Proposta
Esse texto pretende apresentar uma problematização preliminar acerca da dependência da psicanálise do contexto “ocidental”, “moderno” e “europeu” de onde historicamente deriva. Minha avaliação preliminar é que o eurorreferenciamento peculiar à psicanálise não é fundamental, ainda que seja incontornável em termos discursivos, narrativos e (obviamente) históricos; o que isso significa é que é possível contemplar modos de pensamento psicanalítico e de práxis psicanalítica que não se façam dependentes dos parâmetros peculiares à tradição europeia moderna, mesmo que sustentem alguma relação com ela por conta da história e da conjuntura de criação e desenvolvimento inicial da psicanálise.
Pluralidade epistemológica e fronesiológica das práticas de cuidado e cura
Nos campos da filosofia da saúde (Camargo Junior e Nogueira, 2009), da história da saúde (Chalhoub, Marques, Sampaio e Sobrinho, 2003) e da antropologia da saúde (Rodrigues, 2006) já está relativamente bem estabelecida a centralidade do pluralismo epistemológico e fronesiológico nas práticas de cuidado e cura; isso vale para qualquer contexto moderno, mas no caso do Brasil é particularmente central. Há uma composição de diversos saberes e práticas, vinculados seja às tradições dos povos originários, dos diversos povos africanos que vieram compor nossa história, da Europa científica e também de diversas tradições populares derivadas da Europa que nos acompanham há no mínimo trezentos anos; assim, na cura de um qualquer jovem “sinhôzinho” do século XVIII poderiam se suceder rezas e promessas, depois práticas vinculadas a crenças populares, depois “trabalhos” conduzidos por algum escravo local e eventualmente um médico que viesse da cidade à fazenda prescrever algum tratamento “científico”; a mesma coisa, com pequenos ajustes, pode acontecer com qualquer um de nós diante de um processo de adoecimento complexo e perturbador o suficiente – a psicanálise que praticamos se enquadra nesse contexto, complexo assim.
As práticas baseadas em evidências e demais variantes de extração europeia e moderna podem ser hegemônicas em termos ideológicos e em termos do maquinário universitário e científico; mas na prática, nas casas e ruas e nos processos saúde-doença das pessoas, no dia a dia das pessoas, o pluralismo é a regra. Não digo isso para banalizar o ecletismo nem para relativizar o papel do saber constituído no estabelecimento e sustentação de uma práxis clínica – digo isso para sinalizar que precisamos estar atentos aos modos de implementação de nossa práxis, para pensarmos sobre nossos saberes de forma pertinente e relevante, e para deixarmos de pressupor que o modelo racionalista herdeiro do iluminismo europeu é o parâmetro adequado para avaliar a conjuntura e os desafios de nosso tempo e meio.
Parâmetros de autorização
Pois bem: isso tudo sobre o pluralismo epistemológico e fronesiológico no campo amplo das artes e ofícios de curar há de valer também em relação à psicanálise, inscrita como está no campo dessas artes e ofícios (nem todo psicanalista clínico acredita que seu trabalho é cuidado, ou é cura, ou entra nesse campo – mas isso, honestamente, é problema do analista, já que a enorme maioria das pessoas que procurá-lo em seu consultório ou onde quer que ele trabalhe vai, sim, entendê-la nesses termos)[1].
Posto isso, queria passar a uma articulação entre essa problemática e um outro campo de investigações com que venho me ocupando, ligado ao estabelecimento do espaço mental ocupado pelo analista quando do exercício de sua práxis. Trato esse problema do “espaço mental do analista” em conexão íntima com o da autorização em psicanálise, uma vez que me parece que o analista pensa, em sua práxis[2], mobilizando a imago de psicanálise e todo o arcabouço referencial que ele desenvolveu ao longo de sua trajetória na psicanálise. Nesse contexto articulei uma síntese acerca da forma como se constitui o tal “espaço mental ocupado pelo psicanalista quando do exercício de sua práxis”, e tentei apresentar essa síntese em uma imagem – a imagem, no caso, é essa aqui:
Imagem 1: um modelo para a configuração formal do “espaço mental ocupado pelo psicanalista
quando do exercício de sua práxis”; a arte do desenho é de Joyce Xavier, a quem agradeço.
O que aparece no desenho é um modelo topográfico (não estrutural) do espaço mental ocupado por um analista quando do exercício de sua práxis. Ele inclui cinco elementos principais: o hachurado preto dá notícia de conteúdos idiossincráticos do analista: reminiscências, predileções, bagagem cultural formal, bagagem cultural primária e afetiva, devaneios etc.; essas idiossincrasias aparecem ali porque, como se sabe, todo analista tem lá seus cacoetes, trejeitos, seu “jeitinho”, que não se resume à apropriação singular de fatores propriamente psicanalíticos. As três espirais coloridas dão notícia da articulação entre os três elementos do “tripé freudiano”: a análise pessoal, as práticas com efeito de supervisão e o repertório e bagagem de marcação tendencialmente teórica – elas se entrelaçam, e estão imbricadas com os conteúdos idiossincráticos; por fim, as transversais verdes dão notícia do efeito de sustentação oferecido pela inserção do analista em grupos, comunidades e instituições que cultivam e/ou celebram a psicanálise – elas têm um efeito estruturante, já que, em meu entendimento, a inserção do psicanalista na comunidade é um fator central na “formação psicanalítica”, tanto quanto o “tripé freudiano”; talvez possamos pensar que o “tripé” do psicanalista tem, na verdade, quatro pés: os três freudianos e a inserção do psicanalista na comunidade (coisa que Freud não problematizou, já que em seu tempo os psicanalistas estavam vinculados à IPA, e a inserção institucional era um pressuposto).
O “furacão” se torna mais denso e compacto conforme descemos na imagem, dando notícia de uma vinculação crescentemente intensa desses conteúdos com o lastreamento narcísico primário do analista – entendo que o “ponto cego” da escuta do analista mencionado por Freud se coloca a partir do narcisismo primário, que seria como que o ponto de estofo da escuta enquanto campo.
Defendo esse modelo como forma de pensar o espaço mental ocupado pelo analista quando do exercício de sua práxis porque ele traz visibilidade para aspectos que me parecem cruciais na compreensão da práxis: permite ver que não se trata de algo estanque, mas sim dinâmico e cronicamente instável; permite ver que há mais elementos em jogo do que o “tripé freudiano”, atualizando essa fórmula já antiga; abre espaço para o reconhecimento do fato de que a apropriação dos elementos componentes do pensamento psicanalítico serão singulares, não só em vista dos elementos propriamente psicanalíticos, mas por sua articulação com elementos idiossincráticos, que “vêm com o analista”.
Terreiro interno
Trago então um breve exemplo relativo a esse campo. Devo esse exemplo a meu encontro e trabalho junto aos profissionais do Canto Baobá, espaço comprometido com a psicanálise e com a democracia sediado aqui em São Paulo[3].
O que eles me ensinaram é que eles contam com o que eles mesmos chamam de “terreiro interno”; esse “terreiro interno” organiza e conflagra potências, vivências e disposições que eles trazem consigo a partir de suas práticas e rotinas no terreiro que frequentam, mas que seguem com eles nos demais encontros cotidianos – assumindo, no contexto propriamente clínico psicanalítico, também um lugar. Isso significa que os orixás que os acompanham, acompanham também seus trabalhos clínicos; isso não significa que seus trabalhos clínicos sejam trabalhos “de terreiro”, mas significa (segundo eles mesmos) que “o terreiro vai com eles”, de forma que a escuta deles é amparada por uma formação psicanalítica, sim, mas também por uma preparação espiritual de matriz umbandista.
Sinalizo o óbvio: não há referência a orixás ou a terreiro interno em Freud, em Winnicott, em Klein ou em Lacan (André Green fala em “enquadre interno”, mas eles não parecem ter conhecimento da existência do conceito). A despeito disso, entendo que as práticas encampadas por esses profissionais podem, com todo direito e razão, serem consideradas práticas psicanalíticas – com uma escuta bem embasada em uma formação teórica, uma análise pessoal, um trabalho de supervisão, a habitação de espaços de transmissão e cultivo da psicanálise… e o acompanhamento de orixás.
A impressão que tenho é que esse recurso ao “terreiro interno” funciona, na práxis desses psicanalistas, como recurso a um recurso cultural relevante para eles, e que contribui na constituição e consolidação do espaço mental de pensamento habitado quando do exercício de suas práxis.
Acredito, por sinal, que recursos mais ou menos equivalentes são muito comuns, a partir de bagagens culturais diversas – pessoas que recorrem ao teatro, à música, à poesia, à literatura etc. Exemplo: alguns psicanalistas, como Alfredo Naffah Neto (2004, 2007), sinalizaram para a relação entre música e escuta psicanalítica; outros, como Luís Cláudio Figueiredo (2014), sinalizaram para a relação entre poesia e escuta psicanalítica; outros ainda, como Adam Phillips (Popova, 2014), sinalizaram para a relação entre criação literária e escuta psicanalítica. Na prática, parece-me que o “terreiro interno” a que esses profissionais do Canto Baobá recorrem lembra em muito a “escuta poética” de Figueiredo, o papel da música na escuta segundo Naffah Neto e o papel da criação literária em Adam Phillips: trata-se, em todos os casos, de pontos de apoio culturais, vinculados à bagagem cultural idiossincrática de cada um desses clínicos, atuando como “fertilizante” e conferindo sustentação à práxis de cada um deles.
Acredito que Naffah Neto não obrigue seus pacientes a escutarem as músicas que lhe são úteis na escuta analítica, como imagino que Figueiredo não declame poemas em seu contexto de escuta e, bem, os clínicos a que me referi não “impõem” nada a seus pacientes quando lançam mão de seu terreiro interno: são, em todos os casos, instrumentos de sustentação de uma práxis psicanalítica, e não me parece haver motivo (que não seja discriminatório ou racista) para aceitar o aporte da poesia e/ou da música clássica para pensar a clínica psicanalítica e recusar o aporte da cultura de terreiro.
Haveria uma imensidão de discussões interessantes que poderíamos (e espero que possamos ter) a partir de experiências como essas, que certamente existem por aí e não esperam passagem para existir e funcionar. Por ora, o que quero sinalizar é que há psicanálise de boa qualidade sendo feita e que lança mão dos orixás como um recurso de escuta, que esses analistas compatibilizam essas referências às suas formações em psicanálise e que, até onde pude ver, eu acho que eles têm razão em fazê-lo – temos aqui, então, um exemplo de constituição, consolidação e sustentação de um espaço mental psicanalítico que lança mão de recursos alheios ao estereótipo psicanalítico.
Em tempo: eu mesmo não tenho notícia de ser apoiado por orixás em minha práxis, e não tenho interesse nenhum em defender universalização ou hegemonia para isso. O ponto aqui é o reconhecimento e o respeito ao existente, e a humildade de passar à renovação dos quadros referenciais teóricos e práticos em vista do reconhecimento dos fatos que se impõem enquanto existentes – humildade que Freud teve e defendeu ao longo de sua vida, e que atribuiu mais de uma vez à psicanálise enquanto postura epistemológica (ver, por exemplo, Freud 1925/1996).
Para os propósitos desse artigo, o ponto principal é ajudar a ver que o pensamento clínico psicanalítico não é intrinsecamente vinculado a nenhuma matriz cultural específica – é possível imaginar alguém obscenamente erudito que não consegue articular um espaço mental de pensamento nesses moldes (ou não consegue suportar habitá-lo – o que, em termos práticos, vem a dar no mesmo); por outro lado, é possível que alguém sem grande instrução formal ou sem acesso às instituições mais prestigiosas no campo psicanalítico venha a desenvolver a capacidade de pensar psicanaliticamente nos termos que propus. Assim, não é correto (em termos de teoria da clínica) restringir a psicanálise a uma certa performatividade intelectual, a um certo imaginário ou a um certo campo cultural referencial. Assim vemos (como já sabemos) que se pode fazer boa psicanálise com ou sem divã, com ou sem norma culta, com ou sem terno e gravata, com ou sem recurso a cinema francês e Shakespeare e Dante, com ou sem o talento para recitar de cor as obras de Freud e/ou Klein e/ou Lacan e/ou Winnicott. Os parâmetros condicionantes e determinantes da práxis psicanalítica não vêm daí, de forma que a valorização diferencial de uma forma de psicanálise em detrimento de outra a partir desse tipo de critério se deve a eurocentrismo, elitismo, dogmatismo, formalismo, racismo, esse tipo de coisa. Ou seja: é preconceito, e discriminação, e não é intelectualmente honesto.
Reitero e reforço: de acordo com a concepção que estou propondo, não há parâmetro formal ou conteudista que preveja com segurança o que garante ou não uma boa clínica psicanalítica – isso diz respeito a autores de referência, mas abrange também arcabouços culturais. Entre outras coisas, isso dá notícia de que não é decisivo por si só se um sujeito já leu Hamlet, se fala francês, se domina o português erudito, se está acompanhado por orixás – esses parâmetros serão relevantes no contexto, e serão relevantes do ponto de vista da disposição afetiva do analista diante da narratividade e da fenomenologia clínica com a qual ele se depara; mas eles certamente não são decisivos para qualificar a priori o valor ou o tipo de psicanálise que alguém faz ou deixa de fazer.
Voltando aos profissionais que lançam mão de seu terreiro interno como instrumento de escuta: quando me contaram sobre o fenômeno eu quis ouvir e, quando pude ouvir, entendi que fazia sentido e que me parecia compatível com tudo que importa acerca da psicanálise enquanto práxis. Além de aprender, devo dizer, eu fiquei feliz: feliz porque vi psicanalistas produzindo uma psicanálise visceralmente comprometida com a civilidade brasileira, e porque vi pessoas historicamente alijadas da psicanálise podendo ser escutadas com respeito e encontrando uma psicanálise que ressoa com a bagagem cultural que eles mesmos trazem consigo.
Nosso desafio, de qualquer forma, não é validar ou não o conceito ou o fenômeno teórico-clínico do terreiro interno – primeiro porque não estamos em lugar de julgar “o que pode e o que não pode”, e segundo porque ninguém nos pediu nada nesse sentido. O que nos cabe, sim, é trabalhar por uma psicanálise que seja intelectualmente honesta o suficiente para reconhecer que isso existe, e que seja capaz de reconhecer as consequências disso em termos epistemológicos, institucionais e práticos. Essa seria, no caso, uma psicanálise que não se fecha no que está escrito nos livros fundadores ou no cânone cultural europeu; uma psicanálise, portanto, que não incorre em gestos potencialmente epistemicidas de julgamento e desqualificação a partir do estranhamento, e que não incorre em elitismos ao chancelar única e exclusivamente o que tem cara, cheiro e gosto de elite.
Elitismo e seu papel no cultivo da “boa psicanálise”
Gostaria de abordar, nos próximos parágrafos, uma publicação do meio psicanalítico onde se associou uma “defesa” da psicanálise à rarefação do acesso à formação psicanalítica, numa estratégia que perpetua gargalos no acesso e preserva a psicanálise como uma práxis (e um tratamento) restrito às elites brancas de nosso país. Não se trata de um caso excepcional, havendo (infelizmente) muitas ocasiões onde “superpsicanalistas”, grupos e instituições saem “em defesa” da psicanálise e acabam defendendo, por associação, o caráter restritivo, elitista e excludente do campo. Tampouco se trata de um caso particularmente agudo, e espero que os editores da Revista não se sintam “mirados” ou atacados por essa análise – na verdade, optei por ela justamente por ela não ser explicitamente hostil e elitista, e fiz isso justamente de forma a mostrar que há ocasiões corriqueiras em nosso meio, onde psicanalistas que não estão sendo abertamente elitistas e excludentes acabam, desapercebidamente, contribuindo para a perpetuação dessas práticas em nosso meio.
Passemos, então, ao caso: no dia 25 de maio de 2022 circulou uma Carta-Convite para submissão de artigos para uma edição da Revista Brasileira de Psicanálise, que contaria com uma edição temática dedicada ao tema “Formação do psicanalista” (Castelo Filho e Susemihl, 2021). Após uma contextualização, o editor diz que “Para o exercício da psicanálise, a grande maioria das formações ligadas à IPA considera que o principal instrumento é a mente do analista”, com o que concordo. Mas daí deriva uma argumentação (sim, a Carta-Convite tem argumento) que sinaliza o entendimento de que a rarefação no acesso à formação psicanalítica e as dificuldades vinculadas à formação são intrinsecamente vinculadas à qualidade da formação, de forma que a facilitação do acesso ou medidas que tornem o percurso menos oneroso e/ou excludente incorreriam em atentado à qualidade da formação oferecida; o editor defende, em resumo, que a formação psicanalítica é complexa e desafiadora, e que o processo de formação é caro, segregacionista e excludente porque não poderia ser diferente, dados os requisitos do processo[4].
Num momento final e decisivo da argumentação, a Carta-Convite assevera:
Qual seria a reputação do Balé Bolshoi, do Royal Ballet ou do Balé da Ópera de Paris caso a formação de seus dançarinos fosse facilitada em nome das dificuldades da vida atual? Ou a de um médico cuja formação fosse “facilitada” por conta das dificuldades e dos custos de sua formação? A profusão de faculdades de medicina privadas, de qualidade duvidosa, deixa a problemática mais evidente. Pode-se pensar o mesmo sobre a profusão de cursos de psicanálise ou sobre a competição de instituições para ter mais alunos e formandos do que outras? Será que uma adequação da formação aos tempos atuais e às questões contemporâneas se faz realmente necessária, sem perder o rigor e a seriedade imprescindíveis para uma formação psicanalítica?
Parecem-me boas perguntas; vamos contemplá-las, então, uma a uma:
Pergunta 1: “qual seria a reputação do Balé Bolshoi etc se a formação dos bailarinos fosse ‘facilitada’ por conta das dificuldades e dos custos de sua formação?”
Resposta: bom, depende. O editor parece supor que o Balé e demais instituições de elite não poderiam “facilitar”, porque com isso perderiam seu primor. Entendo o ponto, mas discordo: a questão não pode ser reduzida a um “curso EAD” do Balé, com tudo sendo igualado e tratado de forma indiscriminada. Uma coisa, claro, é a descaracterização do que uma instituição se propõe a fazer; outra, bem diferente, é essa instituição ser confrontada com as violências estruturais e simbólicas que sua posição atualiza, e a partir daí ser responsabilizada e eventualmente constrangida a repensar suas práticas. Isso não precisa significar o “fim da qualidade” do Bolshoi: pode significar a reversão de parte dos lucros da instituição para a promoção de atividades socialmente responsáveis ou transformadoras; pode significar o comprometimento com pautas e projetos compatíveis com a “excelência da instituição”, mas que também colaborem para incluir pessoas historicamente alijadas do ballet profissional ou tornar acessível o ensino de qualidade a pessoas historicamente excluídas desse tipo de acesso; pode, também, significar uma abertura do Bolshoi a destaques e promessas que ajudem a tornar o ambiente do teatro e da escola mais plural e inclusivo e menos monocromático e classista. Por que dou esses exemplos? Porque não é óbvio que a “facilitação” seja o único jeito de mudar: é possível mudar revendo seus privilégios, seus vícios, seus compromissos nefastos, suas práticas excludentes; é possível mudar propondo iniciativas novas, se abrindo a iniciativas novas já existentes, transformando a “marca”. Em resumo, o fato de um processo de formação exigente e complexo ser exigente e complexo não desresponsabiliza as instituições que o salvaguardam em relação a seus vícios, seus maus-feitos ou suas responsabilidades históricas.
Pergunta 2: “pode-se pensar o mesmo sobre a profusão de cursos de psicanálise ou sobre a competição de instituições[…]?”
Resposta: não – no caso de a insinuação ser de que a característica excludente e elitista se deve a uma “defesa da excelência”, e que instituições menos elitistas devem ser combatidas porque fazem “ballet de má qualidade”, a resposta é não, não se pode pensar isso. E não se pode pensar isso porque as instituições que não são excludentes e elitistas compõem um leque amplo, e representam um gesto social e político polissêmico – é péssima a ideia de execrá-las a priori só porque não são elitistas e excludentes. É claro que há instituições oportunistas, e instituições que oferecem conteúdo e recursos de má qualidade, e é claro que seria importante cuidarmos para que pessoas interessadas na psicanálise tenham acesso a instituições confiáveis e não sejam engambeladas por instituições ruins; mas fechar-se na sua própria instituição, declarar-se o representante da excelência e desqualificar o resto como inadequado é um gesto que caminha justamente na direção oposta. Voltando, então, à pergunta 2 do editor: não se deve pensar que a profusão de cursos descaracteriza a psicanálise – deve-se pensar que a psicanálise não oferece recursos de acesso a uma multidão de pessoas interessadas nela, e essas pessoas encontram muitas instituições de qualidade duvidosa (o que é um problema) e algumas instituições prestigiosas que fecham as portas a elas, e isso é um problema a ser cuidado (não o interesse dessas pessoas, mas sim o descompromisso das instituições prestigiosas em relação a essa multidão de interessados que não são da elite e que acabam ficando vulneráveis a oportunistas que “oferecem acesso” de qualidade duvidosa).
Pergunta 3: “Será que uma adequação da formação aos tempos atuais e às questões contemporâneas se faz realmente necessária, sem perder o rigor e a seriedade imprescindíveis para uma formação psicanalítica?”.
Resposta: sim.
Resumo e balanço: fico com a impressão de que as iniciativas oportunistas e mal-intencionadas que pipocam aqui e ali acabam servindo de álibi para que as instituições mais prestigiosas no meio psicanalítico se eximam da responsabilidade de rever suas características elitistas e excludentes – dando a entender que são elitistas e excludentes para preservar o rigor e a seriedade da formação, coisa que me parece honestamente absurda. Afinal, equiparar preocupação com acesso e pertinência, por um lado, a vulgarização e diluição da transmissão, por outro, é inoportuno e contraproducente, e além disso é uma falácia e um silogismo. Iniciativas oportunistas devem ser combatidas, obviamente, e fico feliz que haja organização da comunidade psicanalítica para barrar e recriminar iniciativas como a do bacharelado em psicanálise[5] ou da psicanálise ortodoxa; mas isso não pode ser tomado como escudo para se furtar à questão central sobre a formação em psicanálise: quais as condições fundamentais para a consolidação de uma psicanálise pertinente ao Brasil de nosso tempo e meio.
O desafio
É complexo pensar em formação psicanalítica para quem não tem fortuna acumulada e não é egresso de escolas e universidades prestigiosas; mas é possível. É contraintuitivo pensar em psicanálise sendo feita sem poltronas, divã e mobília freudianos, numa sala confortavelmente iluminada e sem ruído excessivo – mas é possível. Poderia parecer que longas e caríssimas análises são elementos cruciais para uma boa formação – mas não são. Quando abrimos mão desses pseudo-saberes naturalizados por seu prolongamento histórico, passamos a enfrentar perguntas difíceis: o que garante uma boa análise? O que garante um bom analista? O que garante uma boa formação? Não acho que seja necessário restringir aos privilegiados; não sei como estender aos condenados da terra; mas acho que merecemos a boa luta, e acho que as instituições prestigiosas fariam bem a todos nós se arregaçassem as mangas e deixassem de lado as falsas certezas do dogmatismo e da auto-alienação.
Sei que a psicanálise é uma criação europeia; sei também que seguiremos lendo Freud, e que (no mínimo) através do texto freudiano estaremos vinculados a um marco cultural grandemente referido à tradição europeia, o que permite supor que a psicanálise brasileira trará sinais de eurorreferenciamento. Honestamente, não acho isso nem mesmo um problema, inclusive porque sei que esse eurorreferenciamento não significa que toda e qualquer psicanálise será eurocêntrica – é possível reconhecer a história da psicanálise e suas coordenadas epistemológicas clássicas, e ainda assim permitir-se enxergar o que acontece no tempo e meio em que você faz psicanálise, pondo a psicanálise que o atravessa em diálogo com o mundo em que você vive.
Por outro lado, sei que muitas vezes a defesa da erudição “necessária” e da complexidade e exigência do processo acabam servindo como álibis para a manutenção de dispositivos que defendem algo menos que a psicanálise, que são os privilégios e violências de uma comunidade elitista, racista e patriarcal. Separar uma coisa da outra não será um trabalho trivial, mas me parece o trabalho mais sensível e decisivo em termos do lugar que caberá à psicanálise no Brasil.
[1] Esse tema é abordado também por Figueiredo (2014).
[2] Espero poder compartilhar resultados preliminares dessas investigações em um livro a ser publicado ainda em 2023, que conta com o título provisório “Como um analista pensa: ensaios sobre acesso, autorização e pertencimento em psicanálise” e deve sair pela editora Blucher.
[3] Agradeço, em particular, ao Douglas e à Luzmaia pelo depoimento e pelos ensinamentos.
[4] Ele não diz explicitamente que é necessário que seja caro, mas associa um processo longo, complexo e desafiador com a recusa do “dinheiro fácil” e da ampliação do acesso em mais de uma ocasião ao longo do texto. Para quem quiser ler a íntegra, há um link nas referências bibliográficas (e o texto é fácil de encontrar na Internet, nos sites da Revista e da Federação Brasileira de Psicanálise).
[5] No início de 2022 circulou a notícia de que uma instituição particular de ensino superior estava oferecendo um “Bacharelado em psicanálise”, iniciativa que gerou revolta e indignação em boa parte da comunidade psicanalítica. O debate que teve início naquela ocasião dialoga com as questões de que tratamos aqui (e certamente estava na mente dos proponentes da edição da Revista Brasileira de Psicanálise sobre “formação”). Para um panorama e uma análise do debate naquela ocasião, remeto o leitor a esse texto que publiquei na época: https://errancias.com/2022/02/02/a-psicanalise-a-uninter-e-essa-gente-toda/
Camargo Jr., K.R., Nogueira, M.I (orgs) (2009). Por uma filosofia empírica da atenção à saúde: olhares sobre o campo biomédico. Rio de Janeiro: Fiocruz/Faperj.
Castelo Filho, C. e Susemihl, E.V.K.P. Carta-convite “A formação do psicanalista”. Extraído em 26/09/2022 de http://rbp.org.br/?page_id=318
Chalhoub, S. Marques, V.R.B., Sampaio, G.R., Sobrinho, C.R.G. (orgs) (2003) Artes e ofícios de curar no Brasil: capítulos de história social. Campinas, SP: Editora da Unicamp.
Figueiredo, L.C. (2014) Escutas em análise I Escutas poéticas. Revista Brasileira de Psicanálise, 48(1), 123-137.
Freud, S. (1925[1924]/1996) Um estudo autobiográfico. Rio de Janeiro: Imago.
Naffah Neto, A.; Gerber, I. (2007) Linguagem musical e psicanálise. Ide (São Paulo), v. 30, p. 08-14.
Naffah Neto, A. (2004) A escuta musical como paradigma possível para a escuta psicanalítica. PERCURSO (SÃO PAULO), São Paulo, v. v. 1, n.ano XVII, p. 53-60.
Popova, M. (2014) The Poetics of the Psyche: Adam Phillips on Why Psychoanalysis Is Like Literature and How Art Soothes the Soul. Artigo publicado no portal Marginalian em 09 de junho de 2014. Recuperado 23 de setembro de 2022 de: https://www.themarginalian.org/2014/06/09/adam-phillips-paul-holdengraber-interview/
Rodrigues, J.C. (2006). Tabu do corpo. Rio de Janeiro: Fiocruz.
Psicólogo e psicanalista, mestre e doutor em Psicologia pelo IP-USP. Autor dos livros “Autorização e angústia de influência em Winnicott” (Artesã, 2019) e “Os lugares da psicanálise na clínica e na cultura” (Blucher, 2020). Atua como docente no curso de pós-graduação em Sociopsicologia da Fundação Escola de Sociologia e Política (FESP-SP).