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05_Entrevista: Isildinha Baptista Nogueira

Paulo Bueno, Vera Iaconelli, Tatiane Zaram

De uma formação peripatética no século XX, Isildinha Baptista Nogueira, autora do livro A cor do inconsciente: Significações do corpo negro, já se movimentava para uma Psicanálise decolonial há 30 anos atrás. Foi entrevistada em uma manhã de sábado do dia 15 de julho de 2023, onde fomos muito bem acolhidos em seu consultório, com seu abraço, seu olhar, suas falas e até do pirulito que nos esperava na recepção.

Nesta entrevista, destacam-se as falas de Isildinha sobre sua trajetória de formação, sua clínica, seus supervisionandos e os atravessamentos com os trabalhos de Neusa Santos Sousa que foram fundamentais para ela, onde diz que sente falta dessa parceria atualmente: “Me faz uma falta, uma falta, mas uma falta enorme, porque seria um par no mundo da Psicanálise e, de repente, eu me vi sem ela, mas eu vou seguir falando”.

transcrição

[Paulo] É uma enorme satisfação estar aqui hoje com a Isildinha Baptisma Nogueira e a gente vai ter uma conversa que vai falar um pouquinho sobre a formação, sobre a supervisão da Psicanálise. E é uma grande satisfação estar contigo aqui hoje, Isildinha.

[Isildinha] Obrigada, sou eu que agradeço vocês por estarem aqui comigo e poder pensarmos essas questões relativa a negritude como se faz a transmissão de conhecimento que é uma coisa muito delicada e importante de ser feita, porque tem muitas diferenças entre os psicanalistas, digamos assim, ou entre o conhecimento que a gente tem dentro do espectro maior pensando a Psicanálise, várias correntes ou a Psicologia e especificamente a Psicanálise que é a área de conhecimento que eu resolvi trabalhar e pensar nessa questão, eu acho que a supervisão é uma coisa muito importante.

[Paulo] Queria iniciar te perguntando o que você entende como formação peripatética? Como foi a sua formação peripatética?

[Isildinha] Muito interessante você me perguntar isso. Peripatético vem da Grécia Antiga, os gregos, os filósofos gregos, a escola peripatética era uma escola de andarilhos, onde as pessoas se aproximavam dos filósofos, dos grandes filósofos e iam aprendendo com vários, não tinha um prédio, uma formalidade, eles iam aprendendo no decorrer. Eu digo que a minha formação foi peripatética pela convivência que eu pude ter, o prazer de ter na minha formação de conviver com pessoas muito interessantes. Radmila Zygouris, a quem eu devo muito, Félix Guattari, Michael Balint todas as pessoas que eu encontrei, Maud Mannoni ou a Françoise Dolto, foram pessoas muito importantes. Eram pessoas de vários grupos, na verdade, por isso eu falo que foi um pouco peripatético, porque não eram pessoas de um grupo só, mas eram pessoas que se intercomunicavam. Logo que eu cheguei na França, a primeira pessoa que eu conheci, o primeiro francês que eu conheci foi o Félix Guattari que era uma figura extraordinária, maravilhosa, brilhante, de bom humor e que gostava de pensar as coisas de uma forma extraordinária. Na casa dele, às quintas-feiras à noite tinham uma reunião de intelectuais de todas as áreas, desde a História, Sociologia, Antropologia, Cinema, Fotografia, tinha gente e isso eu chamo de peripatético, porque eu aprendi com muita gente, gente muito diferente. Claro que especificamente, com os ateliês de Psicanálise, mas fundamentalmente ter essa convivência me fez ver o mundo de uma maneira mais aberta, mais ampla. Quem primeiro me fez pensar sobre a minha negritude foi o Félix Guatarri, “vamos pensar sobre a sua negritude” e ele tinha um congresso, quando eu cheguei… na mesma semana que eu cheguei, ele tinha um convite para um congresso latino-americano de Psicanálise, se chamava Psicalist Laterrure ele disse: “eu não vou poder ir, vá você”, “mas como vou eu? Vou assistir então”, “não, não, vamos apresentar um trabalho nesse congresso”, “mas eu vou falar o que recém-chegada, não falo a língua”, “não se preocupa, alguém vai traduzir para você, pode falar em português, eles vão falando em francês”. E eu falei “mas vou falar sobre o que?”, “vamos falar sobre negritude”. Algo completamente novo para mim que saía do Brasil para ir fazer um estágio com Maud Mannoni e que essa questão não estava posta no Brasil, muito menos no mundo da Psicanálise. A Psicanálise estava muito distante. Hoje é interessante, porque eu vejo a curiosidade e a oportunidade, a possibilidade não só de estar nas universidades, como eu tenho ido para fazer bancas, foi onde eu conheci você ou para falar…, mas todas as escolas de Psicanálise hoje pensam essa questão como uma questão importante. Então também digo que eu estou caixeiro viajante, porque tenho viajado muito para falar em vários lugares. Eu fui recente, duas semanas atrás, para Belém do Pará, correndo, eu digo que lá eu vivi 20 anos em dois dias. Eu fui para dar uma aula magna na universidade e fazer uma banca, uma defesa de tese, uma dissertação de mestrado e foi muito interessante, porque conheci um outro lado do país e um lado de uma universidade que tinha tido inclusive, contato com Foucault, que tinha ido até a universidade lá e o próprio Félix esteve também na universidade. Então foi muito interessante, porque as pessoas relembravam muito dele, e uma aula, que assim, aula na universidade é uma coisa muito esvaziada, os alunos que têm interesse… de repente, era um auditório lotado de pessoas para ouvir e falar sobre essa questão. Então eu penso que esse é um momento em que a gente está podendo se ouvir e podendo falar. Temos problemas, temos questões, somos diversos, nós os negros, não pensamos todos da mesma forma, mas eu creio que nessa diversidade também está a riqueza. Se a gente pensar que cada um de nós, como luta, claro que nós devemos muito ao Movimento Negro que fez… hoje se eu vejo eu e você aqui, Paulo, eu entendo que o Movimento Negro nos trouxe até aqui, então a gente deve muito ao Movimento Negro e devemos ainda, porque a luta por políticas públicas ainda se dá lá. Agora, quando a gente pensa o consultório, a clínica é de outra ordem. Eu vejo que eu faço uma militância à medida que eu vou para todas as escolas, falo em todos os lugares, a militância de poder levar esse tema a escolas que antes não pensavam especificamente nessa questão, como a Sociedade de Psicanálise, o Sedes Sapientae, o CEP, enfim tantas outras que eu tenho falado, no Rio, aqui, Fortaleza, Porto Alegre. Semana passada falei em Porto Alegre, quer dizer, eu acho que essa demanda por entender melhor clinicamente essa questão, porque eu vou fazer uma… eu tenho uma visão metapsicológica do racismo, então que toca à saúde mental, que é totalmente diferente do trabalho que o movimento faz. O movimento é uma luta importantíssima, pelos direitos… essa manhã me emocionei muitíssimo porque ouvindo o jornal, eu vi que tem um musical sobre Martin Luther King que é para mim uma figura emblemática, tanto ele como Nelson Mandela e como ele foi importante. Até pensei, “preciso tomar cuidado para ir nesse musical, porque acho que eu vou me emocionar muito ao ver essa história”. Toda essa gente foi muito importante para nós. Seja aqui, seja em qualquer continente que essa luta se deu, é importante, porque o racismo, eles nos atravessa a todos. Todos nós somos racistas, brancos e negros, porque o racismo está no tecido social. Agora, de que maneira nós somos atravessados pelo racismo é que vale a pena pensar e precisamos pensar. Não é uma questão de valer a pena, precisamos pensar. Eu acho que a racialização do negro funcionou de uma maneira muito cruel e persistente até aqui. Agora, quando falamos na racialização dos brancos, nós temos uma outra perspectiva também, de pensar e estudar o outro lado, em ver como as pessoas são atravessadas por essa questão. Somos todos atravessados, então não tem como não pensarmos.

[Paulo] Eu acho muito interessante que você fala sobre esses convites para diferentes instituições, diferentes escolas de Psicanálise, que a gente sabe que aqui no Brasil tem toda uma questão de disputa interna no campo psicanalítico entre essas escolas. Você fala também sobre essa luta que é uma luta não apenas do nosso continente, mas que está em todo lugar, onde houver essa luta, é uma luta que nos diz respeito.

[Isildinha] Sim.

[Paulo] Seria a raça, a questão do debate racial, um dos pontos de furo entre esses muros que se criam entre as escolas de Psicanálise?

[Isildinha] Eu acho que sim. Embora, quando a gente fala em raça, a noção de raça caiu há muito tempo, cientificamente falando, não pensamos mais em raça, mas estamos de tal forma atravessados por essa diferença posta, a princípio racialmente que a gente ainda repete isso. Quando a diferença deveria ser étnica, né. A etnia é muito mais ampla, pensar um povo etnicamente, a gente pensa cultura, as diferenças e os traços de toda a ordem, de toda diferença, mas de uma maneira muito mais ampla, muito mais… eu diria que te permite pensar em incluir. Acho que é mais inclusiva a noção de etnia, porque você tem respeito a um outro povo. Obviamente sim, a medida que o racismo nos atravessa a todos e tudo, inclusive essa diferença entre as escolas de formação também é atravessada por isso. Eu vejo quando vou falar nas escolas que a maioria, a esmagadora maioria, são de psicanalista brancos. Nós temos poucos psicanalistas negros, muito poucos, agora com as escolas abrindo para cotas nas escolas de formação, desde a sociedade, todas as escolas de formação estão abrindo para cotas. Então acredito que em pouco tempo nós teremos muito mais analistas negros. Mas eu penso que até lá, nós precisamos que os analistas brancos entendam essa questão, porque ela é muito grave. Nós estamos falando de saúde psíquica. Quando a gente pensa meta psicologicamente essa questão, a gente pensa na formação do sujeito, que já na sua formação já tem uma questão de algumas fragilidades e é tão grave essa história porque durante muito tempo, eu acho que houve um silencio em relação a que hoje a luta antimanicomial mudou esse retrato triste das instituições que acolhiam àqueles que estavam adoentados psiquicamente, mas a grande maioria dessas pessoas internadas, no que a gente conhecia antes como Juquery e os tais hospitais públicos, eram de negros. E eu sempre pensei que isso não era aleatório, que haveria de ter alguma questão, por que nós negros nos desorganizávamos psiquicamente muito mais que os brancos? Foi isso que me levou a estudar, é isso que me leva a poder estar falando em vários lugares, eu acho interessante, não se trata de rivalizar ou acusar quem quer que seja, acho que esse não é o momento. O momento é de aprendermos, o momento é de pesquisarmos, nós conhecemos muito pouco sobre a formação do sujeito negro e conhecemos muito sobre o sujeito branco. Um analista negro consegue aprender bastante como atender um branco, mas um analista branco não entende como atender um negro. E não é da noite para o dia que você… também não concordo com isso de que brancos serviriam para atender brancos e negros para atender negros, isso seria um absurdo. Senão daqui a pouco a gente tem que ter toda a comunidade LGBTI+ vai ter que formar analistas LGBT… não, isso não é… no meu modo de ver, é empobrecedor. Nós somos seres humanos e temos que aprender a nos percebermos e nos cuidarmos enquanto seres humanos. Claro que você tem diferenças, o racismo nos atravessou de formas muito diferentes, o racismo está muito ligado a questão de classe, infelizmente, a grande esmagadora maioria das classes menos favorecidas é de negros. Nós não tivemos acesso a escola, a educação, a saúde, ao trabalho, sempre subalterno e de maneira sem condições humanas de trabalho, eu diria condições sub-humanas de trabalho. Então poder olharmos, isso está favorecendo, percebam, a medida das minhas andanças, que até essa questão sobre a diferença de classe implica em analista branco não conhecer o universo negro. Como pensar? Então nós estávamos muito mais facilmente patologizados, digamos assim, rapidamente, pelo olhar branco que não conseguia, de certa maneira, entender nosso processo. Ser negro é ser desprovido da sua identidade o tempo todo. Isso é muito difícil. Vocês estão aqui no meu consultório, a primeira coisa que vocês fizeram foi elogiar meu consultório, um lugar bonito, etc. e tal, às sextas-feiras eu coloco branco, subi nesse elevador, recente, uma senhora me perguntou no elevador “você pode me indicar uma babá?”. Quem era eu naquele momento? Eu sou à medida que o olhar do outro e à medida que vocês me reconhecem. Para vocês eu sou a psicanalista, para aquela pessoa, eu era uma babá. Não que ser uma babá fosse algo… é um trabalho, uma coisa maravilhosa, quem pode cuidar de crianças e cuida de crianças, mas a questão é como eu sou desprovida do meu lugar ou da minha identidade permanentemente. Então isso é desorganizador para o sujeito negro e se ele não tem uma boa estrutura psíquica, ele está o tempo todo fora do lugar dele. Como uma ocasião, eu fui pegar um carro de estacionamento, o garagista foi buscar meu carro e eu fui em direção ao meu carro, ele falou “o carro da senhora ainda não chegou”, falei “mas esse é meu carro”. Então o tempo todo, mesmo que a gente adquira uma possibilidade econômica da classe média, você não está nesse lugar, porque no imaginário social o negro não ocupa determinados lugares. Não é médico, não é psicanalista, não é engenheiro e assim por diante, porque todas essas profissões antes eram exclusivamente para os brancos, então isso é muito difícil. Inclusive, eu acho que eu tenho visto, por exemplo, participando de um grupo também muito interessante de trabalho, um grupo de psicanalistas que fazem atendimento no CRUSP aos alunos negros, que é muito triste pensar essa questão, porque já tivemos alunos que se suicidaram. E por que se suicidam? Porque entram para a USP, quando entram para a USP, às vezes, eu tinha uma sensação de que era uma inclusão para excluir, porque entram para a USP numa condição muito diferente dos alunos brancos que vêm de escolas muito boas, que têm uma educação geral muito boa ou foram viajar, conhecem, falam outras línguas, fizeram intercâmbio e os alunos que chegam ali, os professores pressupõem que eles conhecem uma série de coisas. E não conhecem. Aí ficam desesperados, porque não dão conta e são recusados. Na hora de forma grupo de trabalho, ninguém quer fazer junto. Então vamos pensar melhor, é o que eu tenho dito nas escolas, “tudo bem, vamos incluir, mas o que nós vamos fazer?”, eu não tenho também uma receita, mas o que eu acho é que não basta colocar ali. Porque colocar num lugar que antes era reservado só para o branco, que ele não tem o hábito, o costume e não tem toda a formação para estar ali, é excluir e levar essa pessoa a adoecer. Ela entender “eu não tenho essas condições”. Claro que a minha formação, por exemplo, a possiblidade que eu tive na vida é totalmente diferente. Quando eu cheguei na França, as pessoas tinham muita paciência de estar comigo, de me ensinar, de me falar “leia isso, faça aquilo, vamos discutir”. Eu participava de vários grupos de discussões, quer dizer, eu fui adquirindo condições de conhecimento. Agora, os alunos que estão chegando para as escolas, seja de Psicanálise ou nas universidades, eles chegam de uma realidade totalmente diferente, principalmente das escolas públicas, que são as melhores universidades, são as universidades públicas, mas chegam para as universidades em uma outra condição. De muita falta, de muita dificuldade mesmo, então como pensar essa inclusão? Como fazer essa inclusão e que de fato ela seja uma inclusão, porque até aqui tem sido difícil.

[Paulo] Você também tem um trabalho de supervisão junto a estudantes e junto a jovens praticantes da Psicanálise negres, né? Podia contar um pouquinho sobre?

[Isildinha] Sim. Desde que eu voltei da França, eu entendi que primeiro era uma formação muito cara, a formação de analista. Pressupõe uma análise pessoal, uma escola de Psicanálise e supervisão. Então desde que eu voltei, eu disse a mim mesma, a minha militância vai ser no consultório, eu vou atender negros e estudantes negros da Psicanálise sem nada a cobrar, porque eu achava, eu acho ainda, que é muito importante e é muito caro. Se eu puder livrá-los de ter que pagar uma supervisão, já é uma ajuda, eu imagino. Então eu tenho alguns grupos, algumas pessoas, sempre trabalhei com grupos diversos, nunca cobrei nada disso. Tem um grupo hoje muito interessante, porque ele acontece pela internet, então ele é muito mais abrangente, mas ele já está lotado de gente. Mas eu dou supervisão, são psicólogos e analistas negros, eu dou a cada 15 dias supervisão para esse grupo, em especial, e é muito interessante. Tem gente da Bahia, do Rio Grande do Sul, São Paulo, tem vários lugares que a gente, vou tentando… porque o grupo não pode ficar muito grande, senão não teria muito sentido, mas é interessante, porque eu percebo também que tem uma questão de identidade. Eles se sentem muito à vontade comigo, porque eu conheço a realidade de onde eles vivem, eu sei o que é ser um negro e sei o que é ser um negro no mundo da Psicanálise. Então eu sou um tanto exigente, sou muito rápida e sincera, não passo a mão na cabeça de ninguém, se eu sentir que alguém precisa ler alguma coisa, precisa… vamos lá, eu tenho as minhas anotações, eu passo para o grupo, eu converso com o grupo e eu acho que é importante que a gente se ajude. Esse trabalho segue.

[Paulo] Tem um ponto que eu acho muito interessante, retornando um pouco ao que você já tinha falado, essa aposta e essa compreensão de que tanto brancos podem atender negros, quanto negros podem atender brancos, indígenas e daí por diante. Isso me lembrou de uma pergunta que você se faz no teu livro A Cor do Inconsciente, que é uma pergunta acho que muito corajosa em que você se pergunta enquanto analista se é capaz de atender também pessoas negras. E uma pergunta que eu leio, eu vou entendendo, é de que é uma pergunta ética, uma pergunta ética de que precisa ser refeita a cada nova paciente, mas também uma pergunta que me faz pensar na formação, porque como essa pergunta sobre a dimensão racial, ela entra na formação como um todo. Acho que a gente de uma maneira muito evidente temos… é evidente que a parte teórica é fundamental, temos discutido, começamos a discutir um pouco mais a parte da análise pessoal, eu queria saber os seus apontamentos, as suas reflexões dessa dimensão racial no contexto da supervisão, que é o que vai… esse tripé que vai ajudar a responder essa pergunta.

[Isildinha] Sim, sim. Primeiro que a formação analítica demanda uma análise pessoal e a análise pessoal ela tem que necessariamente nos trazer a possibilidade de entender um pouquinho quem somos nós, o que nós pensamos, como nós nos posicionamos em relação especialmente a essa questão, sejamos brancos ou negros. Não é uma garantia de que ter um analista negro, que ele vá bem atender um outro negro. Primeiro, ele precisa aprender como ele é atravessado pelo racismo. Todos nós fazemos parte de um tecido social racista, mas somos singularmente atravessados por ele. Nem todo negro se vê negro, por exemplo. Ou como a militância nos ajuda, nos instrui muito, eu vejo que também tem esse atravessamento na clínica: clínica não é militância e militância não é clínica, são duas coisas muito diferentes. Duas coisas importantes, mas diferentes. Já fui até chamada atenção por conta disso. Como você diz isso? Eu digo com a responsabilidade de quem pensa em saúde psíquica, não adianta você ter uma noção política de como acontece o racismo, porque ela não vai necessariamente cuidar de você, psiquicamente falando. Cada um de nós tem uma história, somos seres singulares. Então óbvio que nós temos que nos perguntar diante de todo paciente que nós recebemos quais as condições que eu tenho de ouvir aquela figura. Pode ser que ela venha com uma questão que me atravessa muito fortemente e eu não tenha resolvido. Numa ocasião, eu me fiz essa pergunta e me faço sempre, atendendo um paciente branco, um senhor de muita idade e que tinha, que vinha procurar análise porque sofria, estava muito adoentado, não dormia desde muito tempo, tomando medicações psiquiátricas, era muito difícil. Quando ele me contou porquê ele não… que ele entendia que desde que ele não tinha um bom sono, o que o trazia para buscar uma análise, era o fato de ter trabalhado e ter vivido o golpe de 60 e ter participado de muitas mortes, muitas torturas etc. e tal. Aquilo me atravessou de tal forma, que eu falei: não vou dar conta disso. Eu perdi amigos, eu perdi professores, eu perdi parentes naquele momento e além do mais, isso implica uma visão de mundo e política totalmente diversa da do outro. Tudo bem se eu desse conta, mas eu entendi que não, que eu não daria, então foi muito sincera, falei “o senhor precisa de tratamento, o senhor é um ser humano independente do que aconteceu na sua vida. É importante que o senhor busque um tratamento, mas de alguém que consiga ouvi-lo. Eu estava, naquele momento, em um lado diverso ao senhor e para mim, pensar essas questões, é muito difícil. Então eu não tenho condições de bem atendê-lo. Obviamente isso não implica em entender que o senhor não deve ser tratado, pelo contrário”, ajudei a encontrar alguma outra pessoa que pudesse atendê-lo e ele me agradeceu. Então acho que isso não é demérito para o analista, se perguntar se ele dá conta do paciente que está ali, que ele vai atender, porque depende das questões…. o analista é um ser humano. O analista é um Ovni caindo do nada, todos nós somos atravessados pelas instâncias de poder, seja religião, política, não é possível que o analista não se pergunte nunca se ele dá conta de atender àquele que precisa. Não somos seres iguais, não somos todos iguais, temos posições políticas, religiosas, enfim de toda ordem, de todas as instâncias de poder que nós conhecemos e de controle da sociedade, nos atravessa. De que lado eu estou? Aonde eu estou? Será que eu daria conta de atender uma pessoa de extrema-direita, por exemplo? Eu te garanto que não. Eu fui muito atravessada por esses quatro anos de distopia que nós vivemos e eu acho que eu não daria conta. Eu não conseguiria. Então acho que a gente precisa ser honesto nesse sentido. Um analista negro não necessariamente vai atender bem um outro negro. Eu já recebi pacientes que vêm de analistas e psicólogos negros que dizem “olha, não deu certo lá”, eu pergunto “mas por que não deu certo?”, “porque eu já sou militante, eu não quero ouvir sobre militância na clínica, eu quero que a pessoa me escute e me veja”. Então nós temos esses atravessamentos e esses ajustes a serem feitos. Obviamente eu sou bem criticada por dizer isso, vocês não imaginam que seja tranquilo isso não, não é. A militância ou esse grupo, enfim, eles têm muitas críticas, mas eu acho que a gente precisa fazer essa diferença. Nunca digo e não disse nunca e jamais, embora as pessoas tenham interpretado dessa forma, eu escolhi a Psicanálise para pensar. Por que eu escolhi a Psicanálise para pensar essa questão? O que muito me preocupava era entender que a Psicanálise, ela estava à serviço de uma parte da humanidade e eu disse: “mas eu sou humanidade. Eu acho que eu posso ser pensada pela Psicanálise porque eu sou humanidade”. Por que esse conhecimento servia para pensar uma parte da humanidade e não a outra? Se eu sou a humanidade, a Psicanálise tem que servir. E nós tivemos Fanon, tivemos muita gente importante pensando essa questão e eu escolhi a Psicanálise. Há quem escolha outras possibilidades e está tudo certo, porque nós somos diversos. A diversidade é inteligente, a diversidade nos faz avançar. Não acho que a Psicanálise também seja um remédio, uma panaceia para todos os males. É uma forma de ver o mundo e ela também não serve a tudo. Também outra questão, nós temos que entender as limitações dos instrumentos que nós escolhemos para trabalhar.

[Paulo] Você fala sobre essa questão de muitas vezes acaba apanhando muito por conta de algumas posições colocadas, mas essa em específico é uma posição que a 25 anos atrás você já tinha.

[Isildinha] Sim.

[Paulo] Você fala sobre… que a conscientização não é suficiente para dar conta da eliminação dos efeitos do racismo porque ele se inscreve no psiquismo do sujeito. E como era naquele contexto de final da década de 1990, o movimento negro vivia um momento completamente diferente do que vivemos hoje. Acho que as discussões sobre a saúde mental da população negra também estavam em outro lugar. Como era sustentar esse tipo de hipótese, de afirmação que você tem? Sabendo que você já tinha toda essa situação de Kabengele Munanga e outras tantas?

[Isildinha] Kabengele é um amigo maravilhoso de 40 anos que sempre me apoiou. Mas sim, foi sempre muito difícil. Na verdade, hoje as pessoas falam em fazer uma Psicanálise decolonial e conversando com amigos franceses, uma grande amiga falou “você foi decolonial há 30 anos”, não é hoje que as pessoas estão falando em decolonialidade, quer dizer, você usou um conhecimento de acordo com a sua necessidade e seu olhar e para uma questão que era sua, que é étnica, num momento em que as pessoas não pensavam nisto. O que aconteceu, foi assim, eu acredito que poucas pessoas tinham acesso ao meu trabalho, porque na verdade, quando eu defendi a minha tese, ela ficou muito tempo na universidade. Foi uma surpresa saber que ela circulava muito. Para mim, era uma surpresa, porque quando eu defendi a tese, a banca imediatamente me disse: esse trabalho precisa ser publicado. Eu então fui atrás de uma editora, que na ocasião até era de conhecidos, e era uma editora de Psicanálise e a resposta que eu tive era que aquele tema não interessava. Eu pensei com meus botões, “acho que eu preciso amadurecer mais sobre esse tema. Deixa, o tempo vai trazer as respostas. Se esse trabalho for para circular, ele vai circular”. Ele estava na biblioteca pública. E foi o que aconteceu. Numa ocasião, fui fazer uma fala na Sociedade, eu me espantei que todas as pessoas conheciam o trabalho. Não tinha o livro ainda publicado, o livro foi publicado 23 anos depois. Mas acho que também não ter pressa é uma coisa importante, porque é um trabalho sério, que demanda muita seriedade. Nós estamos falando de saúde psíquica, então não é qualquer coisa, não é qualquer modismo. Eu vejo sofrer, a cada dia, nós os negros, pessoas brilhantes, inclusive, dentro da universidade, que psicotizam, então não é pouca coisa. De maneira que naquele momento, eu acho que era muito mais distante ainda, não só dos negros, como dos brancos também. pensar essa questão para os brancos e usando a Psicanálise, era uma coisa completamente impossível na cabeça das pessoas. Então se a gente pensar bem, eu fui decolonial lá, a 30 anos atrás, quando eu comecei a pesquisar essa questão, mas eu sigo. Eu sigo muito tranquila, porque primeiro eu respeito as pessoas, acho que a diferença é importante, mas sigo pensando com a Psicanálise. É difícil sim, Paulo, foi difícil há 30 anos. Se hoje, a gente consegue ter uma maior diversidade e um maior alcance, por exemplo, o livro foi muito interessante porque quando eu tive um convite, eu podia escolher a editora que quisesse publicar, então eu escolhi a perspectiva como editora e foi muito interessante, porque assim que foi… o primeiro contato mais público com o trabalho, o trabalho foi muito bem recebido. Eu fui indicada ao Prêmio Jabuti na categoria Ciência. Isso fez toda a diferença. Categoria Ciência, é uma outra questão. Quando a gente pensa em ciência, a gente está pensando num trabalho fundamentado, etc. e tal, então assim, eu não ganhei o prêmio, quem ganhou o prêmio merecidamente foi uma outra pessoa, mas eu acho que foi a Margareth Dalcomo, que eu também daria o prêmio a ela, porque ela foi simplesmente maravilhosa para todos nós no período pandêmico. Por coincidência, sentamos uma ao lado da outra na entrega do prêmio, não nos conhecíamos, nos conhecemos ali. Isso fez toda a diferença, inclusive, qual a visão que se fazia num trabalho como esse. A classificação que o livro recebeu foi categoria Ciência, isso faz toda a diferença para nós, negros, como pensadores, como pesquisadores. Não era o prêmio em si, eu nunca pretendi ter prêmio nenhum, mas o fato de alguém de nós ser entendido como alguém que tem um pensamento científico, acho que isso faz muita diferença, né Paulo.

[Paulo] Vou te confessar que é muito difícil te entrevistar porque é difícil ficar na pauta, porque tem tantas coisas importantes a serem perguntadas. Uma delas, que foge um pouco da pauta, mas acho que é fundamental: a gente vive um processo de apagamento de publicações e de discussão a respeito dessa temática, enfim, acho que mais especificamente de trabalhos e pensadoras que se debruçam sobre o sofrimento psíquico da população negra. A gente teve a publicação da Neusa no começo da década de 1980 e a gente tem a sua tese em 1998, então inclusive para nós, eu sou um desses leitores que a tua obra chegou, ela chega como uma das referências, muito ao lado da obra da Neusa. Eu queria saber um pouco qual foi a tua relação com essa obra, essa obra eventualmente com a Neusa de Souza, enfim qual o impacto que essa leitura teve em você?

[Isildinha] Eu me emociono um pouco ao falar da Neusa, porque foi uma pessoa que eu tive um contato e que foi muito triste tudo o que aconteceu, de uma certa maneira. O trabalho dela na década de 1980, eu comecei o meu 1990, na década de 1990, o trabalho saiu no final da década de 1990, a tese, foi concluída em 1990. O trabalho da Neusa foi fundamental para mim. Eu tive a sorte de encontrar com ela num colóquio aqui na PUC, chamava-se O Estrangeiro, pudemos conversar bastante sobre essa questão e ela estava muito… muito aborrecida. O trabalho dela foi sempre muito bem aceito, uma psiquiatra, psicanalista, uma pessoa maravilhosa intelectualmente, muito inteligente, mas ela me disse: eu não quero mais falar sobre esse tema. Eu olhei para ela e em minha ingenuidade, estava terminando naquele momento o meu trabalho, “Neusa, se a gente não falar, quem vai falar?”, ela “eu tenho outros trabalhos”. E tinha mesmo. Tem um trabalho sobre psicose que inclusive foi reeditado agora, recente, “eu sou uma psicanalista, eu quero falar sobre outras coisas”. Naquele momento eu percebi… eu fiquei um pouco impactada com a fala dela, porque ela era um ídolo para mim, ela tinha sido alguém que tinha tido a capacidade, a possibilidade de publicar um livro. “Tornar-se negro”. Mas eu não conhecia o livro dela quando eu estava na França, eu não tinha lido ainda o Tornar-se negro, porque eu fui exatamente no momento que ela estava editando e eu estava lá estudando. Quando cheguei aqui, já entrei em contato com o livro, mas lá que eu aprendi a pensar essa questão e quando eu pude ler o livro dela, eu disse “nossa, eu acho que essa pessoa… acho que eu vou fazer…”, a minha fantasia era de fazer uma dupla com ela. Infelizmente, o livro dela fala tanto das questões de ideal, de ego, de ego ideal, ideal de ego e eu tive a sensação que exatamente foi o que levou com que ela desse cabo à vida dela. Ela se via muito infeliz, não reconhecida, por mais reconhecimento que ela tivesse e aí eu entendo que isso foi uma dor narcísica muito grande, uma necessidade de acolhimento que em geral é mais difícil para nós. Eu, no entanto, não posso pensar assim, fui sempre muito bem acolhida, então seja aqui ou fora daqui, então isso fez toda diferença para mim. Ter sido muito bem acolhida, de certa forma, estruturada e com ajudas importantes que eu tive na vida, me faz pensar de um outro jeito. Eu não tenho nenhum ressentimento, pelo contrário, eu sou uma pessoa que até… eu dei uma entrevista para a Heidi Tabacof, psicanalistas que falam, e saiu uma reportagem na Piauí, uma fala pequena de um jornalista e ele diz isso, que eu sou uma pessoa sem ressentimentos. E realmente eu não tenho. Acho que o ressentimento nos impede de pensar de maneira mais clara em como mudar. Acho que também aprendi isso com Martin Luther King que dizia a mesma coisa “não adianta ressentimento” ou Nelson Mandela que dizia a mesma coisa também. Obviamente, a Neusa foi muito importante, continua sendo e foi uma perda, para mim, irreparável. Foi uma perda em todos os sentidos, mas também entendi que ela adoeceu exatamente pelo racismo. O racismo adoeceu a ponto dela praticar o suicídio de uma maneira muito dolorosa. Eu então, recentemente estive na Bahia, num congresso da IPA, Sociedade Internacional, no mês de maio, finalzinho do mês de maio ou de abril, eu falei nesse congresso, por mais que às vezes as divergências e a proposta é de te fazer calar, quando você pensa diferente ou desagrada o outro, eu disse publicamente isso “eu não vou me calar. Eu vou dizer por ela, por mim e por todos nós. Eu não vou me calar, eu não vou me assustar com as ameaças e com as advertências que eu recebi ultimamente”. Pelo contrário, isso me fortalece, como dizia o Nietzche, o que não nos mata, torna-nos mais forte. Eu acho que é isso que eu penso e ela foi uma figura importante. Me faz uma falta, uma falta, mas uma falta enorme, porque seria um par no mundo da Psicanálise e, de repente, eu me vi sem ela, mas eu vou seguir falando. Eu acho que não era se calar que ela queria, eu acho que ela queria o reconhecimento e não sentiu que tinha esse reconhecimento.

[Paulo] Nossa, muito forte, uma figura como a Neusa, mas passando para outro tema, mas continuando no mesmo, tem determinado ponto, na verdade, acho uma articulação incrível que você faz que é trazer a questão da ferida narcísica na chegada desse bebê em relação às expectativas a esse bebê que chega, esse bebê negro que chega e que muitas vezes não nomear essa negritude ou a maneira que é nomeada essa negritude, é uma questão que pode marcar pela vida inteira. Fico pensando um pouco na clínica, aí acho que é bem uma pergunta talvez deva ser trabalhada em supervisão: como introduzir esse significante para o paciente? Como esse significante vai emergir num processo de análise? Seja criança ou adulto, acho que tem alguns momentos que você nos dá um testemunho do modo que você trabalha, acho que isso é muito generoso, mas queria entender um pouco melhor como você pensa a introdução desse significante racial do sujeito negro que muitas vezes não teve contato, não se reconhece como significante racial da negritude, da cor negra, seja criança, seja adulto.

[Isildinha] Atender criança é muito especial porque é outro atendimento, uma coisa é atender criança, outra coisa é atender adulto. Há muito tempo eu deixei de atender criança, mas atendi criança durante muito tempo e aprendi com a Maud Mannoni que dizia que você sabe tudo sobre a criança, você analista, primeiro você faz uma entrevista com os pais, então você sabe sobre a vida dela e sobre ela. Deixa-la fazer o parto da montanha para contar o porquê que ela está aí, é doloroso demais. Então aprendi com Maud que a gente pode introduzir essa questão. Como introduzir essa questão? Introduzir essa questão, eu acho que tem que ser pensado de acordo com o que você ouve do paciente, ele vai falando coisas, essa questão virá, a sua escuta é que vai trazer para ele o que ele está dizendo, inconscientemente, o que ele está dizendo. Então para criança você coloca. Para o adulto, você precisa primeiro ouvi-lo bastante e entender essa dor, como ela acontece, como ela vem, porque ela vem em forma de dor mesmo. Até porque a luta do negro é para ser incluído, tem um texto meu que eu falo sobre isso, o tempo todo ele tem de se incluir num mundo que pensa em excluí-lo todo tempo. Essa dor vem e a dificuldade de às vezes se ver nesse lugar tem a ver com a angústia que se sofre por estar em um corpo que não vai mudar. A cor negra não vai sumir. E como lidar com isso? Então isto, por exemplo, é algo que tem que vir, mas tem que vir num momento em que você sente que há possibilidade de chegar, porque você não pode dizer para um paciente “Dom, você é negro e você não se vê negro”, não é? Haverá um momento do processo analítico em que essa questão vai chegando. Ela vai chegando aos poucos. A gente vai então poder falar então dessa dificuldade de se ver nesse lugar, mas não dá para a gente dizer para o outro “você não se vê negro”. Nós temos visto, assim, muitos negros com muita dificuldade nesse sentido, que imaginam que o dinheiro seja suficiente ou que… e a decepção e a frustração. O que eu vejo no consultório é que alguns pacientes me dizem “mas eu estudei, eu tenho uma profissão, eu tenho uma casa, eu tenho dinheiro, mas eu estou infeliz do mesmo jeito porque parece que nada disso resolveu minha questão”. Então acho que do que ele está falando? Ele está falando dessa possibilidade que se põe a todo tempo, eu acho que é um devir eterno da exclusão, então há de se falar com muito cuidado. A gente não pode, no consultório, antecipar coisas das quais o paciente ainda não trouxe para nós. Temos que ir devagar, temos que ir com a estrutura dele, com o que ele propõe pensar, mas a gente acaba chegando lá. Não há necessidade de você dizer para ele “então leia Achille Mbembe que você vai entender tudo sobre a questão do racismo”, porque é outro lugar. Não é um lugar que demanda leitura ou cultura livresca, é um lugar onde você tem que ouvir a dor. De que maneira aquela pessoa é atravessada por essa questão? Então a gente tem que ter essa paciência, o trabalho de escuta pode ser um trabalho longo até que a pessoa possa dizer que ela possa falar. Ela precisa verbalizar. Não é você que vai verbalizar para ela. O que é diferente no caso da criança que você tem muitas informações acerca dela, que o pai já vem com as histórias, o que aconteceu, e aí a gente pode conversar com a criança sobre o que os pais… o que já chegou para mim, eu tenho as informações e ela sabe disso, porque os pais vieram falar sobre ela antes. Então também dá para pensar junto, dá para colocar a questão. No caso do adulto, é preciso deixar que o processo aconteça para que a pessoa possa dizer. Eu já supervisionei alguns casos que quando o analista diz para você “mas você é negro”, ele não aparece mais. Ele vai embora. Ele tem medo de falar sobre essa questão. Então é uma questão dolorosa, então a gente precisa ter a paciência, precisa ouvir essa história, precisa ouvir esse contexto e precisa deixar que ele fale. A gente, diferentemente, do que pensou a Djamila Ribeiro como lugar de fala, que eu entendo que ela fala de uma questão epistemológica de quem produz o conhecimento e para quem. Para nós, os psicanalistas, é de outra ordem. A gente entende que não é o lugar que vai fazer a fala para o paciente, o lugar de onde ele vem, mas é o lugar de onde ele fala. Quando ele diz, ele vai dizer, nós ouvimos recentemente alguém dizer “negro faz mimimi, racismo não existe, movimento negro é coisa de vagabundo”, lembra que nós ouvimos essas coisas? Lamentavelmente. E essa pessoa que era negra e que dizia isso, de que lugar é essa fala? Essa fala vinha de um supremacista branco, não de um negro. Negro faz mimimi, racismo não existe? Impossível. Não é o lugar de onde veio essa pessoa que era uma pessoa negra também, filhos de militantes maravilhosos, era o lugar… a partir do momento que ele assumiu uma ideologia racista, fascista e supremacista branco, ele falou desse lugar. Então ali ele não falava da negritude dele nem da dor que representa isso.

[Paulo] Era muito sintomático que, inclusive, tem a negação dos pais negros, que enfim…

[Isildinha] Maravilhosos, eu conheci esses pais, conheço esses pais. Eram muito amigos dos meus tios e a gente sabe que o seu Oswaldo é uma figura histórica no movimento negro.

[Paulo] Como é a entrada nesse ambiente psicanalítico, pensando a intersecção entre gênero e raça, uma mulher negra?

[Isildinha] Complexo. O mundo psicanalítico sempre foi um mundo hetero orientado e branco. As mulheres brancas, acredito que com maior facilidade, embora a nossa sociedade psicanalítica aqui de São Paulo, ligada à internacional, a IPA, tenha sido fundada pela Virginia Bicudo, que era uma analista negra. Uma mulher negra. E ela sofreu muito. A gente tem os relatos, ela sofreu execração pública por ser psicanalista e também por ser uma mulher negra. Nunca foi fácil. Eu acho que é bem difícil essa questão, mas eu acho que de uma certa forma, eu fui preparada para ser essa figura que não se incomoda tanto assim com as diferenças, “tem que fazer? Vamos fazer, vamos lá”. Eu fui muito bem… eu sofri um processo narcísico já adulta na França, mas que me fortaleceu muito. Principalmente porque eu fui, durante muito tempo, a única psicanalista negra de mais visibilidade em São Paulo. Sempre falei para todos os psicanalistas, é bem difícil porque há essa diferença e há também uma diferença de classe. São muitas as diferenças, a interseccionalidade, a questão de gênero, a questão da negritude, as mulheres negras são mulheres muito fortes, mulheres, como dizia o Milton, “uma gente que ri quando deve chorar”. Adoro essa música do Milton, “Maria, Maria”, porque acho que traduz muito aquilo que nós mulheres negras somos, de uma gente que ri quando deve chorar. Eu acho que é um pouco isso. Eu nunca esmoreci em relação a isso, mas claro que eu fui desconsiderada… hoje não, hoje com tudo que nós temos… primeiro, que hoje em dia as pessoas têm constrangimento de dizer que é racista ou que não aceitam mulheres e muito menos mulheres negras. Então acho que vivemos um outro momento, mas em outro momento, eu acho que não tinha mesmo essa fragilidade, porque eu fui muito bem estruturada nesse sentido para lidar com essas diferenças. Eu fui questionada fora daqui isso é muito difícil, sozinha, morando na França, num lugar… no berço da cultura Ocidental, da Europa, toda cultura eurocentrada e você se deparar com isso, enfrentar isso é muito forte. Então quando eu voltei para cá e tive que… eu não tive o sofrimento que a Virginia teve. Hoje eu tenho muito o respeito das pessoas. É interessante. Sejam homens brancos ou mulheres.

[Paulo] Você chegou a conhecer a Virginia?

[Isildinha] Não, não conheci. Conheci analisandos dela que dizem maravilhas sobre elas. Conheci um homem bem velhinho da Sociedade e que diz que ela era uma pessoa maravilhosa, mas eu não cheguei a conhecê-la, não. Mas tenho grande admiração por tudo o que ela enfrentou. Ela enfrentou coisas muito difíceis. Imagina lá na década de… quando fui fazer uma fala na Sociedade, a primeira vez, eu escrevi um texto em que eu dizia para ela… eu evocava a Virginia, “Virginia, não te ouviram lá, década de 1930, 1940 e você era brilhante. Será que vão me ouvir hoje?”, isso provocou uma comoção na plateia. Eu fiz uma invocação da Virginia na casa que ela fundou junto com o Marcondes. Foi muito legal isso. Quer dizer, ela também é muito presente para mim como modelo, obviamente, como outras mulheres negras que foram importantes para nós.

[Paulo] Genial a estratégia. Um é uma questão e a outra é um pedido para que você fale sobre um episódio. O lugar da experiência pessoal na formação, o quanto poder olhar na experiência pessoal para o racismo e… é uma pergunta ampla, não estou falando só de nós enquanto negros, olhar para a nossa própria experiência mesmo e, talvez, principalmente os analistas brancos conseguirem olhar para essas experiências raciais, o quanto que isso também pode ter impacto na formação. Queria que você falasse de um episódio que te impactou e esteve presente na tua pesquisa, quando você fala daquela criança negra na Bélgica.

[Isildinha] Então, interessante, porque ali era um… era uma situação de professores belgas brancos da universidade e que adotaram uma criança africaninha, negra, linda, linda. Ela era muito linda. Ela tinha muita facilidade de ir com os brancos, ela tinha oito para nove meses. Muita facilidade. No colo dos negros, ela ficava um pouco…, mas é um período da vida da criança, entre o sétimo e nono mês, que a criança tem mesmo muita dificuldade de ir com outros. Ela busca mais a família, os rostos mais familiares. Aconteceu da mãe passar com ela pelo espelho e brincar com ela, colocá-la no espelho e ela desmaia. Quando ela viu o rosto, que ela era uma figura totalmente diferente da mãe. Nesse momento me vem essa ideia, o choque, todos nós ficamos muito aflitos com aquilo, mas eu pensei “olha, ela se imaginava como a mãe e quando ela se vê no espelho, ela sente o horror dela mesmo”. Foi aí que eu comecei a entender que havia um sofrimento que era para além só daquilo que a gente imaginava, dos horrores da escravidão, dos horrores que nós sofremos diariamente, mas que eu entendi que ali tinha um sofrimento psíquico por essa diferença muito grande. Aí foi feito um trabalho com essa família, aos poucos ela foi podendo se enxergar. Mas todas as vezes que chegava perto do espelho, ela não queria chegar perto. Demorou muito, mas muito tempo mesmo, ela já bem grandinha, para ter essa experiência. Eu acho que esse poder se ver, se ver nesse lugar de se ver negro no espelho… para nós, a experiência do espelho já é uma experiência bem… nós nos imaginamos muito diferente daquilo que somos, então a experiência de espelho sempre nos coloca frente ao estranho. Freud tem um texto sobre isso, que ele se vê num vagão de trem no espelho e ele se assusta, fala “quem é essa pessoa horrível?”, era ele mesmo. Então a gente tem essa questão com o espelho. O processo de análise, eu acho que pode nos colocar diante do espelho de uma maneira menos dolorida, em que a gente percebe que dá conta de lidar com isso. Para o analista, a análise é fundamental, seja ele branco ou negro. Poder olhar para a sua história, poder olhar para o seu romance familiar. O Freud falava da importância do romance familiar, porque cada um de nós vem de uma família, de uma história e dar conta de olhar para essa história, sem que a gente negue todos os nossos processos dentro dessa história é fundamental para ouvirmos um outro ser humano. Porque, primeiro, a gente entende que só um humano pode atender outro humano; a gente entende o que é sofrimento e sofrimento é sofrimento. Existe sofrimento maior do que outro? No mundo da Psicanálise, isso é muito complexo porque sofrimento é sofrimento, eu não posso julgar o meu paciente. Que tipo de sofrimento ele vai me trazer? Eu vou ouvi-lo a partir da dor dele e entendê-lo a partir da dor dele. Se eu classifico que existem pessoas com dores maiores do que a dele, eu não vou ouvi-lo. Isso eu acho que é uma complexidade, principalmente quando você tem… “ah, então o analista não tem consciência política?”, eu acho que, pelo amor de Deus, o analista tem que ser um ser do tempo dele, tem que estar atento a tudo que está acontecendo, à história, ele tem que ir para frente e para trás da sua história e na história da sociedade em que ele está inserido. Mas isto não nos autoriza a classificar sofrimentos, pelo menos na minha visão, eu acredito que tem pessoas que pensem diferente. Senão não consigo ouvir. A dor de um paciente… existe uma dor maior do que a outra? Para mim, não. Existem dores. Dores que são profundas… dores. Dores. A partir do momento que vá classificar… você já imaginou tudo o que nós sofremos? Sofremos no passado e sofremos ainda hoje porque quando eu vi uma pessoa branca, uma ex-atleta tirar a guia do cachorro e chicotear um homem negro no Rio de Janeiro, aquilo foi mais do que um susto. Pensar que todo aquele período racista, todo aquele período da escravidão, na verdade, não passou, está no imaginário das pessoas. Imagina pegar um chicote e chicotear um negro. Nós vivemos todo esse horror. Agora, imagine se eu estiver como paciente um branco no meu divã, eu entendo uma classe média altíssima branca e a pessoa “o sofrimento dele não tem nenhuma importância, porque o meu foi tão grande”. Eu vou estar desumanizando. Então o analista, no meu modo de ver e assim eu aprendi com meus mestres, que o sofrimento é sofrimento. Ele não é maior nem menor do que qualquer… claro, tem diferenças, claro, a gente tem consciência social, mas se a gente partir da comparação e do julgamento, acho que a gente deixa de ouvir.

[Paulo] Isso me traz uma nova pergunta que é: o inconsciente do sujeito branco tem cor?

[Isildinha] Tem.

[Paulo] Qual?

[Isildinha] Eu acho que é a cor dos privilégios. Me perguntam sempre se a luta que eu faço ou imagine que a luta que a gente faz por políticas públicas, etc. e tal, se eu quero chegar ao privilégio que tem o branco. Eu sempre respondo que: não, eu quero direitos. Direitos. Eu acredito que eu fui alijada de direitos, não de privilégios. O privilégio, ele exclui. Para que uma pessoa tenha privilégio, alguém está excluído e eu não quero excluir ninguém. Claro que o inconsciente branco tem cor. Desse lugar da branquitude, branquitude e brancura são duas coisas completamente diferentes. Há pessoas que tentam pôr no mesmo lugar, é fato, mas a brancura é o inatingível tanto para o negro como para o branco. É a excelência. A branquitude é um lugar social. É o lugar de privilégio. Claro que tem. São questões muito específicas, mas são questões humanas. Não cabe a mim julgar. Aprendi que o analista não é um juiz. Ele é alguém que está pronto a ouvir a dor daquele que está no meu divã.

[Paulo] Agradeço profundamente por essa conversa, por todo o compartilhamento de experiência, de leitura clínica, de leitura social, das relações sociais também, enfim, das questões políticas de modo geral. Para nós é uma honra poder estar tendo essa conversa e, principalmente, para mim, extremamente honrado de estar aqui na sua frente, emocionado também. É isso, agradeço muito.

[Isildinha] Para mim, sou eu que agradeço às pessoas e essa possibilidade de falar. Eu espero que a gente… foi importante para mim estar aqui, Paulo, e aprender com vocês porque todas as questões serviram para que eu pudesse pensar. Sempre quando estou com as pessoas, vejo uma oportunidade de aprendizado. O exercício da Psicanálise é muito solitário, a gente está sempre muito sozinho dentro do consultório, então poder falar e falar com outros e trocar, é maravilhoso e te reencontrar aqui também. Embora minha memória fique meio confusa porque eu conheço tanta gente, eu passo por tantas pessoas, mas claro que eu te reconheci, quando você falou, eu me lembrei da sua voz, que é uma voz gostosa, tranquila. Então eu que agradeço, eu que sou grata por vocês fazerem essa entrevista. Gratidão.

[Isildinha] Obrigada, obrigada. Gratidão a todos vocês.

Isildinha Baptista Nogueira

Psicanalista e pesquisadora. Mestre em Psicologia Social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e doutora em Psicologia Escolar e Desenvolvimento Humano pela Universidade de São Paulo (USP). Fez sua formação nos Ateliers de Psychanalise, em Paris, com Radmila Zygourys, uma das fundadoras da instituição. Docente no Instituo Sedes Sapientae. Autora do livro “A cor do inconsciente: Significações do corpo negro” ‎ (Perspectiva, 2021).

Paulo Bueno

Psicanalista, psicólogo (PUC-SP), mestre e doutor em Psicologia Social (PUC-SP).  Supervisor clínico e institucional.
Docente do Instituto Gerar de Psicanálise. Professor convidado do Programa Fellowship – 2021/2022 (Columbia University). Colaborador do Instituto AMMA Psique & Negritude – 2020/2021. Autor de “Coisas que o Pedro me ensina: crônicas de uma paternidade”.

Tatiane Zaram

Psicanalista e psicóloga. Pós-graduada em Psicanálise, Perinatalidade e Parentalidade pelo Instituto Gerar. Integrante da equipe editorial da Revista Traço. Estuda Relações Raciais e se engaja em questões relacionadas.

Vera Iaconelli

Psicanalista, Mestre e Doutora em Psicologia pela USP, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, foi analista de escola de 2016-2017 e é membro do Fórum do Campo Lacaniano, autora dos livros: Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna (Zagodoni, 2 edição, 2020), Criar filhos no século XXI (Contexto, 2019), organizadora da Coleção Parentalidade & Psicanálise (Autêntica, 5 volumes, 2020) e Manifesto antimaternalista: Psicanálise e políticas da reprodução (Zahar, 2023). Colunista da Folha de São Paulo e Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise.