Obra resenhada: Misoginia e Psicanálise. São Paulo: Larvatus Prodeo, 2022
Sob a ansiedade das eleições que se aproximam, eu me debruço na leitura de Misoginia e Psicanálise, livro recém-publicado pela editora Larvatus Prodeo. O livro é efeito dos encontros – ainda presenciais, semanais, nos idos de 2015 a 2020 –, entre sete pesquisadoras. Elas se reuniram para pensar a feminilidade e os feminismos, tanto na teoria, como na clínica. Logo na introdução, as organizadoras[1] afirmam que foi, precisamente, a partir do 8 de março de 2017 que se realizou a roda de conversa intitulada “Psicanalistas Fazem Greve?”. Dali surgiu a proposta – feita pela diretora do Instituto Gerar, Vera Iaconelli – ao ciclo de debates sobre a misoginia na psicanálise, que fornecem o título da obra. As organizadoras bem nos lembram que, naquele momento, a manifestação das mulheres ganhava uma proporção maior – no mundo e no país. Em setembro de 2018, o movimento do “EleNão” levaria às ruas brasileiras o maior número de mulheres antes visto. Mas não só mulheres: ali estavam todas as pessoas que percebiam e que reconheciam o crescente índice de ódio, direcionado, sobretudo às mulheres em si. Foi uma multidão, que reuniu vários tipos de bandeiras.
Apesar de tantos protestos legítimos e veementes, as autoras de Misoginia e Psicanálise nos trazem a má notícia: há misoginia entre nós. “Mulheres desmancha-prazeres!”. É assim que a pesquisadora independente e ativista Sara Ahmed (2022) denomina as feministas: são aquelas que sempre trazem a má notícia, nas salas de aulas, nos debates, à mesa de jantar e nos textos. Com a conclusão do ciclo de debates, as pesquisadoras convidaram as debatedoras para enviarem seus “sextos”[2].
Bem, posso dizer que estive bem acompanhada com a leitura de Misoginia e Psicanálise. Isso porque encontrei, na leitura, um questionamento que venho fazendo há anos: a incidência da realidade social no trabalho analítico. Nesse sentido, pude observar que não existiu, em minha formação (e já desde a graduação), nem leituras, e tampouco referências, de psicanalistas negras. De fato, Fabiana Villas Boas, do coletivo Roda Terapêutica das Pretas, demonstra a existência do racismo científico que “se constituiu como uma pseudociência cujo objetivo era provar a superioridade branca e justificar a dominação europeia sobre outros povos” (p. 159). Mais adiante, ainda, afirma: “Na graduação de Psicologia ou nas formações em Psicanálise, lemos Lacan e Winnicott, mas não Frantz Fanon.” (p. 161). O que é igualmente importante, no texto de Villas Boas, é a relação do reconhecimento do sofrimento – pois, caso não se reconheça o racismo, tampouco será reconhecimento o sofrimento causado pelo próprio racismo. “Se um sofrimento não existe, não precisamos cuidar dele. Desta forma, o sofrimento gerado pelo racismo continua sem espaço na maioria dos divãs, tal como no século XIX.” (p. 163).
“A incidência da realidade social no trabalho analítico” é um dos subtítulos do texto de Ana Paula Mussatti Braga. O escrito ainda traz o importante trabalho de Virgínia Bicudo, a primeira mulher que fez análise na América Latina e que – sobretudo, por ser negra e mulher e por escrever sobre as relações raciais no Brasil – acabou por ficar, invisibilizada, à margem da história da psicanálise. Braga traz a própria voz de Virgínia:
(…) eu me interessei muito cedo por esse lado social. Não foi por acaso que procurei psicanálise e sociologia. Veja bem o que fiz: eu fui buscar defesas científicas para o íntimo, o psíquico, para conciliar a pessoa de dentro para fora. Fui procurar na sociologia a explicação para questões de status social. E na psicanálise, proteção para a expectativa de rejeição. Essa é a história. (p. 47)
Braga, ao pesquisar sobre as relações entre negritude e branquitude, quase diz nos meus ouvidos: “só agora?”. E afirma: “Este fato [de a psicanálise se fazer daltônica nas pesquisas] faz com que perguntemos como esse esquecimento ou essa invisibilização também nos concerne…estamos na cena de alguma forma”. (p. 45) Estamos, e como me disse uma amiga recentemente: “foi porque as mulheres brancas não leram as negras que chegamos ao ponto que chegamos”. O texto de Braga apresenta o percurso de Virginia Bicudo, incluindo seus anos de formação e demonstrando o quanto ela fora alvo de atitudes extremamente violentas. Vale, ainda no texto de Braga, citar o “lapso editorial”, assim chamado por Florestan Fernandes, em comentário à segunda edição de um livro que organizou e do qual foi excluída a presença de Virgínia Bicudo.
Na mesma toada de responsabilização, do compromisso clínico e político, sigo adiante na leitura do livro. Se fomos resistentes em enxergar a cor, também fomos resistentes em enxergar a misoginia. Se trouxeram a má notícia, podemos pensar que Misoginia e Psicanálise pode ser lido como um livro-manifesto, um libelo. Uma denúncia. É bem o caráter de manifesto que pode ser lido no texto de Ana Laura Prates, que afirma categoricamente: “Nós psicanalistas precisamos parar de falar mal do discurso de denúncia”. (p. 137). Assim, a autora parece dizer que não há problemas quando, às vezes, um conjunto se forma em uma manifestação – e que, assim, ser histérica não é xingamento. Isso porque, se a histérica é aquela que aponta o furo do outro, precisamos reconhecer a importância do trabalho histérico, do discurso que revela. Nas palavras da autora: “Se os movimentos feministas ou os movimentos LGBTQIA+ tivessem esperado os psicanalistas para promover os avanços que se produziram em termos legais no último século, certamente teríamos avançado muito pouco”. (p. 137). Prates ainda afirma que, nos últimos tempos, reviu e que tem questionado muitas coisas. E, nessa potência de se posicionar em primeira pessoa, “mais além desse fechamento do todo” (p. 138), a autora nos traz a “heteridade”, a importância da diferença e do diferente, bem como dos discursos. Para Prates, afinal, para além do lugar específico de analistas, “estamos na cidade dos discursos e podemos ser intérpretes do laço social e interlocutores dos demais discursos” (p. 137).
Sobre essa fronteira entre, de um lado, o lugar específico de escuta nos consultórios e, de outro, a realidade mundana, o texto de Sandra Berta nos brinda com a seguinte questão:
(…) uma advertência sobre como ouvimos, e sei que isto é controverso. A mulher que fica no maltrato… essa mulher quando tem a chance de falar, temos que saber ouvi-la, se queremos contribuir com alguma coisa. Se tivermos alguma chance que ela se ouça dizer. Não as demandas, os reclamos, os detalhes do maltrato, mas que se ouça dizer o inaudível da sua posição face ao Outro. Que se ouça dizer que ela está aprisionada em algum lugar do sacrifício do Outro. (p. 116)
De fato, nossa formação como analistas nos coloca numa posição, portanto, de escutar as fantasias, de insistirmos na gramática dos fantasmas, dos enunciados do discurso inconsciente – e não é porque uma psicanalista se declara feminista que ela perde a escuta da fantasia. Dizer isso a uma analista pode significar inclusive, misoginia. Daí vem o questionamento: por que, nas dificuldades da escuta do outro, no ponto cego da escuta, que nos faz nos supervisionar, seria o feminismo aquele que serviria como tampão?
É precisamente no texto de Berta que surge o “nem-uma a menos”, “niunamenos”. É o grito da manifestação das mulheres. O texto de Berta é também importante, porque a autora não se furta de dizer que as mulheres, a despeito da anatomia, sofrem da violência cotidiana e que, portanto, são casos frequentes da nossa clínica. Nossa escuta parece já estar advertida de que a vida não é mais o objetivo da política. Os psicanalistas têm o que dizer sobre esse ódio dirigido à mulher. “Matáveis: Amáveis” (Magalhães, 2021), como nomeou a poeta e pesquisadora carioca Danielle Magalhães, pois a alteridade se encarna no precário.
A alteridade, na teoria lacaniana, diz respeito à mulher não-toda – e, embora essa nomeação surja em tantos e vários escritos, é no texto de Léa Silveira que recebe uma precisa formulação crítica: “a mulher é não-toda porque aquilo que é não-todo é o que chamamos de mulher”. (p. 151). Recomendo a leitura do texto de Silveira, pela riqueza e pela seriedade na pesquisa empreendida pela autora, que pergunta: “Qual é o preço que de fato pagamos especialmente nós, mulheres, por aceitar isso como regra do jogo?” (p. 151). É muito importante que seja Silveira a fazer essa pergunta, como pesquisadora e como mulher, e que essa pergunta não caia na boca de quem a faria para nos atacar, levianamente, sem pesquisar, recaindo novamente numa postura misógina, conforme a conveniência.
A pesquisa de Silveira apresenta o livro de Juliet Mitchell, Feminismo e Psicanálise, de 1974, a fim de trazer o argumento contundente:
Mitchell acaba escondendo a fragilidade da tese freudiana sobre a inferioridade da mulher por detrás de afirmações trivialmente corretas a respeito da psicanálise como a afirmação de que a realidade psíquica não corresponde à realidade material ou que o inconsciente possui uma lógica própria, distinta não apenas da lógica consciente, mas em alguma medida, da lógica dos fenômenos sociais. (p. 153)
Em diálogo com Silveira, Mara Caffé chama de “cestas normalizadoras da psicanálise” as formas convenientes de convocar o falo. O texto discute as complicações advindas de quando os estudos de gênero são aplicados diretamente ao nosso campo e de quando os estudos da psicanálise são aplicados aos de gênero. Retoma-se, assim, o paradoxo do que é dito sobre a mulher a partir do referente fálico, que recai novamente na “cesta normalizadora”: “podemos voltar a Butler e reconhecer alguma verdade em sua hipótese de que as teorias psicanalíticas ocultam e naturalizam preceitos normalizadores, como, por exemplo, a supremacia do masculino” (p. 127). Assim, as feministas acentuam o caráter misógino do conceito do falo. Para o tratamento desse paradoxo na teoria feminista, a autora sugere tomar os conceitos como realidades vivas, fazendo-os trabalhar a partir dos desafios da clínica.
Renata Rampim Silveira traz a histeria e sua potência discursiva como denúncia; ou seja, retoma as histéricas de Freud, para pensar tanto a clínica contemporânea, como a associação entre histeria e feminilidade. É muito importante o texto de Rampim, porque, para além das grandes referências da psicanálise em relação ao desejo a partir da histeria, traz ao debate uma poeta latino-americana – Gloria Anzaldúa, que rompe com aquilo que deveria ser o seu destino. Além disso, a riqueza do texto de Rampim está na precisão clínica, quando traz a escuta: “um sujeito disse: ‘Me fundo inteiramente a partir do que quer o meu marido, preciso me desligar de alguma forma para não me afundar’”. (p. 75, grifos originais). É um texto que nos faz retomar a pergunta: “o que quer uma mulher?”. Trata-se de pergunta da mulher[3], à qual a mulher é quem deve responder, ainda que tenha sido formulada por Freud.
Quanto à resposta do desejo no encontro com o outro, Tatiana Assadi empreende um percurso sobre o amor na teoria psicanalítica, nos textos de Freud e nos seminários de Lacan, trazendo a importância da poesia. A meu ver, o ponto alto do texto é este: quando traz o poema, a fim de mostrar o funcionamento da linguagem e como a lógica não toda está presente na poesia. Isso é muito importante, trazer a marca da escrita e do funcionamento da linguagem, na esfera do amor e do não todo. Assadi retoma as fórmulas da sexuação e afirma: “fica notório que não há proporção entre o lado homem e o lado mulher. Mas como cada um responde a esse não há relação sexual? Mais uma vez, sopro aos ouvidos: pelo amor.” (p. 89). A autora retoma o seminário 24 de Lacan, afirmar sobre o recorte escolhido: “denunciar como o amor responde à não- relação- sexual em um dos seus nomes, o da alteridade feminina” (p. 91).
Nos enganos do amor ou do desejo, situo o texto de Renata Cromberg. A pesquisadora fez o mestrado sobre Sabina Spielrein, inventora do conceito de “pulsão de morte”. Cromberg apresenta os anos de formação de Spielrein, desde sua formatura em 1910 em psiquiatria, com a primeira tese de psicanálise escrita por uma mulher. Assim como Virginia Bicudo no Brasil, Spielrein foi invisibilizada e esquecida, assim, aliás, como toda a geração de mulheres psicanalistas da qual fazia parte. Mas foi principalmente como primeira paciente, e também como amante, de Jung que as coisas complicaram. Cromberg afirma que a primeira frase que lhe veio à cabeça, para o debate da misoginia na psicanálise, foi uma frase de Jung sobre Spielrein em relação a um texto importante escrito por ela mesma: “de forma que termine em horrível peixe o que em cima é uma formosa mulher”. (p. 40). No livro de Cromberg sobre a psicanalista, ela retoma o ensaio A Destruição Como Origem do Devir, lido por Jung, ressaltando como as mulheres psicanalistas eram apagadas naquele momento, pois “tinham liberdade sexual e pensavam essa liberdade pulsional e sexual, na qual o feminino se manifestava. Era insuportável pensar que uma mãe não era algo natural que era dado pela natureza…” (p. 41). No ensaio, Spielrein se diferencia tanto de Freud como de Jung, tanto que, segundo Cromberg: “ela [Spielrein] começa o texto perguntando por que nos angustiamos sobre a sexualidade. Todos, homens e mulheres.” (p. 40).
Finalizado o meu compartilhamento sobre os textos de Misoginia e Psicanálise, estou certa de que a analista-leitora que aqui escreve sobre a experiência de ter lido o livro não consegue abarcar a complexidade da obra em si. Contudo, acho – e espero – que o que trouxe aqui foi o suficiente para marcar a importância do livro, como o ato de publicação dos textos do debate proposto pelo Instituto Gerar, bem como a acolhida do tema pela editora Larvatus Prodeo.
Cabe, então, perguntar: seria a pergunta da misoginia, por excelência, uma pergunta dos feminismos, o que justificaria, por exemplo, a ausência da expressa palavra “feminismo(s)”, no título do livro? Por limitação própria, eu não saberia dizer quantas das autoras se dizem feministas. Afinal, em psicanálise, trabalhamos com a ética da desidentificação – no entanto, resta saber como, numa existência historicamente posicionada, lidaremos com este ponto de conflito. E pergunto: hoje, a conversa acerca do identitário é outra? Ou, ouvindo mulheres no consultório há anos, poderia-se dizer que nem todo feminismo é identitário? E o “nós”, então: o que fazemos com ele?
São Paulo, 30 de setembro de 2022, dois dias antes de irmos às urnas.
[1] Helena Canto Gusso, Julia Fatio Vasconcelos, Manuela Crissiuma, Mariana Angelini, Melina Cavalcante, Paula Rojas e Renata Conde.
[2] Neologismo criado por Hélène Cixous, a partir das palavras “texto” e “sexo” em O Riso da Medusa.
[3] Felman, S. (1993) What Does a Woman Want? Londres: The Johns Hopkins University Press Ltd, 1993.
Ahmed, S. (2016) Viver uma Vida Feminista. Trad: Jamille Pinheiro Dias, Sheyla Miranda, Mariana Ruggieri. São Paulo: Ubu Editora, 2022.
Cixous, H. (1975) O Riso da Medusa. Trad: Natália Guerellus, Raísa França Bastos. São Paulo: Bazar do Tempo, 2022.
Felman, S. (1993) What Does a Woman Want? Londres: The Johns Hopkins University Press Ltd, 1993.
Magalhães, D. (2021) “Matáveis: Amáveis”. In: Rodrigues, C. (Org.). Ir Ao Que Queima. Série Tempo do Agora. Rio de Janeiro: Ape’ku Editora e Produtora, 2021.
Gusso, H. C.; Vasconcelos, J. F.; Crissiuma, M.; Angelini, M.; Cavalcante, M.; Rojas, P.; Conde, R. (2022) Misoginia e Psicanálise. São Paulo: Larvatus Prodeo, 2022.
Psicóloga, psicanalista, mestre e doutora em psicologia pela USP e especialista em gestão em saúde pública pela UNICAMP. Pós-doutoranda no Instituto de Psicologia da USP e professora e supervisora da residência em rede da prefeitura de São Paulo, membro do Latesfip-Cerrado (UnB) e co-coordenadora do projeto sobre Sofrimento Universitário do Grupo de Investigação Territórios e Subjetividades (GITS-USP). Membro da Tamuya, Escola de formação popular.