele tem que escutar e, ao escutar, ele vai construindo ali um caminho para que essa pessoa que está na sua frente possa se escutar, se rever e, ao fazer isso, poder transformar a sua vida. Mas eles não estão escutando as pessoas. Porque eu entendo que o trabalho de análise, ele é de mão dupla: eu, a cada analisante que eu escuto, tem algo nele que faz eco em mim. E, ao fazer eco em mim, eu vou buscar, eu vou querer entender o que tá acontecendo comigo. Os psicanalistas… eu não estou dizendo todos, eu estou fazendo uma generalização, mas nós temos visto vários movimentos, vocês inclusive, aqui no Gerar, têm feito movimentos nessa direção… mas é preciso que a escuta produza também um movimento de busca interior e de olhar sua própria história. Os psicanalistas não estão podendo olhar a sua herança. Todos nós temos heranças. Há heranças boas e há heranças difíceis de encará-las. E a análise é exatamente para isso. É difícil atravessar os processos analíticos, é difícil eu olhar, de fato: “que lugar é esse que eu tô ocupando?”, “que queixa é essa que eu tô fazendo?” e “o que é que eu tô olhando na vida?”. Nós não podemos carregar só nós a nossa herança. A herança da escravização, ela não pode estar posta nos negros. E os psicanalistas fazem parte, os brasileiros fazem parte dessa história. Precisa ser olhado, porque as instituições… não bastam ações afirmativas, porque é preciso mudar o programa. Não basta ler só Freud, tem que ler outras coisas, que Freud apontou, mas não deu tempo de ele escrever. Mas nós estamos escrevendo. Eu queria deixar esse recado para os psicanalistas ampliarem a sua capacidade de escuta e de leitura. Ler outros, porque Freud deu pistas, não deu tempo de ele dizer tudo, mas nós temos dito muitas coisas que podem ajudar nesse avanço.

 

[Tatiane Zaram] Maria Lúcia, eu super agradeço esse espaço, todo esse lugar também de escrita, de produção e tudo o que você já demonstrou e continua [demonstrando], porque é a partir disso que nós, pretos, continuamos também. E, se hoje eu estou aqui no Gerar, [é] justamente por causa desse espaço e, ao mesmo tempo, eu sei que ele está em movimento e está atento a esse lugar também. Muito obrigada.


[Maria Lúcia da Silva] Eu também agradeço a oportunidade.

[1] Georges Lapassade (1924-2008) foi professor da Université Paris 8 e desenvolveu pesquisas relacionadas às áreas de sociologia, psicanálise e educação. Entre suas obras, estão Socianalyse et potentiel humain (1975), L‘Analyseur et l’Analyste  (1971), Groupes, organisations (1965).

[2] Maio de 1968, na França. Período conhecido por movimentos políticos estudantis.

[3] Podcast do AMMA Psique e Negritude. Episódio de 28 de julho de 2023, intitulado “Primeira infância: subjetividades e relações raciais”

Maria Lúcia da Silva

Coordenadora geral da Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) de Relações Raciais e Subjetividades (ANPSINEP). Atua como empreendedora social da Ashoka Brasil. Como pesquisadora, investiga o racismo brasileiro sob a ótica psicossocial e o impacto do preconceito no desenvolvimento dos sujeitos negros. Atualmente, Maria Lúcia continua trabalhando como psicanalista na área clínica e é conselheira do Instituto AMMA – Psique e Negritude.

Tatiane Zaram

Psicóloga e Psicanalista. Pós-graduada em Psicanálise, Perinatalidade e Parentalidade, Psicologia Clínica e Infantil. Integrante da equipe editorial da Revista Traço e docente na Cogna Educação. Estuda Relações Raciais e se engaja em questões relacionadas.

Paulo Beer

Professor colaborador e orientador no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo (IPUSP). Psicólogo e psicanalista, possui graduação em Psicologia pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2010), é Mestre pelo Instituto de Psicologia da USP com estágio de pesquisa na Université de Rennes 2 e Doutor pelo Instituto de Psicologia da USP com estágio de pesquisa no Birkbeck College da University of London. Membro do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP-USP), da International Society of Psychoanalysis and Philosophy (SIPP-ISPP) e da Associação Universitária para Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF). Coordenador do Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos (NETT). Editor da Lacuna: uma revista de psicanálise, da Revista Traço e editor associado da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental.

Vera Iaconelli

Psicanalista, Mestre e Doutora em Psicologia pela USP. Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, foi analista de escola de 2016-2017 e é membro do Fórum do Campo Lacaniano. Autora dos livros: Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna (Zagodoni, 2ª edição, 2020), Criar filhos no século XXI (Contexto, 2019), Manifesto antimaternalista: Psicanálise e políticas da reprodução (Zahar, 2023) e Felicidade Ordinária (Zahar, 2024); organizadora da Coleção Parentalidade & Psicanálise (Autêntica, 5 volumes, 2020). Colunista da Folha de São Paulo e Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise.