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09_A Comissão Internacional de Formação, 1925-1938: esforços para padronizar a formação*

Michael Schröter

tradutor: Paulo Sérgio de Souza Junior

Antes da Primeira Guerra Mundial, o que existia de formação psicanalítica geralmente se realizava mediante instrução oferecida nas sessões científicas dos poucos grupos locais que constituíam a Associação Psicanalítica Internacional (IPA). A filiação à IPA serviria como “uma espécie de garantia” de que um determinado clínico praticava a psicanálise lege artis (Freud, 1914/2012, p. 295).

Após a guerra, sentiu-se a necessidade crescente de um formato mais rigoroso de formação (cf. Hale 1995, pp. 25-37). Isso levou, entre outras coisas, a um relatório do Executivo Central da IPA, apresentado por Ernest Jones no Congresso de Berlim em 1922, instando as filiais a “exigirem de todos os candidatos a membro um padrão adequado de conhecimento” (International Journal of Psychoanalysis [IJP], 1923, p. 239). Essa cláusula ganhou peso adicional pelo fato de, no Congresso anterior (Haia, 1920), uma proposta de considerar a emissão de diplomas de psicanálise haver sido rejeitada pelo mesmo relatório, que continuou sustentando “que a filiação às Sociedades tende a constituir o equivalente atual de um Diploma”2.  No entanto, ficou claro, mesmo nesse momento inicial, que as discrepâncias nacionais — como a que havia entre os grupos suíço e alemão, em relação ao quanto de formação deveria ser exigido para a associação; ou aquela entre o grupo de Nova York e a maioria dos demais grupos, em relação à admissão de não médicos — constituiriam sério problema tão logo um membro de uma Sociedade quisesse ser transferido para outra. Devido ao caráter bastante internacional da escola freudiana, alguma padronização da formação e das condições de filiação se mostrava inevitável.

I

O relatório de Jones de 1922 declarou que o Executivo Central não se sentia em condições de definir a natureza da formação requerida para a admissão como membro “devido à diferença nas oportunidades de tal formação disponíveis em diferentes países”. Essa observação aludia à situação em Berlim, onde uma instância especial de formação profissional em psicanálise estava sendo estabelecida, começando em 1920 com a criação de uma policlínica que, por um lado, fornecia tratamento gratuito para os necessitados e, por outro, servia como um fundo comum onde os alunos podiam encontrar pacientes aptos. A força motriz decisiva por trás dessa criação foi Max Eitingon (Schröter, 2004a). Em três anos, a policlínica se transformou em “um instituto de formação com caráter acadêmico e um programa de estudos fixo” (Schröter, 2004b, p. 172) que estabeleceu formalmente as suas diretrizes (IJP, 1924, p. 117)3.  No início da década de 1920, a formação ali disponível foi buscada por muitas pessoas do exterior, entre elas austríacos, húngaros e alguns homens e mulheres vindos da Inglaterra (Makari, 2008, p. 372).

A estrutura tripartite do treinamento berlinense, que consistia em análise pessoal, cursos e tratamento sob supervisão, é bem conhecida (cf. Schröter, 2002b, pp. 877-879). A exigência de uma análise didática, ecoando uma sugestão zuriquense mais antiga, teve aprovação geral após ter sido expressa no Congresso de Budapeste em 1918. Embora as palestras e os seminários fossem ministrados de acordo com a tradição acadêmica, a análise supervisionada foi uma importante invenção de Berlim. O tempo necessário para a formação foi fixado num formidável mínimo de três anos. A admissão na Berliner Psychoanalytische Vereinigung [Associação Psicanalítica de Berlim] era restrita aos analistas que se haviam graduado. E houve outro avanço crucial que é geralmente negligenciado: em Berlim, o direito de analisar didaticamente foi negado a analistas individuais. Toda a autoridade em questões de formação foi transferida para um corpo coletivo, nomeado pela Sociedade: o comitê de formação. Pode-se dizer que, em conjunto, esses elementos constituem o sistema berlinense de formação (atualmente apelidado de “modelo Eitingon”), e a maior parte deles consistia em inovações locais genuínas.

Em 1925, no Congresso de Bad Homburg, Eitingon apresentou esse sistema à IPA (IJP, 1926, pp. 130-134; cf. Schröter, 2002b, pp. 879-880). Ele relatou que Viena, ao fundar seu próprio instituto, acabara de seguir os passos de Berlim, e que Londres e Budapeste estavam prestes a fazer o mesmo. Na reunião de trabalho, foi aprovada uma resolução estipulando que todas as sociedades da IPA deveriam eleger um comitê de formação e que esses comitês deveriam se unir para formar uma Comissão Internacional de Formação (ITC), que seria o “órgão central” da IPA para todas as questões relacionadas a formação (IJP, 1926, p. 141). Em longo prazo, essa resolução tinha como objetivo incentivar a fundação de mais institutos. Como afirmou Ferenczi, a iniciativa de Eitingon originou-se da sua “aspiração de impor a todos os lugares, como um modelo obrigatório, o brilhante exemplo de Berlim” (carta a Eitingon, 24 de outubro de 1925). Eitingon assumiu a presidência da nova Comissão, naturalmente. E logo se tornou, também, presidente da IPA.

II

Em Bad Homburg, Eitingon já havia levantado a questão da qualificação dos candidatos, ou seja, a questão da laicidade, que dividia os grupos americanos4 e os principais grupos europeus e causava um forte antagonismo (Wallerstein, 1998, pp. 1-49). Aliás, esse assunto havia sido promovido primeiro por Freud, que rejeitava a inclusão da psicanálise na clínica médica e queria estabelecê-la como uma profissão independente que deveria estar aberta também a não médicos (cf. Freud, 1926/2016). Embora a ênfase principal de Eitingon fosse na expansão dos princípios berlinenses de “formação rigorosa” dentro da IPA, ele fez do desejo de Freud o seu próprio e lançou uma discussão pública acerca da questão da análise leiga (IJP, 1927, pp. 174-283, 392-401). Durante alguns anos, essa questão dominou e interferiu em sua agenda própria. O fato é que o conflito central naquela época não era tanto acerca da admissão de candidatos leigos, mas sim sobre a predominância da regulamentação central, a ser monitorada pela ITC, ou da autonomia local (Schröter 2002b).

Em 1927, as duas posições antagônicas entraram em conflito no Congresso da IPA realizado em Innsbruck. Quando Eitingon apresentou uma resolução que obrigava todas as filiais a admitirem candidatos não médicos que estivessem aptos, não conseguiu aprová-la. Não só os americanos e os holandeses, mas também Jones, recusaram-se a colocar a autoridade central acima dos poderes locais. Para resolver esse impasse, o Congresso encarregou a ITC de “elaborar […] um esquema de condições de admissão à formação para a profissão de analista terapêutico e de todo o curso de formação psicanalítica em geral” (IJP, 1928, pp. 153-154). Esperava-se que alguma regra universal também pudesse solucionar o problema de pessoas, especialmente não médicas, que receberam formação no exterior e cuja filiação aos respectivos grupos de origem fosse negada. Esse foi e continuou sendo um dos principais pontos de discórdia entre Nova York e Viena/Budapeste (cf., por exemplo, Freud & Eitingon, 2004, pp. 514-515; Gay, 1989/2012, pp. 500-503).

Um subcomitê nomeado por Eitingon elaborou o “esquema” que havia sido solicitado em Innsbruck, redigindo um corpo de detalhados estatutos que foi enviado a todas as filiais da IPA para solicitar seus comentários (Schröter, 2002a). Após receber um ríspido “não!” de Nova York, a minuta inteira caiu por terra. O que provocou a resistência americana foi o fato de que o comitê havia sido composto exclusivamente por membros de Berlim e que eles não haviam coletado as opiniões dos colegas primeiro, mas os haviam confrontado diretamente com as suas regras locais, incluindo a admissão de candidatos leigos. Esse episódio representou o mais ambicioso esforço de tornar válidas em toda a IPA as normas de formação berlinenses. Como o esforço falhou, o comitê de Eitingon declarou renúncia no Congresso de Oxford em 1929.

III

Esperava-se que em Oxford os defensores da autonomia local ou nacional formassem maioria e que Jones utilizasse essa situação para decidir em favor deles. Eitingon evitou que isso acontecesse ameaçando uma cisão da IPA (Freud & Eitingon, 2004, pp. 634-636). Surpreendentemente, numa conferência pré congresso, chegou-se a um meio-termo: se Nova York desistisse de sua generalizada rejeição a analistas não médicos, os centro-europeus prometiam não formar nenhum candidato estrangeiro sem a permissão do respectivo grupo natal.5 Num primeiro momento, o Acordo de Oxford foi implementado, com Nova York permitindo certo acesso aos leigos. Mas a paz terminou em 1932/33, quando, em Nova York, a filiação passou novamente a ser restrita a médicos.6

O Congresso instituiu um novo subcomitê da ITC para dar continuidade às tentativas de elaboração das regras de formação da IPA (IJP, 1929, p. 525). Dessa vez, era um comitê internacional presidido por Jones. O relatório composto pelo comitê de Jones foi aprovado em 1932 no Congresso de Wiesbaden. Em contraste com o projeto anterior, de Eitingon, não se tratava de um conjunto de minuciosas regulamentações, mas sim de uma estrutura flexível a ser detalhada na legislação nacional ou local (IJP, 1933, pp. 157-159, 176). Alguns princípios básicos, no entanto, foram fixados: a responsabilidade dos comitês de formação, a estrutura tripartite da formação e a sua duração mínima de três anos. Questões polêmicas, em particular o problema da laicidade, foram explicitamente deixadas em aberto. De todo modo, essa foi a primeira vez que uma regulamentação uniforme da formação psicanalítica foi aceita pela IPA. Embora isso tenha marcado uma derrota da facção da Europa Central com relação à análise leiga, na maioria dos aspectos as conquistas do “modelo Eitingon” haviam se tornado padrão internacional comum.

No intervalo entre Oxford e Wiesbaden ocorreram dois eventos que influenciaram fortemente o destino da ITC. Primeiro, em 1931, a Sociedade de Nova York fundou um instituto de formação e convidou Sándor Radó, de Berlim, secretário da ITC, para assumir a direção (IJP, 1932, p. 274); e, segundo, a Associação Psicanalítica Americana (APsA) foi transformada numa “federação” de sociedades americanas locais (IJP, 1933, p. 161). Embora a derradeira constituição da APsA tivesse de esperar mais alguns anos, esse foi um passo organizacional decisivo que promoveu a autonomia americana. Pouco se sabe que foi o próprio Eitingon, cujo mandato como presidente da IPA terminou em Wiesbaden, quem sugeriu essa mudança, porque não queria que o Executivo Central fosse sobrecarregado pelas pelejas internas americanas (Freud & Eitingon, 2004, pp. 800, 806-807; carta de Eitingon a Brill, 26 de setembro de 1929). Assim, expressou certa irritação quando, mais tarde, suspeitaram que ele se opunha à independência da psicanálise americana (por exemplo, carta de Eitingon a Lewin, 6 de dezembro de 1937).

IV

Em 1934, no Congresso de Lucerna, a ITC elaborou suas próprias regras permanentes (IJP, 1935, pp. 245-246). Ali, a Comissão reivindicou autoridade formal tanto para reconhecer quanto para retirar o reconhecimento de um instituto de formação. Além disso, ela poderia autorizar sociedades filiadas ou membros individuais da IPA a constituir um “centro de formação” — o que foi, em parte, uma reação aos problemas resultantes da maciça emigração de analistas da Alemanha. Esse conjunto de regras marcou o clímax da institucionalização da ITC e sua busca por poder. Ele também marcou o ponto de inflexão em que começou o seu declínio.

A principal força motriz por trás do desenvolvimento da Comissão e de seu conselho num centro de poder que rivalizava com o executivo da IPA era Radó. Aos olhos dos demais líderes da ITC, as ambições dele o levaram até a falsificar seu relatório sobre as diligências de Lucerna; assim, Anna Freud, que acabara de entrar para o conselho, opôs-se a ele e revisou o relatório para publicação. Radó renunciou (Edward Bibring, de Viena, tornou-se o sucessor dele)7.  Esse conflito mostra que Eitingon, após sua mudança para a distante Jerusalém, havia perdido o controle da ITC, e Anna Freud havia assumido um papel dominante.

Embora a Comissão tenha conseguido, de fato, lidar com os problemas relacionados à emigração, logo ficou claro que haveria oposição na América. Dizia-se que uma “campanha” havia começado por lá, no início de 1935, com o objetivo de refutar qualquer interferência externa nos assuntos nacionais (carta de Radó, 23 de fevereiro de 1935). O fato de a ITC estar em terreno instável também ficou evidente quando Eitingon desejou instituir que os membros se encontrassem regularmente  nos anos entre os congressos e já teve de cancelar a primeira reunião, agendada para Paris no verão de 1935, devido à previsível escassez de público. Jones mesmo chamou essa ideia, de forma zombeteira, de “ideia de um homem só”.8

Naquela época, Anna Freud ainda sustentava que a ITC deveria possuir autoridade não apenas para confirmar, mas também para licenciar novos institutos de formação (carta a Eitingon, 1º de junho de 1935); e Eitingon achava que a Comissão tinha o direito de aprovar formalmente os analistas didatas dentro da IPA, ao passo que Jones desejava atribuir essa função às sociedades locais (carta de Jones a Eitingon, 16 de outubro de 1935). Entretanto, alguns meses depois, Anna Freud propôs uma reorganização fundamental (Circular, 3 de outubro de 1935). A ITC deveria abandonar toda e qualquer reivindicação de posição de poder. O poder existente deveria estar concentrado no executivo da IPA. Contrariamente às tentativas anteriores de estabelecer a ITC como uma instância de legislação e controle, sua função agora era definida como a de uma plataforma de discussão — uma “estrutura na qual deveriam ocorrer o contato entre institutos, a estreita comunicação acerca das questões de formação, a troca de experiências etc.” (Circular da ITC, final de 1935).

V

Em 1936, no Congresso da IPA em Marienbad, essa reorganização foi colocada em prática. Eitingon forneceu alguns exemplos de como o trabalho da Comissão poderia continuar (IJP, 1937, pp. 354-355). Sugeriu reuniões regulares entre analistas didatas de países vizinhos — uma ideia inspirada na recente Conferência dos Quatro Países, com colegas de Viena, Praga, Budapeste e Itália —, e achou que valia a pena considerar se uma segunda análise de analistas qualificados deveria ser formalmente incluída no currículo.9 Desse modo, respaldou uma mudança de foco da regulamentação para questões de formação substanciais. Quaisquer que tenham sido as chances da reforma de Marienbad, ela jamais foi testada, pois o grupo de Viena, o então centro de força da ITC, logo foi dissolvido.

Em todo caso, a reforma teria sido difícil. Na América, as tendências isolacionistas acabaram prevalecendo. O grupo de Nova York assumiu novamente a liderança. Em março de 1936, ele aceitou uma resolução sugerindo que a ITC fosse dissolvida e substituída por uma conferência informal, sem nenhum diretor ou autoridade própria, de assuntos relacionados a formação. A ideia veio mais uma vez de Radó, que, em total contraste com sua atitude centralizadora anterior, agora defendia a autonomia americana. Por uma certa combinação de intriga e negligência, essa resolução foi apresentada no encontro de Marienbad como uma moção pessoal de Radó e, como tal, foi rejeitada, levando a um ruidoso embate entre a ITC e Nova York.10 Em retrospecto, essa farsa parece prenunciar um conflito mais sério. Em dezembro de 1937, a Associação Psicanalítica Americana instaurou um comitê para examinar suas relações com a IPA. Com base no relatório desse comitê, uma declaração foi pronunciada em junho de 1938, asseverando que as sociedades americanas sentiam fortemente que, “em todas as questões de organização, administração, formação e prática da psicanálise”, elas “são de fato, e deveriam ser, autônomas e independentes de laços internacionais”. Em particular, elas acreditavam que “um órgão de formação internacional, dotado de poderes administrativos e executivos”, não era necessário e, portanto, desejavam descontinuar “sua representação tanto no Comitê Internacional de Formação quanto no Executivo Central”.11

O congresso seguinte, em Paris, surpreendeu-se com essa declaração de independência (cf. IJP, 1939, pp. 121-122), embora ela certamente não tivesse surgido do nada. Em circunstâncias diferentes, a liderança da IPA poderia ter concretizado antigas ideias de romper laços organizacionais com os grupos americanos de então e incentivar o estabelecimento de novos grupos que fossem leais aos princípios da IPA. Mas numa situação em que tantos refugiados de Viena dependiam da hospitalidade e do auxílio americanos, essa não era uma opção.12 Assim, o Executivo Central concordou mais ou menos com prescindir de qualquer poder administrativo na América (carta de Glover a Kubie, 21 de dezembro de 1938). Uma reunião entre representantes de ambas as associações, marcada para setembro de 1939 (carta de Jones a Eitingon, 27 de julho de 1939), foi cancelada devido à deflagração da guerra. Quando foi realizada depois da guerra, por fim, a ITC não foi reativada.

VI

A julgar por esse resultado, pode parecer que Eitingon e a ITC fracassaram. Na realidade, essa impressão é apenas parcialmente verdadeira. Houve um enorme progresso entre 1925 e 1939. Em meados da década de 1930, o sistema de formação profissionalizado, tal como havia sido concebido em Berlim e posteriormente defendido pela ITC, estava amplamente estabelecido. Era um fato reconhecido que todos os novos institutos, de Viena a Chicago, haviam sido confeccionados conforme o modelo berlinense.

O que se mostrou ilusório, no entanto, foi a esperança de Eitingon de que esse sistema de formação pudesse se espalhar e ser implementado por uma autoridade central e por regras detalhadas que esse órgão deveria emitir. Em termos de instituição, a ITC havia, de fato, fracassado. Quase desde o início, a sua história foi marcada por conflitos com os grupos americanos, principalmente com Nova York. A Comissão conseguiu conceder a Otto Fenichel uma permissão para lecionar em Oslo ou Praga depois de 1933, mas não obteve nenhuma influência oficial na América — que insistia, inflexivelmente, na autonomia. É interessante notar que não tardou até que a Associação Americana criasse o seu próprio Conselho de Padrões Profissionais, exercendo os mesmos poderes centrais (isto é, supralocais) em escala nacional que ela havia negado à ITC internacionalmente (cf. Mosher & Richards 2005). Dessa forma, até mesmo o modelo estrutural da ITC sobreviveu.

No entanto, embora a Comissão como tal pareça ter tido um efeito limitado, houve outras formas não organizacionais pelas quais o “modelo Eitingon” de formação se difundiu. Em primeiro lugar, ele estabeleceu um padrão para outros grupos. A própria oposição nova-iorquina ao domínio da ITC estava fadada a perder crédito, a não ser que o grupo criasse o seu próprio instituto de formação. E quando esses institutos foram fundados, alguns deles foram dirigidos por pessoas convidadas de Berlim para essa tarefa: Radó, em Nova York; Franz Alexander, em Chicago. Noutros lugares, os analistas de Berlim desempenharam papel de destaque: Hanns Sachs, em Boston; Rudolph Loewenstein e René Spitz, em Paris.13 E houve estrangeiros que participaram da formação em Berlim e se apropriaram dos seus princípios, tentando alcançar algo semelhante depois de voltarem para casa: James e Edward Glover, de Londres; Helene Deutsch, de Viena; Johan van Ophuijsen, de Haia; Bertram Lewin, de Nova York; Ives Hendrick, de Boston. Indiscutivelmente, esses vínculos pessoais foram os mais poderosos fatores que garantiram o estabelecimento de altos padrões comuns de formação, com base no sistema berlinense, na maior parte do mundo psicanalítico.

Assim, temos a paradoxal situação de que esse sistema foi um sucesso global, mesmo quando a instituição que havia sido projetada para as suas disseminação e elaboração se desintegrou. É uma questão que resta em aberto se a ITC, transformada num fórum de discussão após a reforma de Marienbad, poderia ter sobrevivido se as circunstâncias políticas tivessem sido menos catastróficas. Na situação vigente, os grupos nacionais estabelecidos — seja na América, na Grã-Bretanha ou na França — tiveram bastante liberdade para seguir seu próprio curso em questões de formação. Mas chegou uma hora que a necessidade de algumas plataformas comuns para compartilhar experiências e estabelecer padrões se fez sentir novamente, e a IPA teve de criar novos instrumentos para cumprir as funções da finada Comissão Internacional de Treinamento.

*[1] Este artigo surgiu de uma contribuição para a mesa “Emigração de Berlim: Traslado de teorias e regulamentações institucionais. Parte 2”, no 45º Congresso da IPA em Berlim, de 25 a 28 de julho de 2007; para uma versão anterior e ampliada, cf. Schröter (2008). Salvo indicação em contrário, todas as fontes não publicadas citadas aqui foram extraídas do Acervo Eitingon mantido no Arquivo do Estado de Israel, em Jerusalém.

[2] Essa citação foi extraída do “Report of central executive on questions concerning the desirability of granting a diploma, the conditions of membership etc.” [Relatório do executivo central sobre questões relativas à conveniência de conceder um diploma, às condições de associação etc.]. (BPS = Arquivo da Sociedade Psicanalítica Britânica).

[3] As diretrizes foram publicadas em alemão na Internationale Zeitschrift für Psychoanalyse, 10 (1924), pp. 232-333; elas não foram publicadas em inglês. Danto (2005) não enfatiza suficientemente a função formativa que, desde o início, caracterizou a policlínica de Berlim.

[4] De acordo com o linguajar da época, uso aqui o termo “América” para designar os Estados Unidos.

[5]Por ter sido obtido nos bastidores, nenhum vestígio do “Acordo de Oxford” aparece nas Atas do Congresso propriamente ditas (Wallerstein, 1998, p. 35). Não há dúvida, porém, da existência de tal acordo, que é repetidamente mencionado nas fontes relevantes (cf., por exemplo, Schröter, 2004a, p. 22, n. 46; H. Sachs, citado em carta de A. Freud a Jones, 30 de janeiro de 1934 [BPS]).

[6] Sobre a admissão de leigos em Nova York: IJP, 1930, pp. 248, 356; 1931, p. 256. Sobre a restrição a médicos: IJP, 1935, pp. 244-245. Sobre a data “1932/33”, cf. as cartas de Federn a Eitingon, 15 de novembro de 1932, e de Eitingon a Jones, 26 de maio de 1933.

[7] Esse episódio está documentado numa complexa correspondência entre Eitingon, A. Freud, Radó e Jones. Seus pontos altos são uma longa carta de A. Freud a Radó, em 9 de dezembro de 1934, e sua resposta, ainda mais longa, dirigida a A. Freud e Eitingon, em 23 de fevereiro de 1935.

[8] Carta de Jones a A. Freud, 11 de julho de 1935 (BPS); cf. carta Eitingon-A. Freud, 17 de julho de 1935.

[9] Para as discussões realizadas nas Conferências dos Quatro Países acerca da “análise de controle” (hoje “supervisão”), cf. Rath, 2008. A “pós-análise” (hoje “reanálise”) foi tópico de um artigo que Anna Freud apresentou no encontro da ITC em Paris, no ano de 1938 (IJP, 1939, p. 213).

[10] Para algumas informações detalhadas acerca desse caso, cf. Schröter 2008, pp. 213-217.

[11] Relatório do Comitê Especial sobre as Relações da Associação Psicanalítica Americana com a IPA, assinado por L. S. Kubie, com a Resolução da APsA de 3 de junho de 1938.

[12] Cf. carta de Bibring a Eitingon, 21 de julho de 1938: “[…] qualquer reação negativa [em relação aos esforços americanos para se desvincularem da ITC] de nossa parte significaria, hoje, essas pessoas não apenas deixando a IPA, mas também abandonando toda a ação assistencial, o que colocaria em risco muitos de nossos colegas e candidatos”.

[13] Isso sem falar nas atividades dos emigrantes de Berlim após 1933, como, por exemplo, as de Fenichel em Oslo, Praga e Los Angeles.

referências

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[Traduzido por Paulo Sérgio de Souza Jr. do original “The International Training Commission, 1925-1938: efforts to standardize training”, publicado originalmente em: Loewenberg, P. & Thompson, N. (org.) 100 Years of IPA: The Centenary History of The International Psychoanalytical Association / 1910-2010 / Evolution and Change. London: Routledge, 2011; pp. 437-447]