Resenha do livro de Rinaldo Voltolini. Crianças fora-de-série: psicanálise e educação inclusiva. São Paulo: Benjamim Editorial, 2022. 272p
La vérité que je cherche n’est pas dans le livre, mais entre les livres 1
Georges Perec
Ao se debruçar sobre a articulação entre psicanálise e educação inclusiva, Voltolini faz o que de melhor pode fazer um psicanalista: um ato. Para tanto, são operadas torções, duas delas já declaradas no próprio título. Uma anuncia o campo de investigação e, diferentemente do que um leitor versado poderia esperar, Voltolini precisa: o campo será o da psicanálise e o da educação inclusiva, não aquele mais geral da educação, como consagrado entre psicanalistas da área. A outra põe relevo nas crianças fora-de-série, termo que funciona como enigma, uma vez que alude ao extraordinário e ao infraordinário. Voltaremos a isso.
A primeira parte do livro é dedicada a escrutinar o discurso da educação inclusiva, tema espinhoso que exige não só coragem do autor como demonstração cuidadosa de seus instrumentos de pesquisa. Emula um escultor quando, ao se deparar com uma peça de mármore, inicia seu trabalho reconhecendo suas ferramentas, espanando o pó de usos anteriores e tateando o fio da lâmina para, então, aplicar a pressão sobre a peça de modo que nem a pedra, nem a ferramenta, nem o próprio artista saiam prejudicados desse encontro. Como já havia anunciado Mannoni (1973/1988) – autora lembrada logo no primeiro capítulo –, do encontro entre saber médico e pedagogia obtivemos uma educação pervertida que, ao buscar adequar os sujeitos às instituições, acabou por solicitar que as crianças viessem a “ilustrar o bom fundamento de uma doutrina” (p. 44). Voltolini é um dos autores consagrados por seguir na esteira dessa pioneira do campo da psicanálise e educação em seu projeto analítico, e não pedagógico, de tomar o discurso educativo pelo avesso. Para tanto, ele se dedicará a abordar, de forma diligente, a proposição dos discursos feita por Lacan. Esse é um dos destaques do livro, de cuja leitura qualquer psicanalista ou estudioso da teoria dos discursos se beneficiará, pois, como bem faz notar Maria Cristina Kupfer (2022) em seu prefácio à obra, Voltolini é um “escutante das palavras e artífice de seus contrastes” (p.12). Estilo que decorre de uma postura ética anunciada e exercida ao longo do texto.
É na noção de subversão, que ressalta a questão da borda – o verso e o avesso, no caso – a que a psicanálise pode encontrar sua marginalidade. Não é, portanto, num à margem [grifo do autor] que o analista monta o campo de sua operação, mas num na margem [grifo do autor]. O analista é operário da margem, da borda. (Voltolini, 2022, p.41)
Ao escrutinar a ordem inclusiva, o autor aponta para o risco da redução a um imperativo que homogeiniza o acesso à educação sob o lema – ainda que justo – da educação para todos. Neste ponto, recorre à imprescindível contribuição de Foucault acerca da relação entre saber e poder, ao ressaltar que há, na escola inclusiva:
a regulação de um saber; as estratégias de poder disciplinar; a própria hipervigilância comum ao modelo do panóptico; e, sobretudo, a leitura normalizante. Na origem, o discurso inclusivo surge como um dispositivo normalizante de poder. (Voltolini, 2022, p.64)
Mas, se em Foucault é descortinada essa operação de poder discursivo, em que algo se afirma graças a uma trama de saberes, na psicanálise a ênfase recai sobre sua divisão, em que algo faz sintoma denunciando uma não coalescência entre saber e verdade. O discurso analítico, entendido como evanescente, é aquele que “procura deflagrar efeitos de verdade que podem tocar o saber e ao fazê-lo permitir giros que recoloquem em outra posição o saber em sua relação com o real” (Voltolini, 2022, p.69).
Voltolini (2022), feito esse percurso, tem condições de anunciar um problema que lhe é caro, o declínio do político e a prevalência homogeneizante do social – dinâmica que reduz problemas políticos a temas de gestão e as instituições a sua dimensão de organização. Conforme escreve:
a inclusão social surge como política pública de modo compensatório ao fato de que o político perdeu a potencialidade de incluir [grifo do autor]. Se assim for, esse projeto perderia sua força emancipatória de reinvenção do laço social para se deixar capturar pelos mecanismos de gestão do social (p.79).
A tendência de definir o público-alvo – significante que não passa despercebido pelo autor – de uma política afirma aquilo que o sujeito é: “dizer que alguém é um vulnerável social, uma pessoa com deficiência, um excluído, reflete sua posição particular e não singular” (Voltolini, 2022, p.87). Em outras palavras, não basta a garantia de direitos se ela suprime toda possibilidade de singularidade. Em mais uma torção, o autor anuncia que “a grande conquista do sujeito de direito [grifo do autor] só cumprirá seu real valor se não impedir o direito ao sujeito [grifo do autor]” (p. 91).
Em busca por acessar a singularidade desse sujeito, o termo fora-de-série aparecerá visando tocar a posição das crianças psicóticas e autistas no interior da escola: ali estão como exceção à regra, não como caso particular, mas exemplar. Crianças fora-de-série, por serem refratárias a uma classificação seriada proposta aos alunos, fora da série neurótica e de sua relação particular com a norma fálica, não se identificam ao grupo minoritário que clama pelo direito à inclusão, uma vez que, a despeito das inúmeras tentativas de classificações médico-psicológicas, estas crianças convocam a escola a “saber fazer com a diferença [grifo do autor]” (Voltolini, 2022 p. 258).
Tomar como enigma a posição singular das crianças loucas é consonante com a visada ética assumida pelo autor. À diferença de uma psicologia cognitivo-comportamental, que pretende explicar o enigma do autismo, aqui a referência remonta ao paradigma freudiano das teorias sexuais infantis: construções narrativas formuladas ali, onde o encontro com a falta põe em causa a ordem vigente. Os esclarecimentos são sempre insuficientes na solução do enigma sexual (Freud, 1908/2015).
Ali, onde a pedagogia se vê limitada, uma vez que o lastro da relação educativa com essas crianças não reside no par ensino-aprendizagem; ali, onde advém a pergunta se essas crianças frequentam a escolas “apenas para socializar”, a concepção cognitivo-comportamental assevera com a ultraespecialização: a socialização de um autista deve ficar sob a responsabilidade da equipe de tratamento. Vemos renovados os votos do casamento médico-psicopedagógico, e o portão da escola, mais uma vez, é perpassado por um poder normativo e totalizante, que silencia o sujeito em sua singularidade em prol de técnicas e de treinamentos que constroem uma abordagem ao que é lido como regularidades comportamentais. O professor-proletarizado e a ascendência do par organização-gestão no ambiente escolar são peças-chave nessa nova volta de um discurso que, no início do século XX, apareceu sob o nome de higienismo, ganhando, em meados dos anos 1980, o signo do clinicalismo psicopedagógico e, no começo deste novo século, contornos psicossociológicos tão bem anunciados no par da moda: socioemocional. “Enquanto a teoria é o lugar da ordem, o real é, por definição, o da desordem. O real é aquilo que resiste a ser visto. Contra ele as defesas se erigem para garantir um funcionamento organizado” (Voltolini, 2022, p. 156). Podemos entender, assim, como uma teoria – e até mesmo a psicanálise pode ser invocada a ocupar esse lugar, não pensem que basta ser psicanalista para estar a salvo das armadilhas do Mestre – pode servir à construção de defesas que visam à ordem e, por que não dizer, inclusive à ordem inclusiva.
Para não dizer que não falei das flores, termino lembrando uma bela passagem do documentário Encontro com Lacan, dirigido por Gérard Miller (2011), em que Antonio Di Ciaccia dá seu testemunho como analisante de Lacan. Di Ciaccia diz: “ele nos segurava pela mão, mas… ele nos strattonava com a outra mão”. Strattonava, palavra em italiano que o próprio entrevistado explica – fazendo um gesto enérgico com a mão –, quer dizer sacudir, mover de um lado para o outro, balançar.
Não esperem outra coisa da leitura desse livro. Nele, Rinaldo põe em questão o saber oficial sobre a educação inclusiva e, valendo-se da escuta própria a um analista –flutuante –, faz balançar as colagens entre significante e significado, na tentativa de fazê-la ex-sistir.
[1] A verdade que procuro não está dentro dos livros, mas entre os livros (tradução nossa).
Freud, S. (1908) Sobre as teorias sexuais infantis. In: Obras completas – Volume 8: O delírio e os sonhos na Gradiva, Análise da fobia de um garoto de cinco anos e outros textos (1906-1909). Trad. P. C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2015, pp. 390- 410.
Kupfer, M. C. M. (2022) Por uma nova leitura das relações entre a psicanálise e a educação. In: Voltolini, R. Crianças fora-de-série: psicanálise e educação inclusiva. São Paulo: Benjamin Editorial, 2022, pp. 11-15.
Mannoni, M. (1973) Educação Impossível. Trad. A. Cabral. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.
Miller, G. & Grunberg, L. (2011) Um encontro com Lacan. Produção de Gerard Miller e Leslie Grunberg, direção de Gerard Miller. França, 2011, 52 min.
Voltolini, R. (2022) Crianças fora-de-série: psicanálise e educação inclusiva. São Paulo: Benjamin Editorial, 2022.
Psicanalista. Doutora pela Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP). Atualmente atua como psicóloga no Serviço de Psicologia Escolar do Instituto de Psicologia da USP e como pesquisadora junto ao Laboratório de Estudos e Pesquisas Psicanalíticas e Educacionais sobre a Infância (LEPSI).