Claudia Mascarenhas [1]
O movimento liberal, signatário do nosso tempo, tem sido preponderante na crença de que ao indivíduo cabe perseguir seus projetos individuais sem maiores interferências externas (Campello, 2022). Tal premissa tem se tornado uma das lentes imprescindíveis para problematizar a sustentação da prática clínica com crianças, inaugurando uma suspeita determinante na condição para a sua permanência no campo da própria psicanálise. Não basta apenas considerarmos a necessidade de o psicanalista se reconhecer em seu tempo (Lacan, 1953/1998)[2]; do mesmo modo, quando se trabalha com crianças, não basta reconhecer a existência de diversas infâncias (Mascarenhas & Trad, 2024). É imperioso, para estarmos advertidos sobre os efeitos do nosso tempo, identificar quais desvios e deslizamentos epistemológicos têm afetado as relações do sujeito com a linguagem e com a cultura, assim como as invisibilidades e as exclusões que afetam seus modos de subjetivação.
O meu propósito é conseguir não só afirmar a necessidade de leituras sobre a incidência do contexto na clínica, mas sim, ao contextualizá-la, localizar as experiências do sujeito que promovem aí uma radicalidade, uma reviravolta, inclusive no que impacta a escuta do analista, mais especialmente daquele analista que se dedica à escuta de crianças. Então não se trata, portanto, de individualizar, mas de tomar, de modo contundente, as referências que promovem a singularidade do sujeito. Quer dizer, importa não apenas contar um a um, em sua dimensão una, individual, mas também pensar na particular condição de sujeito dividido, para considerar, sobretudo, qual foi a referência encontrada para ler sobre esse sujeito, qual a lente usada para fazer caber o sujeito e os efeitos do contexto.
A tradição médica na defesa da clínica como um método universal, reduzida ao estudo de caso desde seus primórdios até nossos dias como “um puro e simples exame do indivíduo” (Foucault, 1977, p. 60), tem se tornado “um campo nosológico inteiramente estruturado” (idem, p. 65). Leia-se aí: padronizado, abandonando, em seus princípios, a ideia do encontro do doente com seu médico em busca de uma “verdade a decifrar a partir de uma ignorância”. A iniciativa em diferenciar a clínica do indivíduo e a clínica do sujeito é uma das possibilidades de enfrentamento para acedermos a alguma dimensão do nosso tempo na clínica propriamente dita. É preciso provocar leituras que possibilitem reler a noção de clínica, tendo como objeto de referência o sujeito dividido, fragmentado, constituído em complexidades e ambivalências nas suas relações com o Outro. Diferenciar uma clínica do indivíduo, do uno, subordinada ao modelo neoliberal de eficiência e eficácia, e uma clínica contextualizada, do sujeito, que comporta a complexidade e a incompletude, parece-me uma tarefa incontornável para estarmos como psicanalistas em nosso tempo. Mas, para tal empreitada, é forçoso considerar alguns deslizamentos epistemológicos.
A invisibilidade do lugar do sofrimento, promovida pela desubjetivação nas significações dadas às manifestações das crianças e pela sua exclusão nos dispositivos clínicos de cuidados, tem promovido uma espécie de “desreconhecimento” do próprio sujeito. Ora, em que pese todo reconhecimento ao projeto liberal, ainda é preciso avançar muito para estarmos precavidos sobre os seus efeitos na clínica psicanalítica com a criança, sobre tais efeitos no trabalho analítico com a criança. A compreensão da complexidade sobre o aumento desenfreado de diagnósticos biomédicos na infância não cabe num olhar restrito a um diálogo íntimo entre a criança e quem dela cuida, tampouco se resume na justificativa de pouca capacitação dos profissionais, mas no adensamento da ampliação do olhar sobre um contexto em que o sofrimento invisibilizado, excluído ou mesmo negativizado, relativo ao campo social, não encontra também aí seu reconhecimento. É preciso entender, de uma vez por todas, que o fato de que o relato de um paciente ser mediado por uma linguagem, a qual, por sua vez, não é exclusivamente propriedade privada (Campello, 2022), permite que entendamos quanto o sofrimento dito individual carrega-se de sofrimentos sociais não reconhecidos. É exatamente nesse sentido que a psicanálise pode fazer falar outras histórias.
Há três deslizamentos epistemológicos, na esteira do projeto liberal, que podem, se lidos, ajudar o analista que atende crianças a se interrogar sobre os seus efeitos na clínica e sobre o modo de fazê-lo. Correspondem ao atual inchaço classificatório e patologizante ligado à mercantilização da saúde/doença nas diversas infâncias:
Pode-se simplificar a ideia da criança que está dentro do raio de leitura do “normal” e tipificar a criança que fica excluída desse diâmetro, no âmbito do “anormal”. Algo muito fundamental ocorre nesse mecanismo: não apenas então exclui as que fogem do parâmetro global, mas empobrece as que cumprem com os parâmetros universalizantes. Quando os eixos de desenvolvimento passam a migrar também para a avaliação de comportamentos, num controle normativo mais rigoroso quanto a condutas dos “iguais”, provoca-se dois efeitos: a naturalização da patologização nas infâncias no sentido mais explícito e a desabilitação das crianças no sentido implícito. No primeiro caso, mais crianças cooptadas numa patologização da vida cotidiana pela amplitude, por exemplo, dos classificáveis espectros (relativo ao desenvolvimento). No segundo caso, mais crianças inábeis em suas competências pela idealização das performances e eficácias cotidianas (relativo aos comportamentos) (Mascarenhas & Trad, 2024).
No mesmo sentido e direção, assistimos, de modo ainda mais atual, à ampliação e ao deslocamento da noção de desenvolvimento para a ideia de comportamento, ampliando a normativa hierárquica patologizante. Não se trata apenas de detectar, dentro de uma certa faixa da curva do desenvolvimento, a margem dos “atrasados” ou “anormais”, mas sim de tipificar comportamentos considerados mais adequados ao ambiente e de radicalizar a régua divisória entre normal e patológico. Essa tipificação do comportamento, que convoca modelos universalizantes, afunila os índices das significações de modo doloroso para as crianças. O propósito aqui não é o de citar os índices comportamentais, que, para além da sintomatologia descrita pelos manuais psiquiátricos, têm definidos os TDAHs, os TEAs e os TODs, porém tem-se assistido a comportamentos como: “usa menos a mão direita”, “não suporta água cair no rosto”, “não consegue ficar quieto sentado”, “fica na biblioteca na hora do intervalo”, “responde de modo inadequado” ou, mais modernamente, “disfuncional”.
É preciso transcrever o que atualmente vivencio na clínica psicanalítica com a criança, de modo deveras contundente, para que possa transmitir o que denominei de “uma necessidade”. O retorno à noção de sofrimento como referência tanto às condições de analisibilidade quanto à direção do trabalho, implicando, de uma vez por todas, não apenas o lugar do analista e sua escuta, mas a “despsicologização e desneuropsiquiatrização” do olhar, pode complexificar o que atualmente tem sido banalizado: chuvas de diagnósticos que incidem na vida cotidiana das crianças. Há corpos inquietos, corpos que dão as costas, corpos que gritam nos espaços públicos. Há também os que precisam se opor, os que se jogam aos perigos, e ainda aqueles que não conseguem se apressar e os que retardam, os que não comem ou dormem muito, os que desistem. Há corpos que são abusados. A quantidade de expressões silenciadas pela pobreza de dois ou três diagnósticos para a infância tem sido uma verdadeira agonia na vida das crianças em suas diversas infâncias.
Se aos psicanalistas que atendem crianças lhes foi exigido, durante décadas, “explicitar suas razões” para dar provas de pertencimento do atendimento à criança ao campo da psicanálise (Porge, 1998), atualmente não se trata mais de justificar os motivos para tal pertencimento, mas hoje é uma condição para essa clínica não recuar ante os efeitos de transmissão do contexto socialmente marcado, ou melhor, do que se invisibiliza e se exclui desse contexto. Para tal leitura, é preciso discernir quais as referências que poderão produzir enfrentamentos. As noções de desenvolvimento, tributárias de uma psicologia colonializada, assim como os diagnósticos sustentados a partir de um conjunto de índices comportamentais, definidos pela neuropsiquiatria, têm contribuído para a invisibilização e a exclusão do próprio sofrimento da criança. Trata-se de encontrar o fio condutor do que se impõe como uma realidade: o tema da “clínica socialmente contextualizada”, que se trata, para mim, de interrogar, não sem incômodos, quais são as lentes de leitura para o analista localizar o seu tempo em sua prática.
São décadas reiterando a afirmação de uma hegemonia geopolítica e cultural sobre como se desenvolvem as crianças (universalismo) e o modo de ser da infância (essencialismo). Se há uma condição imprescindível para que se alcance o cuidado integral às diversas infâncias, é o trabalho de tomada de consciência entre os profissionais sobre o fio rouge que liga a colonialidade e a patologização e, mais ainda, sobre o modo como esse fio promove invisibilidades e exclusões em nossas práticas com as diversas infâncias (Mascarenhas & Trad, 2024). É preciso realizar a crítica de que apenas uma “determinada epistemologia” venha a ser creditada como ciência moderna e venha a suplantar todas as outras referências (Castro, 2021).
Se há sofrimento na exclusão e na invisibilização, há injustiça na universalidade e na hierarquização das narrativas sobre esses sofrimentos, pois quem decide os que ficam fora da universalidade? Trata-se de uma injustiça? Em que medida nos implicamos com o aumento implacável de diagnósticos de patologias na infância, já que “não poder compartilhar ideias de injustiça ou se calar diante da injustiça revela-se uma forma de responsabilização moral” (Campello, 2022, p. 115)?
Conceber a ideia de que a exclusão, a invisibilidade e, até mesmo, uma negatividade de valores precisam ser escutadas como sofrimento provoca um campo de reflexões necessárias acerca de como a psicanálise pode, efetivamente, desvelar sua implicação na desconstrução dos efeitos da colonialidade em uma de suas faces mais bem-sucedidas: a leitura da culpabilização do indivíduo no campo social, corroborado pela equivocada ideia de responsabilidade do sujeito do inconsciente como matriz constitutiva da subjetividade.
A clínica contextualizada, portanto, é aquela que não deixa de fora as possibilidades de inserções do que se transmite nos fenômenos que nos fazem calar (incluindo os analistas), ou seja, que provocam exclusão, invisibilidade e negatividade. Cabe ao analista, desde sempre, ao escutar a criança, fazer falar o sofrimento que não tem nome, porque é preciso nomear. Decididamente, o olhar sobre a noção de sofrimento não se restringe a uma condição unicamente definida por um sintoma ou, mesmo, pelo conjunto deles. Os fenômenos estruturais de capacitismo e racismo precisam ser lidos como sofrimentos não reconhecidos, sem palavras, os quais, de modo geral, são minimizados na clínica com a criança.
Se a palavra déficit, por exemplo, era muito comum nos relatos clínicos sobre a criança até muito pouco tempo atrás, hoje, no nosso cotidiano do trabalho com a criança, deparo-me com a tentativa naturalizada de recolocá-la em sua plena hegemonia nas avalições biomédicas, modernizando as noções de deterioração ou incapacidade de função neurológica, traduzida por perdas de eficácias e funções (ou faculdades) específicas. A atual epidemia de diagnósticos não pode ser lida de modo separado da concomitante epidemia de avaliações, mais modernamente chamadas de avaliações neuropsicológicas, que, além de pesquisar sobre o diagnóstico, têm como função indicar tratamentos[4]. Se acompanharmos a migração dos índices de normalidades para o campo do comportamento, uma criança poderá precisar de tratamento por não corresponder aos ideais comportamentais da funcionalidade e da eficacidade do ambiente, o que pode pactuar com valores capacitistas.
O capacitismo é um neologismo que, associado à produção da capacidade, nomeia a idealização do corpo perfectível e padrão e, nesse sentido, a deficiência do que disso se afasta. Segundo Campbell (2009), o ponto de vista capacista é a crença de que deficiência é inerentemente negativa e deve ser melhorada, curada ou mesmo eliminada. O que já foi acima problematizado sobre os parâmetros da colonialidade no campo do desenvolvimento e, mais recentemente, nas experiências do comportamento da criança tem direta relação com a possibilidade da ampliação da escuta sobre o sofrimento relacionado ao capacitismo invisibilizado e promotor de vivências de exclusão. Esse sofrimento estruturalmente vivenciado pode ser intenso e, ao mesmo tempo, nunca ser reconhecido como sofrimento.
O racismo, que perpassa um processo de modo diferente e de extrema contundência, é vivenciado diuturnamente por crianças que têm seu sofrimento invisibilizado ou patologizado, mesmo que denúncias históricas tenham sido feitas nesse sentido:
a escassez de publicações sobre este tema pode se relacionar, em parte, com o fato de que a Psiquiatria e Psicologia contribuíram até um certo momento com teorias e práticas para justificar e perpetuar a discriminação racial ao defender e “demonstrar” a suposta inferioridade psíquica, moral e social dos não brancos (Tavares & Trad, 2021, p. 169).
No caso da clínica com crianças, as especificidades do que fora anteriormente descrito como os três deslizamentos epistemológicos que favorecem o pensamento liberal tendem a impactar a escuta do analista não advertido sobre o sofrimento da criança ante esses dois fenômenos estruturais. Cabem as perguntas: como uma criança vive e elabora as narrativas sociais que não encontram possibilidades representacionais? De que modo escuto isso?
É preciso fazer falar o Outro no sujeito. Fazer falar o racismo transmitido pelos pactos sociais de silêncio, produtores de exclusão e de invisibilidade. Esse silêncio da fala do Outro no sujeito é revelador do sofrimento do que se sabe sem saber. O que pode uma criança saber no que sua condição (seja de cor, seja de deficiência, seja de precariedade) a priori afasta os outros dela sem que ela tenha reconhecimento dos adultos sobre sua percepção, sua dor?
Aos quatro anos, essa criança traz seu dizer: “eles não me dão a mão na hora de fazer a roda”.
Ler letra a letra a fala da criança é se perguntar: o que ela diz quando isso fala nela sem que o saiba?
Um ponto de suspensão há nessa frase: a hora de fazer a roda é a hora justamente de dar as mãos. Essa criança fala do que sabe sem saber, de seu enigma: ela não se refere ao fato de colegas não brincarem com ela, não se refere também que não venham escolhê-la na hora livre das brincadeiras, mas sua atenção está de olho no fato de esses colegas não lhe darem a mão na hora da roda. Como pode esse acontecimento ter sido lido pelos adultos do seu entorno como dificuldade em interagir? Uma dupla invisibilidade violenta o reconhecimento da percepção da criança: há uma estranheza nessa recusa em dar as mãos quando a professora pede para que se deem as mãos, há algo que dói e há também uma percepção sem o assentimento do Outro (Fernandes, 2011).
O que aconteceu? Nada havia acontecido e tudo tinha acontecido. Havia um sofrimento que era tudo, mas ao mesmo tempo não era nada. Ele não poderia ver o que se apresentava como inacreditável, pois era também inaudível aos adultos da escola. Se a psicanálise não trata sobre identidade por nunca ter considerado o sujeito como unificado ou uno, por outro lado, há a necessidade de a psicanálise considerar, na sua escuta, não necessariamente uma identidade social, mas o sofrimento advindo de seu não reconhecimento no campo social.
Se a elaboração de uma vivência envolta de afeto (angústia, sintoma, turbação, inibição, emoção, conforme Lacan, 1962/2005) está diretamente ligada à possibilidade de representá-la, de falar sobre ela ou de mostrá-la, como no caso das vivências da criança (Fernandes, 2011), trata-se da capacidade de atravessar a intensidade afetiva[5], de modo que essa representação se ligue a outras, e mais outras, e mais outras. Trata-se de um real que perpassa gerações dos que experimentam esse impossível na pele da alma: são muitos os episódios, durante uma vida, em que o sujeito é convocado a responder a partir desse lugar onde não há palavras e que, portanto, o tiram de seu lugar.
É por uma afirmação subjetiva – que antecipa o risco de não reconhecimento por parte do outro – que o sujeito aí se faz incluir, em uma busca por aproximação ao humanamente reconhecido ou instituído por essa asserção. O humano, sem características que o definam precisamente e de uma vez por todas, é, por excelência, campo político de invenção: inventam-se a coletividade, a comunidade, mas também se inventa a exclusão. É necessário, seguindo a lógica lacaniana, que haja reconhecimento e reciprocidade nessa relação. Mas e se não houver reconhecimento? (Aires, 2021). “Não conseguindo se ver incluído, o negro termina por se excluir como única alternativa de eliminar aquilo que é impossível de ser eliminado” (Nogueira, 2021, p. 131); além disso, ao ser convocado a responder de um lugar em que não há palavras, o sujeito se objetiviza e cai desse lugar do qual foi convocado a responder.
Imaginemos que, se o atendimento à criança sempre considerou a história de vida, o discurso parental, os personagens do entorno da criança que fazem cargo de funções constitutivas ou, mesmo, o discurso do Outro, a função especular constitutiva do imaginário, a rede significante que precede o sujeito, do que se trata quando aparece, atualmente, a necessidade de um empurrão que promove a noção do “socialmente contextualizado”, tão cara ao nosso tempo? Como escutar e localizar as sobreposições de contextos invisibilizados na clínica?
Voltemos ao estatuto do histórico em psicanálise. Este recusa a ideia de que o sentido da análise seja a construção de uma história no seu relato em si, mas, ao contrário, precisa se dedicar a uma desconstrução do fixado na história do sujeito, afastando-se do ímpeto de oferecer totalidades que se representariam num todo, quando esses processos históricos são sempre parciais. O traumático não é o vivido, mas o que não pode encontrar, no momento de sua inscrição e fixação, de sua caída no aparelho psíquico, as possibilidades metabólicas para uma simbolização produtiva. Não se trata apenas de analisar o acontecimento do mesmo modo que se analisa a estrutura, mas sim de haver um lugar para a ideia de “acontecimento”. O acontecimento trata da fala da vivência que suscita os afetos penosos de horror, de angústia, de vergonha, de dor psíquica e da sensibilidade da pessoa afetada; portanto, importa não qualquer acontecimento, mas aqueles que têm a capacidade de produzir certos afetos. Desse modo, não se trata do relato da história, mas de suas fraturas, não no sentido da amnésia clássica, histeria da época de Freud, mas fraturas do que ficará sem ligação, como um “sem palavras”. Trata-se de localizar as circunstâncias, o contexto ou o i-mundo, na relação sujeito/objeto.
No quadro das meninas, de Velásquez, “olhando a história de sua janela, o homem é ao mesmo tempo olhar e ator da cena do mundo onde teve lugar sua história, que é, no entanto, sua história” (Porge, 2008, p. 128, tradução minha). Abrir uma janela é traçar um quadro, que é o primeiro gesto para olhar. O quadro vem primeiro. E se o analista é aquele que abre uma janela, quer dizer, faz o quadro e dele participa desde sempre na história do sujeito, pergunto que responsabilidade tem o analista sobre o quadro que o sujeito traça?
Essa criança que toma a palavra e fala, observadora e perspicaz, empenhada em fazer psicanálise, chegou com o diagnóstico de autismo: segundo os profissionais que a avaliaram, havia índices comportamentais que o indicavam. Não interagia com os colegas, não tinha iniciativas para se relacionar, enfileirava mochilas e sapatos, limpava a mesa da sua sala. Só tinha dois amigos na escola: o porteiro e a moça que limpava sua sala de aula.
No meu trabalho com a criança, considero que um escrito se escreve sob vários ângulos, vários lugares de fala, entre enunciados e enunciações de todos que participam da estrutura, incluindo o analista (Fernandes, 2011), e é por aí que levo às últimas consequências a ideia de que o analista está no quadro. Há um texto sendo escrito e o analista participa disso pagando os preços: de sua pessoa, de seu ser, de sua palavra e, no caso da criança, também da materialidade do confronto de corpos ali na sessão. Essa palavra “racismo”, que não é da pessoa do analista, é da estrutura da linguagem (Campello, 2022) e, por estar na cultura, pode retornar pela boca do analista para fazer falar as invisibilidades do Outro no sujeito, tornando-se advertida se a escuta da criança puder levantar uma suspeita determinante de que, para a criança, naquele instante, naquele preciso instante, nesse ponto de um pedido de assentimento ao Outro sobre o momento em que lhe fora recusado dar as mãos na roda, emergiu o momento em que “a grande História entrou, insidiosamente, na pequena história” (Sous, 2017, p. 8, tradução minha), e isso um analista precisa escutar.
[1] Claudia Mascarenhas é Psicanalista e escritora, pós-doutoranda em Saúde Coletiva (UFBA-ISC-FASA), doutora em Psicologia Clínica (USP-SP), mestre em Filosofia da Ciência (UNICAMP), diretora clínica do Instituto Viva Infância (BA). Escreve também livros infantis: O menino polvo (Zagodoni, 2021), Caroço de caminhão (Editacuja, 2023).
[2] “Deve renunciar à prática da psicanálise todo analista que não conseguir alcançar em seu horizonte a subjetividade de sua época” (Lacan, 1953/1998, p. 322).
[3] Axel Honneth, em Luta por reconhecimento, a gramática moral dos conflitos sociais, descreve os diversos modos de reconhecimento na estrutura das relações sociais. Ao se referir à concepção da relação amorosa como uma forma ideal de simbiose quebrada pelo reconhecimento, ele acrescenta que “essa relação de reconhecimento prepara o caminho para uma espécie de auto-relação em que sujeitos alcançam mutuamente uma confiança elementar em si mesmos, ela precede, tanto lógica como geneticamente, toda forma de reconhecimento recíproco: aquela camada fundamental de segurança emotiva não apenas na experiência, mas também na manifestação das próprias carências e sentimentos, propiciada pela experiência intersubjetiva do amor, constitui o pressuposto psíquico do desenvolvimento de todas as outras atitudes de autorrespeito” (Honneth, 1992/2003, p. 177). O nexo existente entre a experiência de reconhecimento e a relação consigo próprio resulta da estrutura intersubjetiva da identidade pessoal: os indivíduos se constituem como pessoas unicamente porque, da perspectiva dos outros que assentem ou encorajam, aprendem a se referir a si mesmos como seres a que cabem determinadas propriedades e capacidades.
[4] Não é incomum recebermos laudos e avaliações recomendando entre 44 e 47 horas de tratamentos clínicos semanais para crianças entre dois a seis anos, uma semana de trabalho que ultrapassa nossa lei trabalhista de 44 horas semanais para adultos.
[5] Valho-me da comunicação interna, ocorrida durante o ano de 2023, no Instituto Viva Infância, Ambulatório do Bebê, de Silvia Bleichmar, que cita a obra de Battikha.
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Psicanalista e Escritora. Fundadora e atual diretora clínica do Instituto Viva Infância, mestre em filosofia da ciência (Unicamp), Doutora em Psicologia Clínica (USP SP), pós-doutoranda em saude coletiva UFBA/ISC/FASA. Atualmente é presidente do dep de saúde mental da sociedade baiana de Pediatria, membro da CIPPA, representante na RNPI. Escreveu os livros: a Infância em cena: o infantil e a perversão (casa do psicólogo), Psicanálise para aqueles que não falam? A imagem e a letra na clínica com o bebê (Instituto Viva Infância), o bebê não vive numa bolha, clínica e contexto (contracorrente). Além dos livros infantis: O Menino polvo (Zagodoni), Caroço de Caminhão (Editacuja), o último de poema: As cores não mentem numa praia (Editacuja).