Tivemos a grata oportunidade de entrevistar Dominique Touchon Fingermann, figura de grande importância na comunidade psicanalítica de São Paulo. Ela nos brindou com sua disponibilidade e com seu entusiasmo em falar da psicanálise, e no famoso tripé da formação de um analista. Nesse caso nos debruçamos mais precisamente no tema da supervisão a partir do texto publicado em seu livro “A (de)formação do psicanalista: as condições do ato psicanalítico” (Escuta, 2016).
Psicanalista francesa radicada no Brasil desde 1983, Fingermann é membro fundadora do movimento dos Fóruns do Campo Lacaniano no Brasil. Trata-se de um dos grandes nomes responsáveis pela transmissão da psicanálise entre nós e referência clínica de toda uma geração. Acompanhar o modo como fala de sua posição clínica é um convite a repensar a radicalidade da psicanálise, a qual se reatualiza em cada ato.
[Paulo] Dominique, primeiro, obrigado pelo seu tempo, disponibilidade para esta conversa.
[Dominique] Obrigada pela curiosidade em querer falar comigo.
[Paulo] Com certeza. Bom, o tema da supervisão é um tema muito central para a psicanálise. Quer dizer, Freud [o] coloca dentro do tripé: junto com a análise pessoal, com o estudo, a supervisão enquanto algo necessário à formação do psicanalista. Mas, ao mesmo tempo, a gente vê que é um significante compreendido de maneiras muito diferentes dentro do que a gente poderia chamar movimento psicanalítico. Como você entende isso? Me conta um pouco como você entende a supervisão.
[Dominique] Primeiro, a supervisão, antes de se transformar num dispositivo, surgiu de uma necessidade dos analistas que estavam se formando com Freud, [de] conversar com ele a respeito da clínica que estavam experimentando. Inclusive, a gente sabe, nos registros, que tem uma carta de Jung a Freud. De uma certa forma, o conceito de supervisão foi inventado a partir de uma carta de Jung… eu acho que foi 1906, uma coisa assim… [uma carta de Jung] a Freud, falando do caso da Sabina Spielrein, dos embaraços que ele tinha com a transferência da Sabina. De uma certa forma, já tinha essa necessidade, essa prática: antes de se transformar num dispositivo burocrático, [a supervisão] foi uma necessidade, uma prática que surgiu de uma […] disposição antes de se transformar num dispositivo. E aí Freud começou a falar de supervisão a partir dessa experiência que ele tinha com os “jovens” analistas – eu costumo dizer, meu caro, que nós somos sempre jovens analistas. Tem todo esse debate: os jovens analistas, os velhos… [porque] a supervisão, em parêntesis, é um dispositivo que mantém sempre um analista jovem. Então, Freud, naquela carta, naquele texto [de] 1919, formula, nesse momento, o conceito de supervisão. Se ensina a psicanálise na universidade, justamente aí ele começa a falar do que é formação psicanalítica. E tem a questão que vai retomar, em 1925, com a psicanálise leiga… a questão da psicanálise leiga… aí ele formula o esboço do tripé, que vai se transformar no famoso tripé em 1920, logo depois, com Max Eitingon, que cria o Instituto de Berlim. Então, você vê um dispositivo que vem nascendo da experiência e da necessidade de […] sair da relação, do laço psicanalítico ocupado pela transferência do analisante, de sair dessa dualidade para procurar um terceiro, para lhe dizer o que está acontecendo, o que está atrapalhando, o que está atrapalhado. O exemplo do Jung mostra bem que um dos motivos essenciais da supervisão é falar do manejo da transferência e dos embaraços da transferência – que também é uma palavra que a gente poderia esticar e explicar um pouco melhor. Só para começar a responder a tua pergunta, porque imagino que você vai desdobrá-la.
[Paulo] Vou, vou [risos]. Mas, na verdade, me surgiu uma pergunta que não estava prevista aqui. Você fala desse texto de 1919, do estudo da psicanálise nas universidades. Uns anos antes, quando Freud começa as conferências introdutórias, de 1916 a 1917, a primeira conferência… bom, ele está falando para uma plateia de estudantes de medicina… e a primeira conferência é justamente sobre a particularidade do ensino da psicanálise em relação à medicina. Basicamente, ele está falando: “a gente não pode ensinar a psicanálise da mesma [maneira], não se aprende do mesmo modo, porque tem algo da própria experiência com o inconsciente”. Em relação a isso, você acha que a supervisão entra como se fosse num meio de campo entre essas duas coisas, nesse momento, em 1919, para Freud?
[Dominique] A supervisão entra no tripé como terceiro. Justamente, [é] um dos problemas [com] que às vezes as pessoas se bagunçam: começam com supervisão, depois vão fazer análise e depois começam a estudar psicanálise. Esse tripé tem…
[Paulo] Um terceiro lógico, no caso.
[Dominique] É, é análise pessoal. Análise pessoal também abre um campo […]. [Como] uma análise pessoal possibilita alguém, dá a possibilidade para alguém ocupar o lugar do psicanalista? Isso é análise pessoal, não é só falar dos seus sonhos para alguém. Análise pessoal na sua operatividade, na transformação, na deformação que ela produz. Que a própria análise empurre alguém para buscar o que está acontecendo naquilo tudo, naquilo da ordem da experiência, […] que alguém procure os conceitos que organizem essa experiência – um segundo tempo. A supervisão é quando essa pessoa se encontra, se acha capaz de receber uma pessoa a partir disso que ela produziu, ela mesma, como formação suficiente para poder receber uma pessoa. Realmente, é um terceiro tempo: não é só lógico, é cronológico também.
[Paulo] Tem um percurso necessário.
[Dominique] É, tem um salto. Tem um momento que alguém, por causa da sua dor de existir pessoal, vai procurar um sentido, falando com alguém – essa prática do blá-blá-blá que se transforma rapidamente numa prática do sentido, até extrair desse sentido algo que pode ser sacado, em todos os sentidos do termo, e que pode […], portanto, esvaziar suficientemente a neurose para que essa pessoa possa ser disponível para outra pessoa, para receber. Tudo isso é um percurso que demora um certo tempo. O que não evita a questão: mas, então, o que é esta supervisão que tem nas faculdades, por exemplo? Muitas vezes, eu entendo assim: a supervisão para as pessoas que estão em formação de psicologia, talvez, seja um despertar para a dimensão daquilo que não se sabe, a dimensão do inconsciente, que aí pode proporcionar uma análise pessoal, a procura por uma análise pessoal. Mas, nesse momento da supervisão na universidade, a gente não está no escopo de uma supervisão de psicanalista. A supervisão com Freud foi inventada para possibilitar, proporcionar, tornar alguém… produzir para alguém sua própria competência de psicanalista, não de interessado em psicologia. Por isso acho que começa a grande confusão, porque, quando a gente fala de supervisão, a gente fala de supervisão de equipe, que é muito interessante, supervisão de psicólogo, supervisão de qualquer profissional que se encontra com outro ser humano diferente dele. Então, a gente precisa diferenciar o que é uma supervisão para um psicanalista, qual é a exigência… o que eu chamo, a exigência de supervisão para um psicanalista… e o que é uma supervisão para alguém que trabalha com saúde mental.
[Paulo] Você falou dessa questão do não saber, que pode se despertar numa supervisão na universidade, numa faculdade de psicologia, por exemplo. É uma coisa que a gente encontra bastante, quer dizer, pessoas que procuram a supervisão para saber se elas estão “fazendo certo”. E aí é um momento no qual essa pergunta pode ser transformada, talvez, em outra coisa que não precisa ser respondida. Como você pensa isso, esse lugar do saber na supervisão?
[Dominique] Não sei se sou um bom exemplo, mas, enfim, eu penso muitas coisas sobre isso [risos]. […] Eu estou acolhendo uma pessoa que está pedindo uma supervisão e, a priori, eu não sei quem é essa pessoa, eu não sei se ela é analista, eu não vou saber. Eu não vou saber, começo com isto: eu não vou saber e ela vai me explicar, ela vai me dizer o que ela faz quando ela escuta outra pessoa. De uma certa forma, eu não vou saber nada, ela que vai me fazer saber o que ela faz quando ela está “atendendo”, recebendo, escutando uma outra pessoa. Realmente, este [é] o ponto um: eu não sei nada, eu não sei nada [sobre] o que você faz, você vai me explicar. É por isso que, na minha prática de supervisão, eu, em geral, acolho as pessoas independentemente de sua origem de “formação”. Eu trabalhei com muita gente do Sedes [Sapientiae], até da Sociedade [Brasileira de Psicanálise], de todos os grupos que existem em São Paulo… porque eu não sei o que é ser psicanalista, [a pessoa] vai me explicar e, se ela não conseguir me explicar, ela vai saber também em que contradições ela mesma está. Não sei se está contente com minha resposta.
[Paulo] Sim, me interessa, sim. Tem algo, justamente… [a supervisão] não gira em torno de um saber que está preestabelecido, pelo que você está dizendo, e também esse saber não está do lado do supervisor.
[Dominique] Sim, inclusive isso gera muito desconforto para a pessoa, muito desconforto, e muitas vezes as pessoas não gostam de fazer a supervisão aqui. Porque, justamente, [há] esta proposta: “me explica o que você faz? O que é para você escutar alguém? O que é a fala, o que é a dor? O que você está escutando, o que você está lendo nesse texto? E qual é a sua parte? Como você está se metendo, como você está se intrometendo? A partir de que interesse você está se metendo e se intrometendo nesse texto que vem se depositar aqui, no seu consultório?”. Então, é isso, […] volto à ideia da supervisão [como] terceiro lugar. Quando uma pessoa vem com esta demanda: “me explica o que eu faço?”, eu não posso responder. Aí, para mim, vem muito a sensação de impostora, porque… claro que a gente tem também um tratamento da angústia do “sempre jovem analista” […] e do extremamente corajoso, da pessoa corajosa que vem fazer a supervisão. Mesmo que possa parecer um pouco brutal a maneira de responder “me explica o que você faz?”, tem que ter um tratamento da angústia que isso causa. O tratamento da angústia que isso causa pode produzir, para mim, uma tentativa de produzir um saber sobre o que ela [a pessoa] fala, sobre o que ela está dizendo. Eu, pessoalmente, me sinto nesse momento que eu chamo de “impostora”: como se eu mesma, em vez de cuidar do discurso analítico que essa pessoa poderia, eventualmente, fazer funcionar na sua clínica, eu me vejo numa posição de […] saber universitário.
[Paulo] Saber como resistência, né?
[Dominique] Sim, sim, você usou essa expressão. Realmente, o melhor que se pode fazer numa supervisão, com uma pessoa que não sabe exatamente o que está fazendo e que vem pedir informação sobre o que ela mesma está fazendo na sua própria experiência, é ela ficar com vontade de estudar. É uma coisa que eu tento produzir: “vai saber”, “o que você sabe sobre aquilo que você faz?”. Fica aquela angústia, então “procure saber”. Seria muito feio dizer “vai fazer análise”, porque […] é feito e idiota também [dizer] “vai te analisar”. Mas é todo um manejo, com essa demanda de supervisão que a gente não sabe supervisão de quê, de remeter ao tripé, de remeter [a] que esse terceiro tempo deva surgir como uma exigência num terceiro tempo. Eu gosto bastante… as pessoas se horripilam um pouco com essa palavra exigência. Lacan fala: “a supervisão se impõe”. Então vêm as bandeiras lacanianas: “mas o analista se autoriza por si mesmo, como assim a supervisão se impõe?”. Parece paradoxal, mas, na verdade, é absolutamente coerente. É justamente porque o que autoriza um psicanalista, enquanto psicanalista, é não ter outro que o suporte, que o acompanhe, que o console da sua solidão; é justamente porque ele banca essa autorização do ato, que ele precisa, depois… e no momento do ato ele está absolutamente sozinho e fora do pensamento… que ele precisa, depois, num outro tempo, formalizar, formular, explicar para ele mesmo, construir para ele mesmo o que a experiência e o imprevisível, o insólito, o inapreensível da experiência fizeram acontecer. Justamente por causa de o analista se autorizar por si mesmo que a supervisão se impõe. Ela se impõe como uma formalização, não como uma procura de um saber dos livros e do outro. Uma formalização do seu próprio agir psicanalítico, em resposta à transferência e manejo da transferência.
[Paulo] Ela funcionaria como uma espécie de um momento de pesquisa também, né?
[Dominique] É isso que não entendi na sua pergunta, porque talvez eu não esteja ligada à essa história de pesquisa. Mas não é uma pesquisa, é uma urgência. É uma urgência de dar nome àquilo… de dar nome e produzir a lógica daquilo que surgiu na experiência. Porque o que surge na experiência é a imprevisibilidade dos movimentos transferenciais do paciente. E o que surge como urgência no manejo da transferência é, ao mesmo tempo, acolher e, simultaneamente, fazer objeção ao enredamento transferencial. Essa duplicidade… às vezes eu falava que o analista é um agente duplo… essa duplicidade da posição do analista, que se produz em ato… não tem uma estratégia pensada antes… é isso que depois precisa se contar, se explicar. Inclusive, a supervisão serve para isso, porque, muitas vezes, na história da supervisão, surgiu a questão: mas o que se supervisiona? O analista? Porque eu já saí da universidade, da supervisão dos estudantes de psicologia, então, vamos à questão: o que se supervisiona, o ato do analista ou a construção do caso? De uma certa forma, vai junto também, porque o analista capaz de construir o caso… construir o caso não sei se é uma boa expressão, mas construir a lógica do que ele extrai do que se diz para ele… o analista desperto, que não está dormindo, que está escutando o que se diz e também, nas brechas, o que não se diz e o que está sendo pedido para ele, para preencher os lugares de vazio dos enunciados. Então, [a supervisão] não é uma pesquisa, é uma formalização, é uma formalização que não está nos livros, mas que está na ponta da língua do analista quando ele tem a coragem de vir se explicar para ele mesmo. E por isso o que conta não é o que o supervisor vai falar: o que conta é o que ele vai poder ouvir do que ele está dizendo para um terceiro. Eu acho que o supervisor… eu acho que eu sei esta expressão, o supervisor suficientemente bom, retomando a expressão do Winnicott, da mãe suficientemente boa… o supervisor suficientemente bom é aquele que se cala o mais possível: a melhor coisa que ele pode fazer é se calar para abrir o espaço da formalização que o supervisionando pode fazer e escutar dele mesmo: “nossa, estou fazendo isso!”, “eu fiz isso”, “eu não fiz”, “escutei isso”, “não escutei”. Aí tem uma volta… a operatividade da colocação em questão do ato do analista… volto para o caso, para o sujeito que está em questão. Muitas vezes, as pessoas vêm a uma supervisão dizendo “estou preocupado com a direção dessa análise” e, ao falarem do sujeito em questão, [é] como se a direção se evidencia: “está acontecendo isso, neste momento”. Então, a construção, na própria supervisão, vai dar a direção.
[Paulo] Curiosamente, eu estava pensando… quando eu falo de pesquisa, eu estava pensando muito próximo do que você falou.
[Dominique] Eu fiquei impressionada com esse termo, [coloquei] um ponto de interrogação.
[Paulo] Pesquisa, para mim, nesse sentido de… esse momento de nomeação fazendo parte da pesquisa. Bom, você tem alguma coisa que te coloca em direção à experiência e, depois, o que você recolhe dessa experiência faz parte da pesquisa.
[Dominique] Tem um mal-entendido, no meio lacaniano, que partiu dessa ideia de o psicanalista se autoriza por si mesmo. É como se se eu for fazer supervisão, estou procurando uma autorização. Você vê que o mal-entendido vem das respostas do supervisor que vão se adiantar, não deixando esse silêncio criar a sua própria dinâmica de fala e de construção, se você se adiantar e dar uma “aulinha”. Tenho muita dificuldade também, ainda é uma interrogação para mim, sobre o supervisor dando diagnóstico, é muito complicado, porque, realmente, o diagnóstico se produz na transferência. Claro que se pode, numa supervisão, extrair um diagnóstico, mas estou muito desconfiada de uma supervisão onde [alguém vai] fazer uma supervisão e sai com um diagnóstico. Porque tem alguma coisa que também surge numa construção do caso.
[Vera] Nesse texto ao qual a gente está se referindo, à sua publicação sobre a formação do psicanalista e a supervisão, ao capítulo da supervisão, você vai falar: uma análise encontra no passe um lugar de formalização, um lugar de transmissão para o público, para sair desse espaço solipsista “eu com a minha análise”. Então, nem todo mundo passa pelo passe, mas está colocado num horizonte de que é possível que isso seja transmissível. Depois, você vai falar dos cartéis, que também é um lugar mais importante, para Lacan, de transmissão da teoria, na qual aquele que está estudando teria que produzir algo a partir de uma questão pessoal. E você põe, nessa linha, a supervisão também como algo que me soa um pouco análogo ao passe, quer dizer, poder transmitir sobre isso que… você vai tirando a quem está em formação qualquer possibilidade de passividade ou de fechamento. Eu nunca tinha feito essa associação tão clara com esses três horizontes do tripé.
[Dominique] Na verdade, é a minha interrogação a priori ao fazer esse livro e ao falar da supervisão dentro desse livro, porque minha interrogação… já que eu estou engajada numa escola de psicanálise e de acordo com o que eu escutei do ensino de Lacan… a minha questão é: como fica esse famoso tripé, em coerência com o ensino de Lacan, [ao se] encontrar com a orientação lacaniana? Retomando essa questão, também, [de] que a supervisão parecia sempre um assunto desqualificado […], por causa de eu autorizo de mim mesmo, não preciso me autorizar com outro e porque é um assunto não mal falado, é bem falado, todo mundo fala bem da supervisão, mas pouco falado. E aí, de repente, parece que tem vários livros de todas as instituições… de repente, alguém fala: “vamos falar da supervisão”. Como se tivesse um certo pudor dos analistas em falar da supervisão, porque, justamente, é uma experiência que não está formalizada, que tem esses equívocos possíveis, esses mal-entendidos possíveis de se transformar ou na análise pessoal, ou numa aula, num discurso universitário. Então, a minha tentativa… a minha intenção, que é uma tentativa também… mas minha intenção é a de revalorizar a supervisão para todos os sempre jovens analistas. Revalorizar e entender […] a coerência, com a orientação lacaniana do que é a análise pessoal… e uma análise pessoal que é finita e que pode se transmitir via o passe, que pode transmitir a operação que ela produziu no sujeito, a subversão que ela produziu no sujeito… isso é inefável mas pode-se falar. É muito beckettiano isso: não dá para dizer, mas vamos dizer; não dá para avançar, mas vamos avançar, com esse passe possível, essa passagem possível para transmissão do que é uma análise. O cartel, justamente, essa posição ativa de apropriação do saber, não apenas de reprodução de um saber. É por isso que gosto do lado da supervisão e é por isso que eu gosto de chamar, talvez, o supervisionando como passador, passador da sua própria experiência, que precisa de um testemunho para vir a dizer isso. O supervisor, ele é nada mais do que um pretexto e um incentivador. A sua função, no dispositivo, é de incentivar: seja o passador. Também é inefável: Lacan, no discurso à EFP [École Freudienne de Paris], fala da aporia do relato, l’aporie du compte-rendu, que, inclusive, essa aporia é o impasse de poder colocar em palavras o que acontece nessa experiência, que é […] como a palavra em alemão: a experiência, ao mesmo tempo, experimenta, experimentação, Erfahrung, travessia, Erlebnis, vivência. Como transformar isso, que é uma experiência no momento, que está atravessando alguma coisa, num relato? É impossível. Frente a essa impossibilidade, se convoca, [se] chama alguém que possa ser passador dessa experiência. Interessante porque ele vem buscar um analista: Freud fala [de] um analista mais experimentado; os analistas didatas na IPA [International Psychoanalytical Association]; os AMEs, os Analistas Membros de Escola, nas escolas lacanianas, os analistas que têm um discurso universitário… bom, a gente vai procurar alguém que sabe. Na verdade, esse “alguém que sabe” não é o saber da universidade, é o saber do Unbewusste, o saber do não sabido, o saber do insu. Procurar alguém capaz de escutar um passador ou [de] escutar um passante para quem eu vou… mais nessa dimensão do passador, do Unbewusste, que tem que ocorrer numa supervisão, mais do que num troca-troca de sabedorias conceituais. Inclusive, a gente sabe que elas são variáveis, segundo a doxa do grupo, segundo a doxa da época.
[Paulo] Nesse sentido, você acha que esse efeito pode ser produzido não só para quem está falando, mas para quem está escutando também? Estou trazendo isso para a ideia da supervisão em grupo. Você acha que, a partir do relato e, mais do que do relato, das questões que o analista está trazendo, um outro analista que está escutando também está vulnerável a esse efeito do discurso analítico que se produz para quem está falando?
[Dominique] É complicada essa questão, porque a gente não pode dizer que não tem efeito, porque a gente pratica isso em instituição. Mas a gente sabe também que é limitado, limitado por diversos motivos, [como] a experiência de angústia de alguém que está fazendo a supervisão. Porque ele está se pondo à prova, ele está pondo à prova o que ele faz em ato na psicanálise. Essa experiência de angústia é muito singular: a minha angústia pode ter efeito sobre você, mas, enfim, eu vou dizer que talvez o mais valioso numa experiência de supervisão seja a angústia e o que vai se produzir a partir da angústia. É a angústia na supervisão, porque a angústia, dentro da análise, não tem validade operativa para o analista do analisante. Mas, na supervisão, ela pode ter um valor de fazer avançar, de fazer dar um giro na pergunta e na formalização de meu ato. Por isso que [a supervisão] é [entre] dois. Só que, realmente, a gente pratica [a supervisão em grupo]: eu faço esse trabalho em instituição, eu vejo os efeitos e os limites também. Vou falar dos limites da supervisão em grupo que às vezes acontecem quando tem uma exposição de um caso ou um relato de um caso em público, que aí se transforma numa supervisão, mas numa supervisão no pior sentido: cada um chegando com seu achismo sobre o que o outro fez ou não fez. Não sei se você tem essa experiência da supervisão em grupo que, quando a gente embarca numa coisa assim, a gente não sabe mais como parar.
[Paulo] Todo mundo tem uma opinião.
[Dominique] Isso. Vira a coisa da opinião. Agora, eu sempre falo que a supervisão… eu, pessoalmente, faço isto: quando eu estou angustiada, quando eu estou com sono e quando eu estou […] entediada. Para mim, são os três sinais de alerta: tédio, angústia, sono. [É quando] eu falo: bom, preciso fazer alguma coisa, está alguma coisa errada, preciso fazer alguma coisa, preciso entender um pouco melhor o que está acontecendo para mim nesse caso. Talvez, a supervisão em grupo, os efeitos de passador… [quando] se transforma num troca-troca de opinião, é terrível… mas ela, uma supervisão em grupo, pode ter um efeito passador e pode ter efeito de despertar, de fazer alguém se interrogar sobre sua angústia e sobre o tédio. Também acho que a supervisão em grupo, o melhor que ela pode fazer é fazer [com] que a pessoa queira falar numa supervisão individual, entendeu? Que nem quando a gente acolhe a terapia de casal, o que a gente chama de terapia de casal: o melhor que pode acontecer é que cada um possa buscar [individualmente]… [risos]. Mas não sei se respondi à tua pergunta.
[Paulo] Sim. Porque, quando você traz esse efeito do passador, acho que localiza bem, é bem esse o ponto que eu estava [colocando] como questão. Quer dizer, é a mesma coisa com a apresentação, com o relato de caso: a gente consegue questionar a nossa escuta a partir da nossa escuta de um relato de um caso de outra analista, de outra pessoa. E acho que, muitas vezes, quando a supervisão em grupo consegue produzir isso, ela é efetivamente muito interessante […]. Aí tem o desdobramento para o próprio supervisor.
[Dominique] Sim, é interessante, por isso que a gente gosta… em geral, as pessoas gostam… da supervisão. E gostam porque a pessoa está no trabalho, porque é um exercício interessante de ver alguém no trabalho de ser passador e de poder estar escutando alguma coisa, permitindo que a pessoa escute o que ela está fazendo. Eu falei “em geral, as pessoas gostam”… quando funciona [risos].
[Vera] A gente teve oportunidade de conversar numa outra ocasião, Dominique, na qual você falou algo que não saiu da minha cabeça e que hoje volta na ideia de por que tanta resistência em pensar a questão da supervisão nas próprias instituições ou pensar [a questão] do tripé, justamente essa parte que é tão fundamental na formação. E como ela aparece, juntando com o que vocês tavam falando, como furo. […] Estou me referindo à ideia de que: você vai ao seu analista, o seu analista não te responde, não te responde à demanda, mas aí você vai numa supervisão onde o supervisor responde. O quanto “eu quero muito fazer uma supervisão” pode estar também como um furo até institucional, no qual você entra num circuito onde aparecem ali… queria que você comentasse isto, porque achei muito interessante: a supervisão como lugar de resposta à sua própria análise, na qual você fica ali no vazio, mas você vai na supervisão e a pessoa te oferece… não sei se você acha tudo bem falar sobre isso.
[Dominique] Sim, sim, é por isso que eu falo que a gente precisa falar de supervisão, justamente para que não tenha um mau uso da supervisão, seja fora das instituições, ou nas instituições, ou numa própria escola, como a Escola do Fórum do Campo Lacaniano. Realmente, na crise de 1998, vocês não tinham nem nascido… foi uma crise que produziu o Fórum do Campo Lacaniano, mas que continua, porque eu acho que a diferença entre as instituições do Campo Freudiano, a AMP [Associação Mundial de Psicanálise]… ela [a crise] continua, vinte e poucos anos depois, não sei quanto tempo, a gente está tentando reduzi-la. Mas, nessa crise, tinha uma coisa que era flagrante: as pessoas faziam análise com a Colette Soler e iam fazer supervisão com o Miller, ou vice-versa, mas era mais dessa forma, porque o Miller respondia e a Colette Soller se calava [risos]. E aí as pessoas faziam um manejo… eu estou falando do século passado, mas eu imagino que no século do Freud também devia ter isso e imagino que tenha essa inclinação do supervisor a relaxar um pouco, porque eles estão se calando, calando, calando o dia inteiro. De repente, chega um simpático supervisionando e aí a gente começa a bater papo. Aí o simpático supervisionando vai fazer análise e encontra um analista que se cala, antipático. Tem uma certa simpatia que rola na supervisão e que se opõe à antipatia do psicanalista ou apatia – que pode ser interpretada como antipatia – do psicanalista em relação ao analisante. Então, também rola esse mau uso da supervisão.
[Vera] Eu estou entendendo que, se a gente vai na supervisão falar de si, em passar o seu próprio trabalho e o que acontece ali, essa resposta é uma resposta sobre o supervisionando, aquela que ele não obtém em outro lugar. Acho isso muito curioso, muito interessante.
[Dominique] Exatamente, é isso.
[Paulo] E tem algo cíclico nisso. […] Quando Lacan, no Seminário 1 e 2, na crítica que ele faz ao Kris, é a crítica ao analista que responde, que fala: “não, eu vou te contar o que aconteceu, o que está acontecendo”. Entra justamente na questão do saber. Aí parece que isso que se tira – o analista não faz mais isso – volta na supervisão, quer dizer, esse conforto da resposta.
[Dominique] O conforto da resposta. É por isso que, quando a supervisão responde de uma maneira que desconforta, fica chato [risos]. Tem uma coisa do Eitingon que é engraçada… eu não encontrei a referência, acho que está no meu livro… ele que fundou o Instituto de Berlim, com aquelas regras, aquelas frequências: ele mesmo tinha feito análise passeando com Freud, na volta do lago, não sei o quê… ele tinha feito alguns meses de passeio. Uma psicanálise peripatética [risos].
[Paulo] Isso é muito curioso, eu acho que os analistas têm muito medo da institucionalização e acham que têm que burocratizar porque estão institucionalizando, aí têm que criar regras porque senão fogem do controle. Para mim, parece uma falta de aposta nos sujeitos que estão ali fazendo, querendo construir junto.
[Dominique] É por isso que eu friso esta questão da exigência, que não é uma coisa burocrática, não é uma coisa de cartilha. Quando Lacan fala “a supervisão se impõe” […], é justamente por causa do inapreensível do ato analítico que ela se impõe [a] uma exigência ética. Inclusive eu sempre cito esta frase, devem ter me ouvido falar mil vezes, esta frase do Seminário Sinthome: que um analista, para funcionar, precisa ser dois – um para estar na poltrona e outro para explicar o que ele faz. Tem essa exigência. Tem uma frase de Lacan, num dos últimos seminários também, onde ele fala do ensino dele como experiência de supervisão. É isto que acho importante preservar em uma supervisão: ele fala que o enunciado do que acontece na prática, na experiência clínica, ao ouvir o enunciado do que acontece na experiência clínica, tem efeito de supervisão. “Que eu testemunho de uma experiência que especifiquei como sendo analítica e minha, é suposto como verídico. Ver até onde essa experiência me conduz pelo seu enunciado, tem valor de supervisão” – em francês, contrôle. E ele fala: “eu sei o termo que estou usando”, [supervisão] tem valor de contrôle.
[Vera] Só para aproveitar que a gente está finalizando aqui com o tempo. É só uma última questão, porque você também cita Lacan falando que é para deixar o supervisionando fazer, encorajá-lo a seguir seu movimento: “vai dando corda na pipa”. Fico pensando se ele não fala “dar corda” para ver se a pessoa se enforca ou, enfim, deixar a pessoa assumir plenamente o que ela tem para trazer da clínica dela. Achei curioso, tem a ver com o quê? Evitar que entenda, descobrir o estilo do supervisionando?
[Dominique] Está aí também uma frase muito do final do ensino de Lacan. Porque a gente sabe que a própria experiência da psicanálise faz Lacan modificar os conceitos que ordenam, que dão contorno à experiência clínica. Eu acho que essa é uma frase extraída da própria experiência dele de supervisão. Ele fala… eu retomo a frase do Lacan: “no começo, eu os deixo fazer qualquer coisa, que nem rinoceronte”. Inclusive, ele usa esta palavra “que nem rinoceronte”, não sei se ele fala de uma loja de porcelana, mas, enfim. Depois, num segundo tempo: “eu os faço perceber os equívocos”, como eles estão… os equívocos, as equivocações. Eu acho que essa menção de Lacan é coerente com o analista se autoriza de si mesmo. “Vai, faz”, “o que você faz?”, “o que você faz quando você faz o analista?”. Aí esbarrou, o paciente se apaixonou por você, pulou no seu pescoço, que nem para o Breuer […]: não é “eu te autorizo a te autorizar”, mas “vai lá”, o que é essa autorização que te faz colocar nessa encrenca que é o manejo da transferência? Onde se esbarra nos limites que vão se transformar em equivocação, que forçosamente vão se transformar em equivocação, equivocação do sujeito suposto saber? Esbarrando nessa equivocação [é] que você vai se orientar. Então, de novo, ele põe o cara para trabalhar: “vai lá!”, “e agora?”, “e agora?”. Esbarrando nessa meleca que faz… não sei, você pensou em alguma coisa sobre essa história de o Lacan falar isso?
[Paulo] É muito alinhado com o que você está dizendo, de não deixar a supervisão entrar nessa espécie de lugar de garantia. É um pouco o que acontece quando alguém procura a supervisão como algo que vai referendar o que está fazendo, vai falar se está certo ou se está errado, o que entra nesse lugar de uma garantia, quer dizer: tem alguém que vai me dizer se aquilo que estou fazendo é analítico, [se] é isso que devo estar fazendo. É uma posição inecupável, que não pode ser ocupada de nenhuma maneira. Tem essa radicalidade do lugar do supervisor: não se trata de julgar nada do que se escuta enquanto supervisor, porque não é disso que se trata.
[Dominique] Tem outras questões interessantes que sempre rolam: fazer supervisão com seu analista ou não? Fazer supervisão com diversos analistas? A história de fazer supervisão com vários analistas é justificável pelo fato de [ser] bom ouvir várias vozes, vários saberes diferentes, ou [de ser] importante você se expor com diversas pessoas e não ficar num laço íntimo com alguém que vai te orientar. Você vê que cada coisa, a gente pode… dependendo como se pratica. Fazer supervisão com o analista pode ser extremamente interessante e válido em algum momento da análise; em algum outro momento, impossível. Você vê que não tem regra, mas, a cada momento, a gente precisa tomar cuidado [sobre] como a gente vai usar… porque a gente tem coisas bizarras às vezes. Alguém que vem fazer uma supervisão e que fala “eu já supervisionei esse caso com fulano, ciclano, beltrano, quero saber o que você vai me dizer”. Isso é um pouco complicado, mas, ao mesmo tempo, você pode dizer “essa pessoa fez esse exercício com diversas pessoas” e aí você pode […] relançar a pergunta: “[com] cada um, como você escutou alguma coisa diferente do seu manejo desse caso?”.
[Paulo] Tem o lugar do trabalho. Quem está trabalhando na supervisão? Tem essa inversão: o que você tem a me dizer sobre esse caso que estou trazendo? Não é bem por aí…
[Dominique] É, de novo o lugar do trabalho, por isso que a gente fala o trabalho do analisante. E tem outra coisa que é importante saber, é importante dizer: que o lugar da supervisão tem que ser mantido numa escola de psicanálise justamente como mais um lugar onde o suposto analista vai se pôr na posição de analisando. Mais um lugar, porque, realmente, para tentar diminuir todos os mal-entendidos em relação a uma escola de psicanálise… uma escola de psicanálise é feita para isto: para colocar as pessoas e os supostos analistas nos seus devidos lugares, ou seja, de permanecerem no lugar de analisando, dentro e fora das escolas de psicanálise. Analisando, ou seja: o lugar do trabalhador.
[Vera] Do jovem analista, né?
[Dominique] Do jovem analista. […] Infelizmente a gente não se dispõe muito a isso, por causa de muitas coisas, mas a minha melhor maneira de me sentir uma jovem analista é fazer supervisão. A gente não se dispõe, mas eu quero dizer também uma coisa, eu não posso terminar sem falar disso, da importância da escola de psicanálise, para mim, para me colocar numa posição de jovem analista. Me colocar numa posição de analista sempre ao trabalho de me interrogar, de me expor… não de me expor, assim, [para] dar uma palestra, fazer uma coisa… mas de me expor numa continuidade, o tempo inteiro: estou me expondo numa reunião, estou me expondo num cartel, estou me expondo num curso, estou me expondo num seminário. Expor, justamente, é esse não saber que faz trabalhar e que faz essa ignorância trabalhar um saber possível sobre a psicanálise. Então, realmente, a palavra de ordem de uma escola é: “todos ignorantes”. Todos ignorantes, vamos fazer cartel, vamos fazer supervisão. E, quando precisar, vamos fazer análise de novo.
Graduada em psicologia pela Universidade Paul Valéry, em Montpellier, com especialização em Psicopatologia Clínica na Universidade de Aix Marseille. Radicada no Brasil desde 1983, iniciou sua formação analítica na França e pratica a psicanálise em São Paulo. Desde 1989, participa ativamente da implantação da psicanálise de orientação lacaniana, e em 1998 foi membro fundadora do movimento dos Fóruns do Campo Lacaniano no Brasil. Publica regularmente artigos em periódicos e revistas nacionais e internacionais, sendo coautora, com Mauro Mendes Dias, de Por causa do pior (Illuminuras, 2005), organizadora de Os paradoxos da repetição (Annablume, 2014) e autora de A (de)formação do psicanalista (Escuta, 2016).
Psicanalista, professor convidado no Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social (PST-IPUSP) e professor do Instituto Gerar de Psicanálise. Membro da International Society of Psychoanalysis and Philosophy (SIPP-ISPP), do Laboratório de Teoria Social, Filosofia e Psicanálise (LATESFIP-USP) e da Associação Universitária de Pesquisa em Psicopatologia Fundamental (AUPPF). Coordenador do Núcleo de Estudos e Trabalhos Terapêuticos (NETT). Editor de Lacuna – Uma Revista de Psicanálise, da revista Traço e editor associado da Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental.
Psicanalista, mestre e doutora em Psicologia pela Universidade de São Paulo, membra do Instituto Sedes Sapientiae e da Escola do Fórum do Campo Lacaniano, autora dos livros “Mal-estar na maternidade” (Zagodoni, 2020), “Criar filhos no século XXI” (Contexto, 2019), “Manifesto antimaternalista” (Zahar, 2023) e uma das organizadoras da Coleção “Psicanálise & Parentalidade”(Autêntica, 2020), colunista da Folha de São Paulo e diretora do Instituto Gerar de Psicanálise.