Minha mãe querendo um filho memorando
Se a vossa tarefa de história não estiver decorada
não ireis à missa
no domingo
com vossos trajes domingueiros
Esse menino será a vergonha do nosso nome
esse menino será nosso Deus nos acuda
Calai a boca
Já não vos disse que deveis falar francês
o francês da França
o francês do francês
o francês francês
Léon-Gontran Damas citado por Frantz Fanon
1. OBJETIVO. Considerando o campo da transmissão, da psicanálise e do pensamento crítico como ocupação, estivemos as autoras desejosas de compartilhar um dos anteparos da Rede para Escutas Marginais, a REM[1], como representação de um “cronograma para a liberdade”, para falar como Kwame Ture e Charles V. Hamilton (2021, p. 17). De tudo dito, escolhemos, antes, repetir Ture e Hamilton no seguinte:
“Não apresentamos neste livro fórmulas prontas para acabar com o racismo. Não oferecemos um modelo; não podemos estabelecer nenhum cronograma para a liberdade. […] As comunidades negras estão usando diferentes meios, inclusive a rebelião armada, para alcançar seus fins. A partir dessas várias experiências surgem os programas. Esta é a nossa experiência: os programas não saem da mente de uma ou duas pessoas como nós, mas do trabalho cotidiano, da interação entre os militantes e as comunidades nas quais trabalham” (Ture; Hamilton, 2021, p. 17, grifos nossos).
Dizemos que aqui parece haver declarações que precisam ser escutadas e eis a razão pela qual foram deitadas em itálico. Não há um modelo que se possa replicar indistintamente porque as singularidades são também sócio-históricas, garantindo às experiências comunitárias arranjos imprevistos para circunstâncias de captura igualmente imprevistas ou cuja persistente e exitosa repetição se tornou já um hábito discursivo de tal monta que, por quaisquer razões cruciais, é difícil de ser ultrapassado. Repetir sistematicamente para reencenar acontecimentos históricos esquecidos[2] está entre as razões pelas quais é custoso assentar na memória coletiva as recordações de enfrentamento do nosso tempo. A REM, feito um recordatório de recursos críticos para o pensamento, está organizada ao redor de 12 (nove) núcleos temáticos desenhados para projetar análises possíveis de fenômenos multideterminados e cuja base teleológica é o sofrimento psíquico de toda a humanidade; de toda humanidade por força e interesse do cânone. Há um núcleo que é 1. Fundamentos da Psicanálise; há 2. Escuta, racionalidade diagnóstica, pesquisa decolonial e sofrimento psíquico; 3. Colonialidade, racismo e capitalismo; 4. Feminismos, gênero e clínica; 5. Subjetividades latino-americanas; 6. Saúde coletiva e luta de classes; 6. Políticas públicas e construção do comum; 7. Território e memória coletiva; 8. Metodologias clínicas comunitárias; 9. Clínica e corpo e 10. Sintoma Social[3] — todos os eixos, por sua vez, informam a atmosfera de um certo “tempo de ver” com vistas a um “tempo de compreender” e cuja emergência se dá no encontro entre as pessoas participantes e por meio dele. Arranjadas todas as pessoas como rede, escutamos as produções imaginárias que nos dão notícias da materialidade fática e, coletivamente, voltamos nossa atenção para as resistências, as transferências e os desejos. Então, isso é uma coisa. Não somos nós duas, compreende, nem você, pessoa leitora, mas um comum radical. Um comum radical como horizonte e um comum da diferença como práxis. O principal elemento de diferenciação entre um e outro é a narrativa da diferença ela mesma porque, tal como está posta, parece ainda num estado demasiado difuso de letramento que, sendo inédito para as pessoas nascidas a partir da década de 1980, são bem conhecidas pelas nossas pessoas genitoras nascidas na década de 1940, por exemplo. Também para dizer que a ideia de um “estado demasiado difuso de letramento” não está correspondida a certo raciocínio etapista de primeira e segunda coisa sucedâneas no tempo, quer dizer, não se trata de ANTES oferecer uma letra — que é um código e que participa de um sistema-mundo de informações e arranjos possíveis entre a teoria e a prática — para APENAS DEPOIS encorajar a revolução. Por ora, significa pensar que cadeia significante nos pode servir como anteparo discursivo para a ruína das estereotipias que nos são coladas ao rosto feito narizes postiços. Pensando com Edward Said, pela via do seu Orientalismo: o Oriente como invenção do Ocidente, pensamos que. Se todas as pessoas fomos forjadas pelo torno ocidental — e forjadas para performar a instituição-resto-civilizatório habilitada a dialogar com a instituição Capitalismo Neoliberal Racial Patriarcal de Inspiração Colonial —, haveremos de recontar nossa história comum desde histórias outras que não aquela que nos historiciza o planeta desde 1454 que é quando se imprime o primeiro livro em solo europeu e que se acha por aí como a Bíblia de Gutemberg. Isso é outra coisa. Se estamos institucionalizadas todas as pessoas cumpre, de saída, desembarcar da instituição, reescrevendo-lhe a gramática social que nos nomeia e nos põe para funcionar como adjetivos que são, nada mais e nada menos, que falsas estabilidades ontológicas. Aquela uma “mulher”, aquela uma “mulher trans”, aquele um “indígena”, aquele um “indígena trans”, aquela “família”, aquela “mãe”, aquela “mãe solo”, aquela “mãe solo usuária”, aquela “mãe solo negra e usuária” são denominações-carvão que alimentam a locomotiva pavimentadora de verdades sobre os sujeitos. Se não somos a raça ou o gênero torneado pelo Capitalismo Neoliberal Racial Patriarcal de Inspiração Colonial, deveremos agir a raça e o gênero que somos. Também quer se inscrever aqui a REM. E, para dar consequência ao objetivo do ensaio, queremos compartilhar a maneira como um certo subtexto crítico está articulado a certo contexto sócio-histórico a fim de fomentar a produção de um comum implicado na criação de modos de transmissão de conhecimentos e saberes diversos, de maneira a democratizar o acesso à informação para o território.
2. SUBTEXTO | PARA DENTRO. Na cidade de São Paulo — e já aqui um dado territorial e geopolítico importante que nos ensinamos a considerar quando das nossas análises. Na cidade de São Paulo, no ano de 2023, acontecerá a 35a. Bienal de São Paulo — coreografias do impossível e, há pouco, lemos seu texto curatorial que está escrito por duas negras mulheres[4], um negro homem e um branco homem. Vestidas de branco, Hélio Menezes, Grada Kilomba, Diane Lima e o branco Manuel Borja-Villel, deram ao texto o título que é mesmo a condição atmosférica da própria exposição. coreografias do impossível, repetimos. Antes do que estamos prestes a dizer, estava escrito assim, no tal texto curatorial. “E assim já começa o ensaio à coreografia”. Também aqui se vê amparada a escolha do “ensaio como tese”, para falar com Víctor Gabriel Rodríguez (2012) que, em obra homônima, anuncia o gênero como boa escolha para tratar de investigações desassossegadas e, completamos, desassossegadas porque instaladas no núcleo duro da contradição — se nos atravessa a existência a tríade colonialismo, racismo e capitalismo, quer dizer, enquanto debaixo da prerrogativa da tríade, haveremos de nos haver com os efeitos das reproduções sociais forjadas pela repetição ideológica. Considerando cada um dos nós convidados a integrar a REM, contamos com uma equipe executiva (I) — espécie de “ponto fixo” de escuta; as pessoas trabalhadoras do SUS e do SUAS (II) que também narram suas experiências cotidianas no interior das políticas públicas, garantindo materialidade ao trabalho; pessoas profissionais autônomas (III) que compartilham visadas “de fora”, contribuindo com perspectivas mais arejadas; as pessoas aprimorandas (IV), jovens do território que acessaram o conhecimento produzido pela universidade, os movimentos sociais, de cultura, de mobilização local e que, tantas vezes obrigados a vestir uma máscara branca porque deslocados de um lugar de legitimidade. Então, dizíamos, os nós metodologicamente arranjados em rede coreografam sentidos em estado ginástico e, necessariamente em estado ginástico, porque cientes estamos de que as estratégias de cooptação não cessam de atualizar sua agenda tática. Está aqui outra das razões pelas quais a escuta é fundamental porque é a escuta quem nos informa sobre o território e sobre as instituições nele operantes. Mas a coisa toda da Bienal é que, lá adiante, ainda no texto curatorial, escrevem as pessoas curadoras: “esta ideia de coreografia se baseia na natureza enigmática do fato artístico e, portanto, em tudo aquilo que não está esgotado, nem evidente. No que podemos nomear como segredo, mistério ou o próprio infinito” (BIENAL DE SÃO PAULO, 2022, grifos nossos). Aquilo que, em relação a todas as pessoas, é o “segredo, mistério ou próprio infinito” pode corresponder à traição das cadeias significantes que antecipam a chegada de pessoas não brancas — umas vezes trabalhadoras do SUS e do SUAS, outras vezes usuárias e tantas vezes ambas. O “feitiço remoto” (Fanon, 2020, p.37), forjado no interior do Laboratório do Capitalismo Neoliberal Racial Patriarcal de Inspiração Colonial (LCNRPIC), é o dentro de onde desembarcamos quando expulsas todas as pessoas do útero. Note-se não haver razão outra para que assim tenha sido e para que assim seja — o nascimento como alfândega civilizatória — senão a resolução de que o bem-viver de uma sociedade de classes depende de pessoas classificadas e dispostas em castas; a sociedade de classes é não só o estandarte político do LCNRPIC como seu ex-voto — aquela peça de cera ou de madeira e que representa uma parte do corpo ou um objeto, uma carta, uma fotografia, enfim, qualquer coisa que seja compreendida como agradecimento ou pagamento de promessa diante de graças recebidas. A sociedade de classes é o ex-voto do Laboratório do Capitalismo Neoliberal Racial Patriarcal de Inspiração Colonial. Diante disso, a REM propõe um conjunto de experiências atmosféricas — porque são protótipos de experiências inescapáveis sempre que nos invadem os buracos, todos os dias — orientadoras do ser-estar debaixo da abóbada brasileira, isso no século XXI que é quase século XVI ou século XVII e antes e imediatamente agora. E, ao produzir uma experiência atmosférica discursiva, haveremos de apresentar parte do funcionamento do torno ao qual estão submetidas as subjetividades nos períodos em que a coisa comum é fraturada que é o período vivido por nós nos dias de hoje — matam-se pessoas negras; matam-se araras-azuis e peixes-boi e onças-pintadas e lobos-guará e outros seres fantásticos; matam-se mulheres sortidas; matam-se indígenas; rios; riachos; ribeirinhas; matam-se estados de futuro; mata-se a mãe e, de acordo com o Guia de Vigilância Epidemiológica do Óbito Materno, 92% das mortes maternas eram evitáveis (Brasil, 2009). Matar é o tom melódico da nossa era. Mata-se e se lamenta a morte e se mata e lamentando e indo e voltando ao Buraco Negro e à África (Brasileiro, 2022) estamos distraídas todas as pessoas. Finalmente, não basta nascer da cor certa ou da cor abjeta. Finalmente, não basta nascer exibindo um pênis ou uma vagina. A raça não é a sentença. A genitália não é a sentença. A sentença é o cânone.
3. CONTEXTO | PARA FORA. Devemos considerar que o presente ensaio vinha sendo escrito durante o pleito eleitoral do ano de 2022 e que, entre outras agências importantes, anunciará a próxima pessoa presidenta da República Federativa do Brasil. Um fato público, um ato público, dentro em breve, será ainda a circunstância nova por nós todo tempo sabida: resultará O Presidente da República num Branco Homem[5]; e se mencionamos a raça e o gênero do futuro chefe de Estado é por considerarmos que raça e gênero informam aquilo que, certa feita, Frantz Fanon chamou “feitiço remoto” (Fanon, 2020, p. 37). A expressão “feitiço remoto” tem lá sua contextura apresentada em “Pele negra, máscaras brancas”, mas é aqui tomada de empréstimo para reconhecer o seguinte. No âmbito do discurso, que é o âmbito mesmo da realidade fática, existimos por meio das palavras. Ao nascermos, todos os corpos somos enlaçados por determinações sócio-históricas que nos antecederão a existência e nos antecederão a existência por meio de palavras; quer dizer, as palavras nos dizem primeiro, as palavras nos dizem por meio do Livro Sagrado e é preciso primeiro saber ler para ler, no Livro Sagrado e por meio Dele, que no princípio era o Verbo[6] etc. É bastante difícil ser uma negra mulher antecedida pela palavra, compreende? É difícil porque o torno nos dá a volta completa e a todas as pessoas; não escapamos da instituição total. Tem isso também. É como viver em um regime de internação[7]. Manicomial. Ao ar livre.
(Está no Livro B do pacto civilizatório, ali, onde as nossas assinaturas não estão).
Assim, nossa experiência atmosférica discursiva se dá em 13 atos que são, em conjunto, um ato ele mesmo. A lista guarda a exuberância de um modelo biopolítico de gestão que nos organiza as massas fossemos um organismo nascido para performar a diferença por meio do seu reiterado anúncio. Afundamos o abismo racial e de gênero e lá debaixo olhamos lá em cima Os Universais.
4. REDE PARA ESCUTAS MARGINAIS (DENTRO E FORA PELA FITA DE MÖBIUS). O QUE É A REM? A Rede para Escutas Marginais (REM) é um conjunto de atividades formativas, de enfoque teórico-prático, oferecido pelo Coletivo Margens Clínicas e com vistas ao enfrentamento dos efeitos psicossociais da violência estrutural do Estado. Partimos da compreensão de que tal violência tem suas raízes na tradição colonial-escravocrata estruturante da modernidade, produzindo efeitos traumáticos específicos que aleijam os sujeitos da sensibilidade, da criatividade, da capacidade de expressão e autonomia. Ainda, opera como um dispositivo que aglutina uma série de discursos e práticas de assujeitamento, silenciamento, objetificação e exploração dos corpos, retirando-lhes a potência de vida, quando não, a vida em si. Com base nos conhecimentos mobilizados pelas teorias anticolonialistas de raça, gênero e classe em diálogo com a psicanálise, a psicologia social crítica e o marxismo, nosso objetivo é oferecer atividades formativas permanentes para pessoas vinculadas às redes de cuidado, acolhimento e enfrentamento em territórios vulneráveis e periféricos. Apostamos que o desenvolvimento de uma prática clínica eticamente orientada para a escuta do sofrimento — de abordagem comunitária e pública — pode contribuir para a reconstituição subjetiva de pessoas afetadas pela violência, transformando capacidades criativas, formas de engajamento, articulação e produção de cultura no território. As atividades formativas contam com aulas teóricas online, divididas em “Fundamentos da psicanálise” (96h); “Estudos das Humanidades em geral” (64h), ministrados por pessoas convidadas e cujo conteúdo pode ser acessado de maneira assíncrona, por meio da plataforma EaD rem.margensclinicas.org e também de modo síncrono, realizadas via Zoom e YouTube, com horários confirmados mês a mês. Há ainda os Grupos de Estudos (40h), espaços quinzenais, e dedicados à leitura de textos importantes de pessoas autoras contemporâneas e apenas acessível para aquelas pessoas que cumpriram já, ao menos, um semestre de participação na REM. Os Grupos de Discussão (60h), espaços quinzenais em que participantes, distribuídas em eixos regionais, são acompanhadas pela equipe de coordenação da REM para o aprofundamento de questões, partilha de dúvidas e experiências, à luz dos recursos críticos oferecidos pelas aulas teóricas. As Supervisões (60h), espaços quinzenais destinados ao estudo de casos a partir do referencial teórico e da experiência prática de cada participante da REM, de modo a construirmos coletivamente conhecimento sobre as problemáticas enfrentadas na contemporaneidade, assim como estratégias de enfrentamento por meio da escuta clínica e da articulação em rede e territorializada. Os Diálogos Deliberativos (18h) e que são espaços semestrais de avaliação permanente com ênfase na construção de saberes coletivos que orientem as tomadas de decisões; bem como as atividades práticas nos territórios (40h) e que, a partir dos subsídios mobilizados pelo conjunto das atividades anteriores, voltam-se para a elaboração de um plano de ação para o território, baseado o plano em metodologias comunitárias que mantenham em perspectiva a articulação territorial e uma prática clínico-política eticamente orientada. pensar as violências estruturais que afetam os territórios e as políticas públicas de saúde e assistência social, de modo a produzirmos saberes e metodologias de ação para a atuação em rede, articulação territorial e atenção psicossocial. Tudo dito e, ao final, espera-se que as pessoas participantes possam:
— compreender os efeitos do colonialismo e das formas sociais de exploração nas estruturas de nossa sociedade;
— compreender conceitual e praticamente conceitos chaves da teoria social, da filosofia, psicanálise, psicologia social crítica, marxismo, saúde coletiva e de outras teorias que auxiliem na luta popular por transformação social;
— ampliar a capacidade de escuta do sofrimento de pessoas em condições de vulnerabilidade social, bem como de seus efeitos no laço social;
— compreender o papel do SUS e do SUAS na luta por democratização política no Brasil pós-ditadura;
— favorecer a identificação das dinâmicas sociais, das relações de poder, conflito, exploração, exclusão, desigualdade e violência assim como de diálogo, mobilização social, lutas e resistência existentes nos territórios, em articulação com as redes socioassistenciais e de saúde;
— possibilitar a construção de conhecimento coletivo sobre o território desde uma perspectiva comunitária que favoreça o reconhecimento de si como pessoas protagonistas e agentes de escuta;
— reconhecer a conformação do tecido social de sua comunidade, as redes sociais de enfrentamento à violência já estabelecidas e as possibilidades de conformação de novas redes;
— favorecer o engajamento das pessoas participantes no enfrentamento à violência e o compromisso social com o território de atuação;
— construir planos de ação e intervenção nos territórios junto às redes socioassistenciais, de saúde e de cultura;
— aprimorar as metodologias clínicas comunitárias de enfrentamento à violência política que possam auxiliar a construção coletiva de políticas públicas a favor das comunidades.
A REM se inaugura a si mesma porque demandada pelo sofrimento psíquico impingido às pessoas participantes de movimentos sociais e às pessoas trabalhadoras dos serviços públicos que, tantas vezes, autodeclaram-se “enxugadoras de gelo”, “apagadoras de incêndio” ao que a REM propõe: “braço desarmado da violência do Estado”. Subtexto e contexto são, então, dimensões colocadas em diálogo a fim de criar condições atmosféricas coletivas para o enfrentamento dos efeitos deletérios da violência de Estado neocolonial. Na ocasião da sua fase projetual, instalou-se um período de pré-organização e que contou com a avaliação de recursos materiais; a justa compreensão da demanda; a sistematização das informações de que dispunhamos; a construção da equipe e a revisão metodológica, especialmente interessada em pensar os espaços em que nós da rede estaríamos juntos e a revisão metodológica. A demanda o que é? Que conjuntos de palavras se escolhe na circunstância da apresentação do caso? Qual é a história do território e qual a relação da pessoa narradora com ele? Formuladas as perguntas que sulearam nossos primeiros movimentos de dentro do projeto em direção ao fora, passamos à convocatória de participantes por meio de redes já existentes dentro dos serviços; fóruns de assistência social e saúde; movimento social; associação de moradores e também nas redes sociais digitais. As inscrições se deram via formulários cujas questões reflexivas e interessadas em conhecer as condições socioeconômicas das pessoas respondentes, mapear as relações de confiança entre profissional e equipe, formação e histórias de vida. Os dados iniciais coletados pelos formulários funcionaram feito elementos-chave para a organização dos eixos, escolha das aulas teóricas e frequências dos encontros. A escolha do material teórico — temas de aulas — conclui aquilo que nomeamos “recursos críticos para o pensamento”. Tudo dito e, quando nós nos sentamos em roda e nos escutamos, apoiamo-nos coletivamente. O que nós fazemos é erguer uma malha discursiva, informativa, baseada em evidências científicas feito escudo que, em certa medida, protege nossa comunidade das sistemáticas investidas contra o comum. Quem de nós sabia que o código penal brasileiro não estabelece limite de idade gestacional para o aborto legal, por exemplo, em caso de estupro, risco de vida à gestante e anencefalia fetal? Quem de nós sabia que o consentimento da pessoa menor de idade grávida e a autorização dos pais ou de uma pessoa responsável é suficientes para autorizar o aborto e que nenhuma autorização judicial é exigida? Quem já considerou que os relatórios por nós escritos participam da biografia pública daquela pessoa usuária? Que repetir a seguinte cadeia de sentido, veja como uma imagem se cola a outra, sugerindo uma terceira: Mulher. Negra. Grávida. Abatida. Mal vestida. Leva ao pronto-atendimento filha queimada com óleo quente. Mãe usuária de substância. Negra. Mal vestida. Tem seis filhos. Que não dormem antes das 23h, tal qual confidenciou o segurança da unidade de pronto-atendimento que é vizinho da mulher. E tudo segue apontando para a exigência de um boletim de ocorrência Todas as verdades sobre o sujeito que se antecipam à escuta são verdades nocivas. São verdades provisórias porque verdades apoiadas sobre as expectativas sociais que nós, todas as pessoas, aprendemos a ter em relação a determinadas estereotipias. Para não repetir, um caminho, a REM.[
[1] Na quarta seção do presente ensaio, a REM será restituída ao corpo principal do texto. Por agora, interessa dizer que a Rede para Escutas Marginais (REM) é o nome dado ao projeto de construção coletiva para políticas públicas com as bases e desde as bases a partir da pergunta “como lutar pelo público sem fortalecer o Estado?” e que é um dos pontos de culminância do trabalho desenvolvido pelo Coletivo Margens Clínicas já há uma década. Compreende ciclos de atividades formativas com duração estimada em 18 meses e cuja estrutura se organiza desde integrantes do Coletivo Margens Clínicas; pessoas parceiras convidadas; pessoas profissionais do SUS e do SUAS — pessoas assistentes sociais, psicólogas, enfermeiras, educadoras, agentes da família e do território, lideranças comunitárias, autônomas etc.; pessoas jovens moradoras de territórios tornados periféricos, com destacada preferência por cotistas recém-formadas em psicologia ou atuantes junto aos movimentos sociais e de cultura da região.
[2] Significaria dizer que, no Brasil, quando descobriram-nos os portugueses em caravelas — Nina, Pinta e Santa Maria —, Pedro gritou “terra à vistAAAAAaaa)” e fez bem para indígenas a catequese, mas antes espelhinhos no escambo e os padres jesuítas são bons homens que, portando o evangelho — ver Cristóforo ou “aquele que carrega Cristo, são bons também em compartilhar suas dávidas. Apenas os muito resistentes é que eram selvagens e porque se recusaram a metamorfose em receptáculo de Cristo é porque deviam ser maus etc.
[3] Que aqui é usado vulgarmente para se referir aos não seres forjados pelas contradições da modernidade; quer dizer, finalmente fabricada a massa de sujeitos esvaziados porque não mais cosmopercebidos, passamos às práticas de aniquilamento: genocídio da população indígena e negra; o femicídio; a intolerância religiosa; crianças indígenas têm 14 vezes mais chances de morrer de diarreia; pessoas brancas autodeclaradas negras são noticiadas assim. “Partidos que mais elegeram deputados federais negros são de direita”. Veja que perspicaz, José.
[4] Raça passa na frente.
[5] Trinta e oito Brancos Homens Senhores Presidentes da República e uma branca mulher arbitrariamente deposta. Não se trata, apenas, de repetir a Letra da Lei — “é direito de todos, é direito de todos”, “é direitos de todos” e blá — quando, desde o dia 1 de existência no mundo da bravata “a população escolhe”, a Letra da Lei já excluía mulher (gênero); indígena (raça); soldado raso (rés-do-chão da “hierarquia” “militar); mendigo (posto de determinação social ou um desvio social que é uma pena, que tristeza!, onde está a família? que escolhas terá feito? será destino? será propensão? parece depressão, parece alcoolismo, parece que a mulher Dele descobriu traição amorosa, parece que era aquela nigrin-empregada Dele, parece que foi a esposa quem contratou a menina, parece que era nova a menina, parece que era virgem a menina, parece que está grávida, parece que o bebê é Menino, parece que a esposa só deu para Ele duas meninas, parece que ninguém nunca mais viu a menina, parece que 5,5 milhões de crianças, em 2019, não tem o nome do p(P)ai gravado na certidão de nascimento etc. e outras circunstâncias forjadas pelo torno sócio-histórico e cuja condição agravante é compreendida como de responsabilidade do sujeito assujeitado); analfabetos (peSSoas SujeitoS barrados diante da | Letra da Lei) e outros socialmente ajuntados e submetidos a um modo de existência que, para qualquer ideia difusa de tranquilidade, deve mesmo parecer um enxame de vespas. Mas continuando. E teve ainda, antes e ainda hoje, ó: voto de censitário, voto de cabresto, “vai ter eleição po*ra nenhuma krl que agora é ditadura” e, em 2018, o atual Chefe de Estado disse que não aceitaria o resultados das urnas não fosse Ele o escolhido, quer dizer, só aceitaria o Messias e por aí vai.
[6] Com Fanon (2020, p.35) seguimos: “Num grupo de jovens antilhanos, aquele que se exprime bem, que possui o domínio da língua, inspira extraordinário temor; é preciso tomar cuidado com ele, é um quase branco. Na França se diz: como um livro. Na Martinica: como um branco”.
[7] Eu sou uma mulher negra e, para além daquilo que me dizem desde meu nascimento sobre ser “mulher” e “negra”, sei precisamente nada sobre ser eu “uma mulher negra”. Apenas sei o que me ensina a experiência em sociedade, quaisquer sociedades. No seu “O 18 de Brumário de Luís Bonaparte”, Karl Marx escreveu: “não podem representar a si mesmos, devem ser representados” (Marx apud Said, 1990, p. 11).
[8] Uma vida não se assassina porque não se assassinam pontos de fuga que abrem buracos para o fora da abóbada capitalista colonial.
[9] A diferença, como marcador social, é anticomunal.
[10] Também na casa, centro planetário de cuidado da pessoa trabalhadora, encena-se a matriz da exploração. Serve a mulher do lar ao homem que fora dele trabalha para um terceiro que em casa tem uma quarta a lhe passar camisas, fritar ovos, acompanhar o esquema vacinal das crianças etc.
Bienal de São Paulo. coreografias do impossível. Disponível em: http://bienal.org.br/post/10199. Último acesso em 06NOV2022.
Cidacs/Fiocruz Bahia. Racismo: desde a infância estimando a expectativa de vida. Disponível em: https://cidacs.bahia.fiocruz.br/2022/09/22/racismo-desde-a-infancia-estimando-a-expectativa-de-vida/. Último acesso em 07NOV22.
Fanon, F. (1952). Pele negra, máscaras brancas. Tradução de Sebastião Nascimento. São Paulo: Ubu Editora, 2020.
Morrison, T. (2015). Deus ajude essa criança. Tradução de José Rubens Siqueira. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
Rodríguez, V. O ensaio como tese: estética e narrativa do texto científico. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
Said, E. (1978). Orientalismo: o Oriente como Invenção do Ocidente. Tradução de Rosaura Eichenberg. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.
Ture, K.; Hamilton, C. (1967). Black Power. A política de libertação nos Estados Unidos. Tradução de Arivaldo Santos de Souza. São Paulo: Jandaíra, 2021.
Cientista social (PUC-SP), mestre (PUC-SP) e doutora (PUC-SP/Paris-Diderot) em Comunicação e Semiótica. É professora no Programa de Pós-Graduação em Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades (FFLCH/USP) e na Coordenadoria Geral de Especialização, Aperfeiçoamento e Extensão (COGEAE/PUC-SP). Redatora-geral do Simpósio Internacional de Assistência ao Parto (SIAPARTO), integrante do Coletivo Margens Clínicas, da Rede para Escutas Marginais (REM), do grupo executivo da Rede Brasileira de Mulheres Cientistas (RBMC) e do conselho do Núcleo de Estudos das Diversidades, Intolerâncias e Conflitos (Diversitas/FFLCH-USP). Seu relatório de estágio pós-doutoral (FFLCH-USP), intitulado “Ginecológicas: o nascimento negro para além da tragédia”, foi contemplado pelo Programa de Ação Cultural do Estado de São Paulo (ProAC), na categoria “ensaio de não-ficção” e será publicado em 2022. Seu poema “Oração” esteve entre os finalistas mundiais do “Human Rights Defenders Poetry Challenge”, organizado pelo ProtectDefenders.eu. Com Anna Turriani, coordena a Rede para Escutas Marginais (REM).
Psicóloga (IP/USP), mestre e doutoranda no programa de Humanidades, Direitos e Outras Legitimidades (FFLCH/USP). É também psicanalista, educadora somática, dançarina, permacultora e tradutora/revisora nas áreas de ciências humanas, psicologia crítica e psicanálise. Membra do Coletivo Margens Clínicas, coordenou os projetos Cartografias da Memória (SMDHC-SP), Clínicas do Testemunho nas Margens (financiado pela Comissão de Anistia) e Centro de Estudos em Reparação Psíquica – CERP Margens Clínicas (financiado pelo Conselho Britânico). Fundadora da Dançarilhos – espaço para corpo em movimento, foi contemplada em 2022 pelo PROAC – Apoio a espaços culturais e criativos. Pesquisa corpo, memória coletiva, território, educação popular, psicologia social crítica e clínica. Com Maria Ribeiro, coordena a Rede para Escutas Marginais (REM).