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07_O trabalho do gênero no fazer psicanalítico

Patricia Porchat

Atualmente o trabalho clínico com as identidades trans no Brasil se beneficia do avanço que ocorreu no campo psicanalítico, nos últimos anos, quanto à compreensão da importância do conceito de gênero. Por “identidades trans” entendemos um conjunto de identidades de gênero autopercebidas ou autorreferidas que incluem as pessoas travestis, transexuais, transgênero, intersexo, não binárias, homem trans, mulheres trans, simplesmente “trans” ou outras, que diferem das identidades referidas como cisgêneras – homem e mulher – comumente atribuídas às pessoas por ocasião do nascimento, em função do órgão genital aparente.

O conceito de gênero na psicanálise brasileira foi introduzido principalmente através da divulgação da obra de Judith Butler, Problemas de gênero – feminismo e subversão da identidade, aqui publicado no ano de 2003.  Dá-se início, a partir dessa data, a um movimento de atração e repulsa – facilmente atestado em palestras, congressos e publicações psicanalíticas – ao conceito de gênero, aos estudos de gênero e à teoria queer. Percebia-se, por um lado, a necessidade de demarcar fronteiras entre a psicanálise e o campo do gênero, impondo uma hierarquia entre os saberes em relação às experiências das identidades trans. Por outro lado, havia analistas que se dispunham a hibridar a psicanálise com esse campo teórico-conceitual – o do gênero – ressaltando o vácuo existente no universo psicanalítico referente a essas experiências[1]. Não se tratava exatamente de um vácuo. O nome do psiquiatra e psicanalista americano Robert Stoller esteve na origem da introdução do termo “identidade de gênero” na década de 1960 para se referir a pessoas, incialmente crianças, que foram diagnosticadas como transexuais e cujo “transexualismo” decorria de um distúrbio do ego[2]. Posteriormente Jacques Lacan e Catherine Millot deixaram sua marca ao circunscrever essas experiências ao campo da psicose, nas décadas de 1970 e 1980[3].

O vácuo, a que me refiro, advinha do fato de que as diferentes experiências relativas às identidades de gênero, em toda a sua complexidade, não se adequavam aos diagnósticos de distúrbio do ego ou psicose (Bento, 2006). O termo gênero, como atribuição ou descrição de características de comportamento observável e traços de personalidade tinha uma longa história de investigação e debate no campo da antropologia, da sociologia, da história, da biologia, da literatura e das teorias e movimentos feministas, que não estava sendo considerada. Cerca de quinze anos foram necessários, entre 2005 e 2020, para consolidar a aceitação do termo gênero como operador conceitual que permite importantes reflexões no campo psicanalítico. Demorou-se a perceber que gênero servia à investigação das diferentes feminilidades e masculinidades, aí incluídas as formas de amar e o exercício da sexualidade ; servia à análise das relações entre homens e mulheres cis, impactando na compreensão da violência contra as mulheres e à análise da relação desigual entre homens e mulheres no interior da família, no ambiente de trabalho e na sociedade, em geral (Tajer, 2022); servia para investigar como as relações de poder tomam forma no psiquismo; servia igualmente para tornar visível outros marcadores sociais que interferiam na constituição subjetiva, como as questões raciais, de classe, de religião, de capacitismo e de colonialidade (Kilomba, 2019; Butler, apud Taylor, 2008); servia para analisar as relações de poder e de violência entre pessoas de gênero conforme e as de gênero não conforme, ou gênero dissidentes; servia, finalmente, para compreender as identidades trans dentro de uma perspectiva identitária e não diagnóstica (Cunha, 2021).

 Assumir o conceito de gênero, no entanto, exige um esforço de trabalho que acredito ser individual. Semelhante ao que acontece na psicanálise, o conceito só faz sentido a partir da própria experiência.  Podemos nos sensibilizar e reconhecer a importância da provocação que é feita pelos estudos de gênero e pelos estudos queer. Há igualmente gatilhos que disparam a reflexão sobre o gênero de cada um/a/x de nós, que podem vir da análise pessoal, da vida cotidiana, da arte e da literatura e, finalmente, da clínica. Quando analistas se põem a trabalhar sobre o gênero, frequentemente percorrem um caminho que, atualmente, é bem demarcado: começam pela definição freudiana do que é o sexual nos Três Ensaios sobre a Teoria Sexual, questionam o complexo de Édipo como forma exclusiva de subjetivação, passam pela distinção entre identidade e identificação, dando a essa última um lugar de destaque na construção do eu e do gênero, discutem o que é a diferença sexual, as interpretações possíveis das tábuas de sexuação de Lacan e, por vezes, adotam propostas abrangentes (Laplanche, 2015) ou inventam soluções interessantes (Ambra, 2022). Esse percurso mostra a potência de certos conceitos psicanalíticos para trabalhar com a dissidência sexual e de gênero, bem como questiona os dogmatismos que levam a preconceitos absurdos contra pessoas LGBTQIA+ (Ayouch, 2015a).

Meu percurso com o conceito de gênero teve como ponto de partida a clínica com pacientes gays, me levando a questionar as diferentes homossexualidades e masculinidades. Quase por acaso me deparei com a obra de Butler e dela extraí o conceito de gênero com o qual atualmente trabalho, mas sem deixar de fazer, em paralelo com o percurso butleriano, o “caminho de Santiago de Compostela” descrito acima, de psicanalistas que se deixaram tocar pelo gênero. Não cabe fornecer aqui o resultado desse caminho pois ele é vivido por cada psicanalista de modo singular. Ele pode ser encontrado de modo parcial ou completo em váries autores (Cossi, 2011; Porchat, 2014; Ayouch, 2014 e 2015b; Bourlez, 2018; Cavalheiro & Silva, 2020; Cunha, 2021; Pombo, 2021; Ambra, 2022), mas a leitura sozinha não substitui o esforço de trabalho necessário a cada um/a/x. De minha parte, apresentarei meu percurso butleriano como um convite para que outrxs o experimentem.

Destaco quatro pontos referentes ao gênero na obra de Butler que me ajudam a trabalhar na clínica:

  1. gênero como um ato performativo
  2. seres abjetos como referência para a compreensão do que é gênero
  3. a concepção do que “pode” um corpo
  4. a ideia de que gênero é um outro
 

 

O gênero como ato performativo

Para Butler, quando nascemos e nos declaram “menino” ou “menina”, instala-se uma espécie de “verdade” para a nossa existência.  Hoje nem é preciso esperar este momento, pois a interpretação do médico de um exame de imagem durante a gestação já faz este papel antes mesmo do nascimento. O chá de revelação, inventado nos Estados Unidos há quase quinze anos e que logo chegou ao Brasil, apenas reitera o desejo parental, familiar e social de instalação de uma verdade sobre o gênero e a força dessa instalação. Trata-se de uma receita social de invenção de uma substância, a essência de gênero. Existe, a partir daí, uma crença na existência de uma substância ou essência de homem e de uma substância ou essência de mulher. Seremos socialmente ditos “homens” ou “mulheres”.  A partir desse momento inicial, o gênero continua a ser produzido e mantido por uma série de palavras ou gestos que, ao serem expressos, criam continuamente uma realidade. Essa é a própria ideia de gênero como um ato performativo[4]. Os atos de gênero (gestos e palavras), repetidos de uma forma estilizada, produzem um efeito ontológico, levam a crer na existência de seres homens e seres mulheres. Substâncias ou essências homens e substâncias ou essências mulheres. Mas trata-se apenas de uma ilusão de substância ou de essência, pois não há “ser”, não há um “fazedor”, não há um “agente” por trás do ato, não há unidade. Há sim uma construção do gênero, que é social, dirigida a um outro, mas não consciente e nem perfeita em sua imitação, incorporação ou repetição do gênero socialmente aprendido. Posteriormente, em Desfazendo Gênero (2004a), Butler situa a possibilidade de falha na repetição do aprendizado social do gênero no corpo e na pulsão, ou seja, um corpo erógeno, cuja “linguagem” e cujos “sinais” produzem um efeito surpresa por não se indexar no repertório estereotipado de gênero oferecido às crianças. Se como disse Caetano Veloso (1984) na música Vaca Profana “De perto ninguém é normal”, podemos dizer que de perto, gênero é singular, ou seja, cada um tem o seu. Butler chega a dizer que existem tantos gêneros quanto pessoas no mundo.

Para Butler o gênero é um ato, uma ação pública que encena significações já estabelecidas socialmente, é um efeito performativo de atos repetidos sem um original ou uma essência. Não expressa nem revela uma identidade preexistente:

o gênero é uma identidade tenuamente constituída no tempo, instituído num espaço externo por meio de uma repetição estilizada de atos. O efeito do gênero se produz pela estilização do corpo e deve ser entendido, consequentemente, como a forma corriqueira pela qual os gestos, movimentos e estilos corporais de vários tipos constituem a ilusão de um eu permanente marcado pelo gênero. (Butler, 2003, p.200, grifos da autora).

O caráter ilusório do gênero é denunciado quando ocorre uma incapacidade de repetir, uma deformidade ou quando se trata de uma paródia, isto é, por exemplo uma performance de drag queen imitando de modo caricato a “mulher”, chegando a ser reconhecida, em sua repetição do gênero feminino, como “mais mulher” do que outras mulheres que estivessem assistindo a sua performance na plateia. Os gêneros são performances sociais, sem originais ou cópias. A ideia de um gênero original e um gênero que o copiasse perde o sentido porque o “homem” e a “mulher” de “verdade” têm de assumir o gênero da mesma forma: por intermédio da reiteração de atos.  Todos temos que performar o gênero cotidianamente para fazer crer à sociedade e a nós mesmos que “somos” um gênero A ou B, X ou Y, conforme os estereótipos. Mas, de modo geral, não pensamos nisso o tempo todo e isso pode ou não funcionar no sentido do que cada microsociedade espera. Se deixamos de performar o gênero esperado, a aparência de gênero se desfaz pois, afinal, enquanto estereótipo de gênero (o “homem”, a “mulher”), ele não possui uma essência da qual emanaria. Não é à toa que rapidamente surgem dúvidas e gozações quanto à feminilidade ou à masculinidade de alguém que não reproduz os estereótipos de gênero. 

 Através da concepção de gênero como ato performativo, gêneros ditos normais e gênero dissidentes se encontram no mesmo patamar. Desfaz-se a necessidade de coerência interna às identidades sexuais (ancoradas no binarismo homem-mulher) e da classificação dessas identidades segundo graus de normalidade e patologia. Não há seres mais ou menos verdadeiros ou mais ou menos patológicos do que outros por se aproximarem ou se distanciarem de um ideal, seja anatômico, seja psicossocial. Vejamos o que diz Butler:

É precisamente nas relações arbitrárias entre esses atos que se encontram as possibilidades de transformação do gênero, na possibilidade da incapacidade de repetir, numa deformidade, ou numa repetição parodística que denuncie o efeito fantasístico da identidade permanente como uma construção politicamente tênue.(…) (Butler, 2003, p.201). 

 

Os seres abjetos como referência para a compreensão do que é gênero

Butler discute gênero a partir dos indivíduos que põem em xeque os limites e as normas reguladoras do campo de inteligibilidade, um campo que nos impõe as possiblidades lógicas de existência sexual e identitária, demarcando, nessa operação, as fronteiras da exclusão. Ao formular o conceito de gênero, quer dar conta dos seres abjetos.  Trata-se de uma atitude política. Trata-se de legitimar a vida e dar direito de cidadania ao “lixo” e à “merda” social, concomitantemente fazendo uma análise das normas e relações de poder que produziram e continuam a produzir o “resto” social. É por isso que seu ponto de partida são os gêneros que não se enquadram como “gêneros inteligíveis”, ou seja, que não apresentam a coerência esperada entre sexo anatômico, desejo, identidade sexual e prática sexual. Trata-se de uma estratégia que exige de quem a lê comprometer-se com a ideia de que, caso recuse a proposta butleriana e tome como ponto de partida os gêneros em sua estrutura binária e estável, estaria participando de uma definição de ser humano que produz os gêneros não-inteligíveis como menos humanos, inumanos ou humanamente inconcebíveis[5]. 

Em Problemas de gênero, o conceito de abjeção é tomado emprestado da psicanalista Julia Kristeva, construindo uma comparação entre a produção individual e a produção social de elementos que causam nojo e horror. Em Kristeva (1982), vemos como cada indivíduo produz – expulsa e descarta sua abjeção, ou seja, seus excessos, os fluidos corporais que o enojam, e que, por vezes, estão atrelados ao gozo. Em última instância, produzem sua doença e sua morte. O corpo apodrecido é o avesso do corpo vivo. O corpo vivo contém, produz e expulsa de si o corpo apodrecido.

 Butler toma essa ideia para pensar a produção social dos corpos travestis, transexuais, intersexo, homossexuais, ou seja, os corpos excluídos da sociedade pela matriz cisheterossexual. Alguns anos mais tarde, Butler esclarece a noção de corpos abjetos dizendo que são os corpos cujas vidas não são consideradas vidas e cuja materialidade é entendida como não importante. Cada grupo humano, com sua própria matriz de inteligibilidade, produz suas exclusões, isto é, seus seres/corpos abjetos Entre eles Butler cita: não-ocidentais, pobres, pacientes psiquiátricos, deficientes físicos, refugiados libaneses, turcos, os prisioneiros da Baía de Guantánamo (cf. Prins & Meijer, 2002, p. 7; Butler, 2004b). De acordo com Butler, os corpos abjetos não são inteligíveis e não tem existência legítima, o que nos permite compreender que essa lista pode ser expandida em função das inúmeras situações sociais de opressão. 

Dois elementos desse raciocínio me parecem fundamentais para se trabalhar com as questões de gênero. O primeiro é o de que somos vidas precárias, tema que Butler desenvolve em diversos trabalhos, mas que aqui significa levar a sério a produção de nossa própria abjeção, em última instância, a finitude – nossa morte.  É por causa de nossa precariedade que precisamos contar com a solidariedade dos outros. Esse é um ponto de igualdade entre os seres humanos. Nossa fragilidade física e existencial, exige que nos reconheçamos a todos como humanos. É uma atitude ética.

O segundo elemento é o fato de que aquelxs que se colocam do lado do preconceito, da violência e mesmo do extermínio dos seres/corpos abjetos, e que frequentemente disfrutam de privilégios advindos de sua cor de pele, gênero ou classe social, parecem não se dar conta (esquecem, ou mesmo negam) de movimentos em maior ou menor escala ao longo da história que fazem bascular as matrizes de inteligibilidade e a consequente produção de opressão sobre os excluídos dessas mesmas matrizes. Novamente vem à tona a ideia de que a fragilidade física e existencial pode se instaurar quando menos se espera. A meu ver, isso novamente pede que reconheçamos a todos como humanos e que o façamos em nome de uma atitude ética.

Em resumo, acredito que a compreensão do conceito de gênero deve se alargar continuamente de modo a incluir as diversas manifestações que emanam do desencontro entre o desejo e o repertório linguístico-cultural de uma sociedade. Do ponto de vista psicanalítico isso não deveria ser difícil de compreender, todavia essa postura esbarra em questões pessoais, que podem ser identificadas em reações contratransferenciais (Hansbury, 2017; Porchat & Santos, 2021), além de esbarrar na concepção de corpo, como comentaremos a seguir. 

 

A concepção do que “pode” um corpo

Trabalhar com questões de gênero exige uma reflexão sobre o corpo. Butler em certo momento de sua obra substitui a busca pela definição do que é um corpo pela pergunta sobre o que pode um corpo. Os leitores de Problemas de gênero consideraram que Butler teria banido “sexo” e ignorado ou negado a materialidade do corpo, dando lugar exclusivo ao “gênero”, sendo este performativo. Isso a leva a buscar uma resposta sobre o que seria o corpo. Em Corpos que Importam ela dirá que são as normas reguladoras, através de sua repetição, que materializam o “sexo” através do discurso, assim como, materializam o corpo em função de outras exigências normativas. Mas a reiteração é necessária porque a materialização nunca é completa. Além disso, o corpo não aceita totalmente aquilo que lhe é imposto (Butler, 2002). Mas seria, então, o corpo construído pelo discurso?  Em Desfazendo o Gênero, Butler dirá que o corpo não é redutível à linguagem, e acrescenta que a linguagem emerge do corpo, excedendo as intenções do sujeito. O corpo tem seus próprios sinais, seus próprios significantes, de um modo que permanecem em boa parte inconsciente”. (Butler, 2004a, p.198). Dirá, finalmente, que até certo ponto: “…somos dirigidos por aquilo que não conhecemos e não podemos conhecer e esta pulsão (Trieb) é precisamente o que não se reduz à biologia e nem à cultura, mas sempre o lugar de sua densa convergência.” (2004a, p.15). A psicanálise lhe propôs um corpo que mostra que as normas não exercem um controle definitivo sobre ele.

Em 2008 vemos a pergunta se deslocar para o que pode um corpo. Esta é uma pergunta pelas capacidades e ações que o corpo pode ou consegue realizar. Um dos disparadores para essa pergunta é a deficiência física e a violência que ela suscita, debatidas no documentário Examined life (Taylor, 2008), em que Butler conversa com a pintora e ativista americana pelo direito dos deficientes físicos e dos animais, Sunaura Taylor, que nasceu com uma doença congênita rara que se caracteriza por múltiplas contraturas articulares e, em seu caso, inclui fraqueza muscular. Butler destaca como a violência contra pessoas deficientes, a partir de relatos de sua interlocutora, se assemelha à violência sofrida por pessoas de gêneros e sexualidades dissidentes, em função daquilo que fazem com seus corpos, ou seja, como caminham, como usam seus quadris, e o que fazem com partes do seu corpo, como sua boca e seu ânus, por exemplo. 

Pode-se dizer, então, que o pode um corpo recebe uma resposta a partir do encontro de duas posturas. Primeiramente, levar às últimas consequências a ideia de um corpo-prazer, construído a partir da concepção freudiana de um corpo pulsional marcado pelo outro parental, um corpo originalmente livre das normas de gênero, embora apenas parcialmente livre do enodamento entre as normas de gênero e as fantasias parentais daquelxs que manipulam e erogenizam esse corpo em sua primeira fase da vida. Em segundo lugar, igualmente levar às últimas consequências uma importante ideia sobre o corpo vinda de Espinoza, um dos filósofos de referência de Butler, e à qual ela recorre no documentário: 

O fato é que ninguém determinou, até agora, o que pode o corpo, isto é, a experiência a ninguém ensinou, até agora, o que o corpo – exclusivamente pelas leis da natureza enquanto considerada apenas corporalmente, sem que seja determinado pela mente – pode e o que não pode fazer. (Espinoza, Ética III, Prop. 2, 2007, p. 101). 

Levar ás últimas consequências essa ideia é conceder total liberdade ao uso do corpo, de modo a caminhar no sentido de infinitas possibilidades, independentemente de seu alcance. 

A partir das posturas acima mencionadas, concebemos o corpo entre o sofrimento e a criatividade (Porchat, 2014), legitimando sua busca por dar vazão às marcas do desejo e aos esboços de representação daquilo que dele emerge e que nunca se esgota. Em relação às intervenções e modificações corporais e também aos usos do corpo, encontram-se vários sentidos, claro que sempre provisórios:  aplacar a angústia, libertar-se das malhas de captura do Outro,  inventar-se a si mesmo, desejar ser decifrado, adequar-se ou inadequar-se às normas de gênero etc. 

 

A ideia de que gênero é um outro 

Em Giving an account of oneself, publicado em 2005, Butler avança na direção da psicanálise para forjar o que nos parece ser uma teoria de gênero mais refinada. Afinal, como encontrar uma resposta para a produção do gênero sem atribuir a essa produção o puro e simples acaso ou, pelo contrário, uma agência, uma escolha livre e consciente por uma determinada performance de gênero? Sua busca a leva à construção de uma interlocução com a teoria da sedução generalizada de Jean Laplanche e o conceito de “significantes enigmáticos”. Laplanche aponta a existência de um estado “infantil” das funções psíquicas do bebê que seriam impróprias para uma compreensão mais elaborada e adequada do que se passa em seu entorno. O efeito daquilo que ele/a/x escuta sem exatamente entender, mas que, todavia, lhe é endereçado, é o que Laplanche tentará abarcar com a proposta de uma sedução generalizada: um abuso da linguagem. Em sua teoria, a presença do outro sobre o sujeito é inicialmente esmagadora e excessiva, mas principalmente excessiva de uma maneira enigmática. O outro surge como uma espécie de causa ou fundamento do inconsciente através do que implanta ou insinua e o inconsciente se constrói como uma forma de manejar esse excesso. (Laplanche, 1988).

O mundo adulto da sexualidade inconsciente penetra como mensagens e significantes que se impõem para a criança e produzem impressões excessivas e não domináveis às quais ela não se adapta imediatamente. Um objeto originariamente externo se instala como causa ou fonte das pulsões sexuais. O Eu se encontra estrangeiro para si próprio no que diz respeito aos impulsos mais elementares. O abjeto, nesse sentido, reside inicialmente no próprio inconsciente (cf. Laplanche, apud Butler, 2005). A partir daqui podemos dizer que Butler encontra em Laplanche a origem das pulsões e consegue assim dar sentido a sua teoria de gênero à luz da psicanálise. Aquilo que em nós é incoerente, indizível e subversivo na repetição das imposições sociais de gênero vem, finalmente, do outro. É a partir dele que nos constituímos, que constituímos nosso Eu corporal (Butler, 2005, p. 71). Pedindo licença a Rimbaud, assim como o Eu, gênero é um outro. 

Butler enreda a teoria da sedução generalizada e seus significantes enigmáticos à questão da narrativa de si no contexto transferencial e do reconhecimento. Para Butler, a narrativa funciona num contexto da transferência como um deslocamento retórico da linguagem que busca agir sobre o outro, motivado por um desejo que toma uma forma alegórica e se encena na transferência. Narrar, não é falar de si, mas é agir sobre o analista, sem que necessariamente compreendamos o que está acontecendo (Butler, p.2005, p. 68). O gênero também se encena nessa ação.

Quanto ao reconhecimento, trata-se de poder reconhecer e ser reconhecido somente sob a condição de estar desorientado acerca de si mesmo, ter falhado em alcançar uma identidade pessoal. É isso o que dá ao analista a condição de não exigir coerência do outro, de escapar à violência dessa exigência e de saber que qualquer narrativa de si terá de fracassar para se aproximar de ser verdadeira. É isso que permite ao analista ver no contexto transferencial, onde o gênero se encena, a incoerência existencial do sujeito como produto de sua constituição a partir de um outro que lhe inundou e subjugou com significantes enigmáticos. 

Sendo o gênero atuado, pois não existe uma substância ou essência, dele não se pode esperar coerência no sentido da cisheteronormatividade. Butler não celebra a incoerência, apenas aponta que a incoerência estabelece o modo pelo qual somos constituídos em relação a um outro, derivados e sustentados por um mundo social que está além de nós e é anterior a nós. O fracasso na repetição do gênero e as interrupções da narrativa servem apenas para evidenciar que gênero coerente não existe, assim como não existe um eu coerente ou mesmo uma narrativa coerente de um eu. O que se espera é que o analista esteja aberto para acolher o gênero e que questione as condições e os limites em que o gênero foi e continua a ser construído.

Butler eleve a transferência à condição de poder legitimar a ininteligibilidade do gênero. A transferência é declarada por Butler como uma prática ética porque suporta a ininteligibilidade do inconsciente. A transferência é um dos lugares primordiais para a apresentação do sujeito estrangeiro a si mesmo.  Este estrangeiro é o outro que nos habita.

 

Conclusão

Gênero continua pondo em movimento a clínica psicanalítica. O trabalho é exigente e observamos desdobramentos na medida em que pessoas trans começam a escrever do lugar de pacientes e de analistas. Isso ajudou na produção da despatologização das identidades trans em alguns âmbitos psi, embora em outros ainda assistamos a tentativas realizadas por analistas de operar um deslocamento nosográfico, quase sugerindo um movimento de adequação a um discurso politicamente correto, por exemplo, ao mudar a transexualidade da psicose para a histeria (Jorge & Travassos, 2018; Roudinesco, 2022). Um segundo movimento pode ser percebido com o interesse pelo tema da análise da contratransferência (Hansbury, 2017; Porchat & Santos, 2021) e, um terceiro, com as perspectivas feministas propondo uma interlocução entre a psicanálise e os saberes parciais e localizados, que questionam a universalidade como garantia de objetividade (Santos, no prelo). A psicanálise tem se renovada e reinventada. Afinal, como disse Freud em 1926, em A questão da análise leiga, ela deve ser “open to revision”.

[1] A ideia de uma psicanálise hibridada com outros saberes desde a sua origem é apresentada por Thamy Ayouch em Psicanálise e hibridez: gênero, colonialidade, subjetivações. São Paulo: Calligraphie, 2019.
[2] Stoller, R.J. Sex and Gender: The Development of Masculinity and Femininity foi publicado originalmente em 1968.
[3]
Lacan aborda o tema em 1971, em O Seminário, Livro 18, De um discurso que não fosse semblante e em O Seminário, Livro 19, …..ou pior. Millot publica em 1982 o livro Extrasexo. São Paulo: Escuta, 1992.
[4] Para uma melhor discussão sobre a origem da concepção butleriana de gênero como ato performativo a partir da Austin e Derrida, sugiro a leitura de Psicanálise e Transexualismo: desconstruindo gêneros e patologias com Judith Butler (Porchat, 2014).
[5] Butler dirá que sempre existe um perigo ao se definir o que é humano, pois a construção do humano é uma operação diferencial que produz o mais ou menos “humano”, o inumano, o humanamente inconcebível.

referências

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Patricia Porchat

Psicóloga e psicanalista. Professora do curso de Psicologia da UNESP/Bauru, coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Educação Sexual da UNESP/Araraquara e professora do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Desenvolvimento e Aprendizagem da UNESP/Bauru. Pós-doutorado na Universidade Paris Diderot. Doutorado em Psicologia Clínica no Instituto de Psicologia da USP. Pesquisadora do Núcleo de Direitos Humanos e Saúde da População LGBT (NUDHES), do Departamento de Saúde Coletiva da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo. Vice-coordenadora do GT Psicologia e Estudos de Gênero da ANPEPP.