quando eu comecei com essa ideia, meio louca diga-se de passagem, de fazer da psicanálise um trabalho porque me fazia muito sentido e eu conseguia ver isso na minha própria vida, já que fazia análise havia alguns anos, desconfiava que não seria fácil. eu que mal conseguia pagar minha própria análise, mas sortudamente encontrei uma analista sensível também às barreiras reais (um beijo pra minha amiga Talita que dividiu a analista dela comigo, eu não tenho esse desprendimento), estava me metendo (o sintoma e seus sentidos sexuais) em uma arena já conhecida da maioria dos brasileiros: a distância abissal sócio-racial que marca esse país.
ninguém me contou explicitamente e por vezes ensaiei escrever sobre o caminho aŕduo, solitário e angustiante que pode ser embarcar – nesse barco – que predominantemente era só ocupado por pessoas brancas e ricas. eu não queria, quando ensaiava escrever esse desabafo/serviço de utilidade pública, – e continuo não querendo – desencorajar ninguém que como eu deseja fazer da psicanálise um trabalho, mas eu venho me perguntando: quem pode fazer da psicanálise um trabalho?
ao meu ver teria sido de bom tom e me pouparia de alguns constrangimentos se alguém no início do meu percurso revelasse (sim, essa parte é omitida dos círculos psicanalíticos de forma direta) que, veja bem, vou repetir o que falei acima, se você não pertence a um grupo sócio racial privilegiado o bagulho vai ser loko. vou além, pra mim seria um gesto de honestidade e dever cívico dos que compoẽm esse grupo de indivíduos que gozam de algumas facilidades para tornar a psicanálise seu fazer, nos contar que para tal objetivo, ser psicanalista, além do desejo e, que coisa, se há ele, o desejo e só ele, não necessariamente você vai vivê-lo, é preciso sendo uma coisa que, freud dizia que é preciso ser falada: dinheiro. mas, não é isso que escuto, ou melhor não escuto, nos círculos psicanalíticos. digo isso porque ao lhe relatar minhas angústias derivadas da dificuldade financeira para sustentar o investimento que é preciso ser feito em uma formação psicanalítica, um um psicanalista me disse: “se há desejo, ele opera”. ou seja, se eu desejasse muito iria conseguir pagar análise, formação, supervisão, aluguel de sala e, quem sabe, comer. em gênio da lâmpada será que ele acredita? tenho minhas razões pra acreditar que sim. qualquer semelhança com o discurso falacioso da meritocracia não é mera coincidência. então, seguindo essa lógica, se eu não conseguisse o feito de ser psicanalista é porque eu não desejava? a meritocracia do desejo que habita nos círculos psicanalíticos saúda a meritocracia que habita no neoliberalismo.
pois bem, retomando minha convocação aos meus amigos (até tenho vários e não é nada pessoal (minha vingança quando denuncio alguma fala/ação racista ou classista e a pessoa devolve com o “não é pessoal”), psicanalistas conhecidos e reconhecidos pela comunidade psicanalítica, instituições de transmissão, psicanalistas não famosos que ocupam lugares nas formações diversas, psicanalistas supervisores, do dever deles de, ao transmitir e compartilhar seus saberes, contar que o percurso de formação e desformação do psicanalista não será leve se você não desfruta de uma boa quantia de dinheiro para o investimento que a clínica exige. o dinheiro não garante que o sujeito não vá encontrar percalços e que bom que eles, os percalços, são inerentes à vida seja de um rico ou de um pobre – mas, convenhamos, ter dinheiro é mais que meio caminho andado.
uma vez perguntaram para um psicanalista famoso – eu particularmente gosto muito dele e respeito sua trajetória – se ele já pensou em desistir da psicanálise. ele responde elencando uma série de impasses que se colocaram em seu percurso psicanalítico. mas, em nenhum momento ele levanta a questão financeira como um dos impasses da clínica. claro, esse recorte social não lhe pertence, falando disso diretamente: ele não teve dificuldades financeiras para fazer da psicanálise um trabalho no que tange à sustentação econômica necessária para isso. bom, na resposta pelo menos ele não conta isso e aí que eu vejo que há um problema. se alguém aí estiver lendo, mas escrevo acima de tudo para mim mesma, e deparar-se com essas dificuldades talvez se sinta, eu me senti, a prima pobre da família que não vai nos passeios, nas viagens e sempre está com fome, mas não pode falar porque ninguém mais parece estar com a barriga roncando, essa jornada será um tanto solitária. sorte que gosto de mim, um pouco.
descortinar ou levantar o tapete e mostrar o que está escondido, principalmente as pessoas que gozam de uma herança sócio/racial – em um mundo montado pelo sistema escravagista – ao meu ver representaria uma posição honesta e cidadã já que a grande maioria dos brasileiros não desfruta de tais privilégios, eu não me sentiria tão desconfortável por reivindicar, em um formato de trabalho grupal nos moldes de uma cooperativa, a minha parte porque, incrivelmente, para estar nas reuniões do grupo ou até mesmo para atender as pessoas, eu preciso de dinheiro para me deslocar de transporte público ou eu saberia que uma parte da minha energia psíquica não seria para me dedicar a teoria que solidificasse mais minha clínica, mas se destinaria a quebrar a cabeça e não dormir pensando em como pagar a análise e/ou o aluguel da sala ao mesmo tempo que faço um esforço imenso para que meu desejo de ter mais pacientes para uma clínica sólida e, consequentemente, para aliviar essa tensão financeira, não atravessasse minha clínica prejudicando a grande responsabilidade de escutar sujeitos.
venho de outra área e quando num rompante vi que aquilo não estava fazendo mais sentido, fui só com a cara e a coragem, sem herança ou pais ricos nem seguro desemprego, atrás do que parecia ter mais a ver comigo. veja, não comecei a fazer análise para me conhecer, pensar minha existência, eu sofria e precisava fazer algo para aquilo pelo menos diminuísse, eu nunca fui muito esperançosa mesmo, não tinha pretensões de ser curada, acho difícil ser curado de humanidade. e foi assim sem nenhuma intenção, no percurso da minha análise, que meu sintoma foi fazendo sentido e a sublimação dele pelo trabalho não ornava mais.
Freud diz que os sintomas privam os sujeitos de amar e trabalhar, ele só “esqueceu” que trabalhar, e aqui faço um recorte para o meu ofício, pressupõe condições materiais para isso, e sendo eu uma pessoa não branca em um país estruturado pelo racismo isso ganha proporções ainda maiores. como nem tudo são flores e para que a ditadura da meritocracia do desejo deixe de operar, penso que meu relato/desabafo pode de alguma forma contemplar os que estão às voltas nesse malabarismo que é o assobiar e chupar cana do fazer psicanalítico, entre pagar contas básicas e fazer uma formação. “se até pra sonhar tem entrave, a felicidade do branco é plena, a felicidade do preto é quase”, canta Emicida. quase eu sou uma psicanalista. Mas, por que diriam os defensores da meritocracia do desejo, por que não desejas suficiente Roberta?
viver de desejo pode ser um privilégio no Brasil, em outros países também, mas neste trabalho me refiro ao Brasil. os paladinos do desejo podem também argumentar que nenhum sujeito consegue viver plenamente de seus desejos, já que o desejo é desejar e quando se chega perto ele se afasta e assim caminha-se em busca de algo sempre inalcançável porque nunca satisfeito. Na teoria está tudo certo, Lacan os abençoe caros irmãos do real, simbólico e imaginário. Mas, na vida dos mortais comuns, na vida que não é vista por quem está no andar de cima, do “vou a pé pra ter o de amanhã”, no cotidiano do kilo contado, o bagulho é loko.
desisti do jornalismo – mais precisamente da assessoria de imprensa que de jornalismo não tem nada – porque trabalhar para que uma empresa que já acumula riqueza ter mais espaço na mídia e com isso ter ainda mais capital não tem a ver com minha concepção de jornalismo. pois bem, eu queria ser a Eliane Brum dos anos 2000. não fui (no tamanho do texto eu acho que consigo alcançá-la) então engoli seco minha idealização. até parece, minha analista que diga o tanto de trabalho que fazemos para reconstruir os castelos de areia das idealizações – e ressignifiquei a palavra: da palavra escrita passei para palavra falada pelo sujeito e escutada pelo analista, eu me coloquei em uma série de trabalhos, os famosos bicos, para poder sustentar o meu desejo. olha só o desejo não se sustenta sozinho, e para isso fiz faxina, recreação infantil em condomínio de luxo, fui caixa de bebidas e comidas em casas de shows, vendi brigadeiro, auxiliei a dona de uma floricultura, cuidei de uma idosa, trabalhei em um cartório eleitoral, fiz transcrição de rodas de conversa justamente para um grupo de psicanalistas da Instituição na qual hoje eu estudo – uma das mais importantes na transmissão da psicanálise há mais de 30 anos, mas que ainda não conseguiu instituir uma políticas de cotas. tudo isso somado à aposta da analista de que valia a pena sustentar comigo meu desejo.
adivinhe quem são os psicanalistas formados por essa instituição? pois é, o óbvio precisa ser dito: gente branca com consultório em Perdizes e Pinheiros e em um mercado de transferências comum das concentrações de renda e raça acaba-se, infelizmente, escutando sujeitos com os mesmos pertencimentos, claro que não com as mesmas questões, afinal a subjetividade é uma das belezas mais infinitas que há. porém, considerando que as subjetividades são formadas e atravessadas pelo campo da cultura, como bem vimos com Freud no início da sua descoberta do inconsciente ao se inclinar e ouvir mulheres em um contexto social em que suas falas não eram ouvidas, pois não eram escutadas devido à violência ao patriarcado vigente – não que hoje isso não opere – cada época com seus sintomas.
minha intenção não é hierarquizar os psicanalistas, não considero que os psicanalistas que escutam sujeitos com pertencimentos sócio/raciais semelhantes aos seus sejam ruins por conta disso, até porque como frisei acima o inconsciente tem uma capacidade muito criativa de produzir conflitos e sintomas, mas me pego incomodada pensando o que é escutar sujeitos “a sua imagem e semelhança”, mais do que isso: como podemos escutar, para além das nossas condições estabelecidas, os não estabelecidos, os que estão à margem? que analistas são formados em instituições com profissionais da saúde que desconhecem a realidade da grande maioria dos brasileiros, pois em suas formações teórica-clínicas poucos tiveram contato com as políticas públicas de saúde mental?
meu percurso na psicanálise, como já foi dito, tem início em meu sofrimento e em um desejo de que ele cessasse. ali conseguia enxergar que algo na minha história primordial culminou na forma como eu me relacionava com os outros e comigo mesmo, mas o que havia escondido de mim mesma? que desencontros nos encontros parentais nos deixam carregadas de marcas indeléveis? até onde podem ir as figuras de cuidado para a formação de um sujeito? como uma criança responde, com um psiquismo em formação, às interações de uma outra subjetividade marcada também pelas marcas de outrem? o que pode o sujeito diante dos atravessamentos sócio-culturais? como é possível repensar, a partir da construção única e encantadora do humano de Freud, uma psicanálise aplicada à nossa realidade, a um país constituído sob o aniquilamento de formas de vida que não eram tidas como civilizadas – os povos originários – e que em nome de tal civilização sequestra e violenta africanas e africanos negando a humanidade e lhes roubando algo muito caro à psicanálise: a palavra? nomes foram mudados, idiomas foram abolidos, cantos foram proibidos, rezas foram demonizadas. o que é o sujeito sem a função simbólica que a linguagem opera e que o vincula ao laço social?
tais perguntas me motivam ao estudo da psicanálise e neste segundo ano do curso Conflito e Sintoma, cansada como muitos dos quadradinhos do Zoom, reafirmei o caráter político da psicanálise e como esse saber pode, ao caminhar junto com o sujeito, revisitar rotas de seu passado como sujeito marcado por sua história individual também situado em seu tempo histórico. esse relato/manifesto é para que os que seguirem pela psicanálise se enveredem pela ética de um sujeito enlaçado na trama social
“Nosso sonho era o sonho da psicanálise – tudo o que ela tinha para oferecer”, disse Anna Freud, “não apenas indivíduos, mas escolas e universidades e hospitais e tribunais e ‘escolas de reforma’ que trabalhavam com ‘delinquentes’ e agências de serviço social”. A clínica gratuita desenvolvida em nome da Sociedade Psicanalítica de Viena, o ambulatório, floresceu de forma inesperada. Foi inaugurada em 1922 para pessoas de todas as classes e ocupações sociais; escolas e clubes, professores, médicos de escolas e pediatras particulares encaminhavam crianças, enquanto grupo de trabalhadores de fora da cidade, imigrantes, membros de gangues, boêmios e criados preenchiam a lista de pacientes. Os analistas haviam seguido o apelo de Freud de 1918 em Budapeste e colocaram a psicanálise em sua nova vereda.”
As clínicas públicas de Freud, Elizabeth Ann Danto, 2005.
Formada em jornalismo pela Universidade Metodista de São Paulo (UMESP), pós-graduada em Sociopsicologia pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP). Integra a equipe de Acompanhamento Terapêutico do Instituto A Casa. Possui aperfeiçoamento no curso “Clínica Psicanalítica – Conflito e Sintoma“ pelo Instituto Sedes Sapientiae na qual integrou o Grupo de Trabalho A Cor do Mal estar – Psicanálise e Racismo. Na pandemia do Covid-19 criou o Projeto Escuta 60+ de escuta e acolhimento solidário às idosas e idosos de todo o país.