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07_Marca, leitura e escrita: discussões clínicas sobre a ideia de um efeito de cura em Lacan

Guilherme Celio Oliveira Silva

Resumo: O presente artigo retoma o trabalho de tese de doutorado do autor, concentrando-se em uma distinção das ideias de leitura e de escrita na obra de Jacques Lacan, no seminário IX. Leitura estaria ligada a um tipo de escrita que não tem necessariamente a ver com a fala e se relacionaria mais a imaginar algo da ordem do real. Escrita, tratada na sua vertente de elaboração do significante, não poderá ser abandonada por Lacan na sua obra, mas pouco a pouco se restringirá a um modo de funcionamento de gozo específico da experiência do ser falante: o gozo fálico. Através das consequências dessa distinção que o tema de efeito de cura será trabalhado aqui, com o auxílio de duas vinhetas clínicas.

Palavras-chave: Psicanálise; Letra; Efeito de cura; Leitura; Escrita.

Dentre muitos temas tratados, o seminário IX, intitulado L’identification (Lacan, 1961-1962), é um seminário no qual vemos surgir, na obra de Jacques Lacan, uma diferença relativa às concepções de leitura e de escrita. De um lado, ele avança a hipótese do rastro (trace) como leitura e, de outro, desenvolve a concepção de traço unário como forma de escrever o que primeiramente se lê, através de uma ordenação sistemática via significante. Na nossa tese de doutorado (Silva, 2023), partimos da hipótese de que essa diferença implica também uma diferença no entendimento dos efeitos de cura em uma análise, encontrando-se do lado daquilo que se lê um cessar e daquilo que se escreve uma elaboração significante.

Desta feita, é como se houvesse um “primeiro” nível de escrita caracterizado pela leitura, que podemos de antemão denominar como nível de leitura/escrita. Neste “primeiro” nível, estaria em questão o rastro da Coisa apagada (effaçons), a cabeça de touro ofuscada atrás do símbolo (antes de ser letra) Álef ou os riscos sequenciais sobre os ossos no Musée Saint Germain. Seria apenas em um segundo tempo que a associação fonética viria transformar esse “primeiro” nível de leitura/escrita em escrita do significante, ao vincular tais “símbolos” com os sons da fala, nascendo, desta maneira, os alfabetos e a “escrita” (no sentido ordinário do termo).

Essa discussão é muito complexa e ampla. Indico aqui apenas alguns fios, mas deixo como referências outros trabalhos mais minuciosos a respeito (Silva, 2023, 2018). Contudo, faz-se necessário citá-la para adentrarmos propriamente nos problemas deste artigo, quais sejam: 1) o que ao se ler pode se escrever como impossível?; 2) seria suficiente a leitura para lidar com marcas traumáticas? Recuperando alguns pontos da minha tese de doutorado e servindo-me de duas vinhetas clínicas, proponho fazer avançar a discussão no sentido da direção da cura.

 

Discussões em L’identification

O seminário IX é, de fato, um seminário especial ao introduzir questões que serão retomadas e mais bem desenvolvidas somente uma década depois, quando o psicanalista se voltará rigorosamente ao tema da escrita, a partir dos seminários XIX, XX e XXI. Noções tais como escrita em latência na fala ou nascimento da escrita levantam problemas de gravidade na obra e darão trabalho para futuros comentadores de peso, como Jean Allouch (1984) e Gerard Pommier (1993), dentre outros. Cada um, à sua maneira, avançará um raciocínio para interpretá-las e desenvolverá um sistema conceitual para melhor ler o propósito de Lacan.

Em linhas gerais, Pommier trata o Nascimento da Escrita como nascimento da escrita alfabética e defende a hipótese do corte da castração vindo marcar a separação da letra de imagens sagradas – o corte entendido como perda de gozo de um corpo Outro, sobre o qual o corpo narcísico e especular se funda (sobre o seu apagamento). Notemos que o tema do corpo e da imagem é tratado pelo autor para além do aspecto reduzido do imaginário e que ele se inspira na discussão sobre effaçons proposta no dito seminário IX.

Jean Allouch, ao seu turno, se concentra no tema da escrita em latência da fala, ao criar o conceito de transliteração, como leitura que nasce entre dois sistemas de escritas. Defende a hipótese de que Lacan lê com o escrito, de que em todos os avanços, em sua obra, um escrito é formalizado a fim de ler e de dar novos sentidos a escritos e a concepções anteriores. Ao também trabalhar a ideia de effaçons, Allouch define o reenvio de um escrito ao outro a partir do suporte da escrita da fala (Instância da letra). Ou seja: é necessário haver homofonia em potencial; é necessário que o escrito esteja vinculado ao sistema de fala, ao significante. Desta feita, o pas da negação em francês pode ser lido pas de passo. Se o sistema falado não fosse elaborado pela escrita, não haveria homofonia. A associação fonética da letra com os sons da fala (chamada de nascimento da escrita) é, ao mesmo tempo, uma maneira de escrever o significante, de encadeá-lo em uma rede e de deixar na fala aparecer a escrita (de onde a noção de escrita em latência na fala).

Essa parece ser, justamente, uma das grandes diferenças que separa Lacan do filósofo Derrida, sabidamente conhecido pelo trabalho sobre a escrita, tratada como arquiescritura (Derrida, 1967/2011), e pela crítica ao logocentrismo, entendido como a redução da escrita à sua associação com a fala. Parece-nos – e trata-se aqui de uma hipótese avançada na nossa tese – que Lacan, desde o seminário IX, tentará ultrapassar a fala, em direção a uma escrita sem palavras (Lacan, 1972-1973/1999), em direção a uma lógica que ultrapasse o blábláblá da norma fálica; porém, à diferença de Derrida, ele não deixará de dar importância à fala, seja pela sua associação ao meio dizer da verdade, seja pela ideia de deriva, errância e voltas (tours) pelas quais a cura precisa passar através de um falar n’importe quoi na clínica e, particularmente no seminário IX, pela ideia de escrita em latência na fala. Pois sua concepção, no início da década de 1960, é a de que a escrita que independe da fala só passaria paradoxalmente a funcionar como escrita na associação fonética. Cabe sublinhar, contudo, que parece haver uma mudança nesse sentido, se compararmos com os seminários ocorridos especificamente na década de 1970, nos quais a questão da fala se refere principalmente ao problema do gozo, seja na forma do blábláblá da ordenação fálica, seja posteriormente na ideia de lalangue.

Grosso modo, são dessas maneiras que esses dois importantes comentadores interpretam os dilemas surgidos no seminário IX. Está principalmente em questão a separação da escrita e da fala, embora elas duas se misturem nas formulações para poder ser separadas. Avancemos um pouco e voltemo-nos ao texto Lituratterre.

 

Letra litorânea

Lacan (1971/2001), lá quando o tempo e a fronteira se escrevem nas paisagens siberianas, trata a letra como litorânea. Já pude discutir em outro lugar (Silva, 2023) a opção por traduzir littorale por litorânea1, forma adjetivada e flexionada no feminino do nome littoral. O importante é a ideia de fronteira entre dois registros, “figurando-se que um domínio todo inteiro faz para o outro fronteira, disso que são estrangeiros até não serem recíprocos?”2 (Lacan, 1971/2001, p. 14, tradução modificada). Percebemos a insistência da pergunta no final, talvez porque a única maneira de nos aproximarmos da complexidade dessa discussão seja apenas naquilo que dali ressoa. Eis o litoral que figura uma imagem. Essa imagem de borda, litorânea, nos permite imaginar através do uso de palavras de uma língua alguma coisa da ordem do real. “O litoral é a imagem da letra – naquilo em que ela faz fronteira não apenas entre o simbólico e o real, mas, enquanto imagem, com o imaginário também. Litoral é a imagem poética desse enodamento” (Silva, 2023, p. 175).

Lacan avança, no seminário XXI (Lacan, 1973-1974), um modo de trabalhar os três registros enquanto equivalentes, através do qual eles seriam amarrados borromeanamente. A frase imaginar o que haveria de real no simbólico é uma frase que expressa bem esse entendimento. Assim, imaginar adquire uma função a mais do que aquela de uma simples redução escópica, pois sem esse imaginar a ordenação simbólica não seria “capaz”, digamos, de adentrar no real. Trata-se de uma discussão muito interessante, pois, através dela, Lacan recupera o problema da Ética, trabalhado como preço a se pagar pelo desejo no seminário VII (Lacan, 1959-1960/1986), a boa forma soberana aristotélica (Aristóteles, trad., 2004), e acrescenta o problema do gozo, modificando em certo sentido a sua concepção ética. O preço a se pagar pelo desejo terá a ver com um tipo específico de gozo: o gozo fálico. Certamente, trata-se de um nível de experiência do sujeito que não pode ser deixado de lado. Porém, será reduzido na sua própria totalidade, pois não todo gozo dirá doravante respeito à falta fálica. Entrará em questão a formulação sobre a chamada ética do bem dizer, também de inspirações aristotélicas no sentido das virtudes, mas torcida, subvertida para tratar do que não serve para nada.

 

Exemplos clínicos

Por que passar por todo esse desvio, seguindo o propósito do presente artigo? A pergunta se coloca sobre a relação entre o imaginar, a ordenação simbólica e o real. Pois o tema da leitura reenvia a questão ao tema da imagem – isso desde o seminário IX, quando Lacan fala de um apagamento da Coisa. Esse imaginar como aquilo que se lê – ou melhor, como aquilo que se escreve sem palavras – seria a forma mesma dos sonhos, um ouro de tolo daquele que dorme3. Nesse sentido, o que decidiria (tema aristotélico) se a boa forma do imaginar será capaz de demonstrar alguma coisa do real através de uma articulação simbólica?

O que decide sobre as formas dos sonhos, sobre o delírio imagético que segundo Lacan é de ouro e dorme? Acima de tudo – coisa soberana – o que aqui se decide como marca, como traço, se não há tomada de decisão racional no sentido aristotélico? (Silva, 2023, p. 176)

A marca não é produzida por uma maturação, que poderíamos denominar virtuosa, que assim pudesse calcular o seu sentido e a sua extensão. Bem certo, pode-se supor que a marca provém de uma maturação, mas não se trata de uma tomada racional de decisão. Voltemo-nos ao exemplo do luto: diante do que se perdeu, um processo subjetivo se desenvolve marcando, processando subjetivamente aquilo que fora perdido para que algo possa se elaborar quanto à angústia. É assim o sonho de uma paciente, que se produz pouco mais de uma semana após a morte da avó:

Um aluno da escola onde ela trabalhava morrera e seu corpo estava na sala de aula. De repente, uma das crianças diz que ele [o aluno] estava falando. Era como se o corpo ainda tivesse alma e sofresse, dizendo que estava no inferno. Essa paciente vê que havia um microfone no tornozelo por onde a voz saía. A professora da classe então diz que seria necessário matá-lo novamente para ele morrer de vez. A cena se corta e essa paciente se encontra em um apartamento muito grande, com o pé direito muito alto, que seria da avó. Porém, estranha o fato de que nesse apartamento não havia o cheiro do apartamento dela. O sonho acaba.

O sonho se inicia com uma cena de muito sofrimento, em que a voz e a alma se confundem na dor, mas avança e elabora a marca de uma perda: o cheiro característico do apartamento da avó que estranhamente não existia mais. Ao associar, ela conta a tristeza que sentia ao se dar conta de que o cheiro dos biscoitos que a avó sempre fazia, impregnado nas paredes e no ambiente do seu apartamento, com o tempo deixará de existir. “O sonho, desse modo, produz pela perda uma marca: tal qual a voz da avó deixara de existir, o cheiro também deixará” (Silva, 2023, p. 176). Contudo, isso que se marca como o que se perdeu não se perderá; a marca é produzida no lugar mesmo do que falta. A estranha (boa) forma dessa marca no sonho é uma maneira de imaginar, através do simbólico, uma perda real.

A ideia de imaginar através do simbólico alguma coisa do real também permite precisar melhor a diferença citada no início deste artigo quanto à leitura e à escrita: a leitura estará, assim, mais relacionada ao campo do imaginar; enquanto a escrita, ao campo do simbólico. Sejamos ainda mais rigorosos: a leitura é uma imaginação do que haveria de real naquilo que se escreve enquanto simbólico. Pontuemos, entretanto, que a dita escrita aqui se refere apenas à escrita no vertente do significante – escrita que elabora o significante – e não a essa outra forma de escrita, utilizada por Lacan nesse mesmo seminário (Lacan, 1973-1974), como ciência do real. Esse outro nível – que podemos denominar como leitura-escrita – não é essencialmente caracterizado pelo trabalho sobre a fala: é uma escrita que, em princípio, poderia prescindir da fala, uma escrita sem palavras.

Defendo, com isso, que haveria um nível da escrita mais caracterizado pelo que se pode ler do real – ou, se preferirmos, imaginar. Porém, o significante não perderá a importância para Lacan – pois se trata da estruturação do que funciona como uma linguagem, a saber, o que se estrutura à l’insu 4 (qui sait) do sujeito. E, como sabemos, é a letra que servirá como conceito do que escreve a fala (Lacan, 1961-1962). Todavia, haveria esse passo a mais, esse pas de calais: o inconsciente, como uma estrutura significante, encontra seu limite no significante falo – lembremos a discussão sobre a ética. Para atravessar esse limite, para dar um passo a mais, Lacan coloca a questão sobre o gozo suplementar, apostando que, na contingência, algo poderia cessar e se escrever. A minha interpretação é a de que esse escrever a partir do que cessa tem o sentido de ler algo do real, pois não se trataria de reenviar mais uma vez o problema a outros tantos significantes, numa eterna impotência insatisfeita, tal como o significante falo quando levado ao limite. Portanto, esse escrever não tem a ver com o significante, pois, do contrário, nenhum passo novo seria dado. O que Lacan parece articular é que a letra se torna litorânea nesse momento no qual ela ultrapassa a fala, se colocando na fronteira do pas de calais, através do que há escrita no que se dá por satisfeito. Eis aqui o que atrás comentamos sobre o ouro do sonho: a boa forma “soberana” que Lacan não pôde totalmente abandonar do pensamento aristotélico. Para finalizarmos esse ponto da discussão, gostaríamos de propor a seguinte fórmula: é quando a escrita se dá por satisfeita – quando as inúmeras voltas do significante durante uma análise podem cessar – que ela pode ler o real. Uma leitura poética que se produz no atravessamento mesmo da fala.

Prosseguindo com a hipótese – de que, quando a escrita do significante pode cessar para dar lugar a uma leitura que escreve na sua contingência algo do real, há marca: o que se escreve feito leitura é uma marca que não poderá ser alfabetizada –, quero com isso dizer que uma marca não poderá ser escrita de uma outra forma, reenviando o seu sentido em uma cadeia significante. Ela funcionará doravante feito um nome próprio.

Este raciocínio pode funcionar para o que se produz como suficiente, para o que pôde cessar. Porém, o que se passa quando nada parece suficiente em relação a uma marca? Penso aqui no problema de marcas traumáticas. Parece que a direção da cura, aqui, vai no sentido oposto: aquele de permitir falar o inominável, narrar o inarrável. Ou seja: imaginar algo do real, nesse caso, é invasivo, repetitivo e incessante. São necessários a fala, o tempo e um encadeamento significante que permitam a construção de outros lugares para esse sujeito fixado no trauma. É necessário, aqui, algo que podemos, entre muitas aspas, denominar como “letramento”. O seguinte recorte clínico de um caso atendido por mim na Casa do Migrante, em 2017, poderá nos ajudar a melhor pensar nessa questão:

M. era à época um homem de vinte e seis anos, vindo de Burkina Faso como refugiado político. Fora filiado ao partido Democrata, opositor ao governo ditatorial que estava havia vinte e sete anos no poder. Em teoria, o país era uma democracia, fato esse que permitia a existência de alguns partidos de oposição, dentre os quais o partido democrático. Porém, ao se iniciarem manifestações contra uma reforma constitucional que permitiria ao presidente Blaise Compoaré permanecer no poder, o governo reagiu e as reprimiu violentamente, perseguindo e assassinando diversos opositores. Por fim, o presidente renunciou em 2014. Em 2017, depois de novas eleições ocorridas em 2015, o presidente era M. Roch Marc Christian Kaboré. M. vem ao Brasil depois desses acontecimentos, ainda temendo perseguição política e buscando uma vida melhor.

Depois de algumas entrevistas semanais, ele relatou o seguinte sonho:

Sonhou que voltava para o seu país. Ao chegar na sua casa, havia algo estranho: alguém da família tinha morrido. Ele não podia entrar na casa, somente as mulheres podiam tomar conta do corpo. Ele precisava ir direto para o cemitério.

Na sua associação, ele conta que seu pai e um irmão gêmeo morreram numa época próxima, quando M. tinha por volta de oito anos – fato esse que marcou muito a família. A partir disso, sua mãe sustentara a casa, sem receber ajuda da família paterna. Nesse momento de refúgio em um país estrangeiro, M. estava tendo muitos sonhos de angústia com o pai e com esse irmão morto. Além disso, não conseguia fazer amizades com as pessoas da casa (Casa do Migrante).

Acompanhando-o havia algumas semanas, a partir do sonho e de suas associações, propus a seguinte interpretação: de acordo com o que ele me contara em outros encontros, parecia que havia sido a mãe quem lidara com os mortos, com a ausência, após o falecimento do pai. O que era estranho no sonho era que, diante disso, sobrava para ele apenas um caminho: o cemitério.

Ao escutar isso, M. faz algumas associações: diz que o irmão mais velho, vivo, contava que o pai, antes de morrer, repetia sempre a frase: Juste le travail rend libre. Sem adentrar no fato de essa frase ter sido usada pelos nazistas, como na entrada de Auschwitz, intervenho. M. estava excessivamente angustiado por não conseguir um trabalho no Brasil, o que parecia contribuir para essa situação de desamparo, associada à identificação com o pai e o irmão morto. Assim, digo: C’est vrai, le travail peut rendre libre. C’est une phrase qui vient comme une sorte d’héritage de votre père. Mais… ça ne veut pas forcement dire que si vous n’avez pas de travail pour l’instant vous deviez vous sentir prisonnier5. E ele responde : C’est vrai ce que vous dites, il faut que j’arrête de me sentir comme ça, que je m’arrête de m’isoler il faut que je fasse de nouveaux amis, de nouveaux liens ici! 6

Identificado a esse pai e irmão mortos, M. só via duas alternativas que o pudessem livrar da situação em que se encontrava: uma demanda de ajuda que direcionava a mim, analista, depositando uma esperança demasiada de que eu pudesse resolver a sua situação (como a mãe teria feito diante da morte do pai); ou encontrar um emprego. Bem certo, conseguir um emprego poderia ajudá-lo, mas o fato de não conseguir o angustiava, gerando insônia e o fechando. A frase que enunciou depois da intervenção parece apontar para uma nova possibilidade: novos laços que o retirassem dessa posição de isolamento através da qual permanecia na demanda de ajuda. Não deixa de ser curioso que a frase repetida pelo pai tenha sido usada pelos nazistas. Provavelmente, essa frase fora recolhida por acaso da nuvem simbólica da cultura humana e servia a esse homem como valor, sem ligação direta com o nazismo. Porém, na sua fantasia, o destino ao qual M. parecia colado se mostrava muito próximo daquele que adentrava num campo de extermínio: ou o trabalho, ou a morte. Destino esse que o fazia “trabalhar” obsessivamente em torno dessa angústia, produzindo um gozo muito sofrido e paralisante.

Somado a essa história familiar, estava também em questão para M. o trauma do terror da perseguição política. Vira amigos mortos, corpos nas ruas depois da repressão policial e, por vezes, sentira que poderia ter sido pego. Havia se passado alguns anos desde tudo isso e o seu país estava um pouco mais estável com as novas eleições de Kaboré; todavia, M. não acreditava ser possível voltar a ter uma vida normal em Burkina Faso. De onde partiu a decisão de vir para o Brasil e buscar algo novo. Os sonhos com seu pai e irmão se iniciaram depois de ter chegado ao Brasil. E há um fato interessante, de alguma forma contingencial, que o fizera escolher este país: o futebol. Durante a sua atuação política, uma das atividades que realizava era a organização de torneios de futebol para meninos (adolescentes e crianças). Em seu país, esses campeonatos são chamados de Maracanãs, tal qual o conhecido estádio da cidade do Rio de Janeiro (RJ). Ele, que vivera uma perda prematura do pai, sentia-se satisfeito no contato com esses jovens, acreditando que os maracanãs e o esporte tinham muito a lhes ensinar.

A sua vinda ao Brasil, mais os sonhos de angústia, evidenciam um trabalho subjetivo de “letramento” de uma situação traumática: a contingência de o Brasil ser o país do futebol, com o seu grande Maracanã, surge como uma possibilidade de elaborar o terror da proximidade da morte. Além da ausência do pai, ressoava o fundo terrível de uma pergunta quando da morte do irmão gêmeo: poderia ter sido eu no lugar dele? Tal como os amigos mortos durante as perseguições, poderia ter sido eu? Se, durante sua atuação política, M. encontrava satisfação em ensinar valores para meninos através do futebol, vir para o Brasil surge como uma aposta subjetiva para tratar não só da coincidência inquietante da perda prematura do pai e do irmão gêmeo, mas também do terror da morte próxima que levara amigos.

No exemplo do sonho de elaboração do luto, falamos da marca como escrevendo algo do que se poderia ler do real: uma perda. Qual é, nesse sentido, a diferença entre uma situação traumática de um refugiado e uma marca que se elabora em um luto? Esta pergunta nos ajudará a trazer, para o primeiro plano, o tema do efeito de cura. Ora, de partida há uma diferença clara: no exemplo do luto da avó, a marca daquilo que se perde vem escrever na sua leitura algo da ordem do impossível – cessa de não se escrever. É porque diante da perda algo pôde cessar que houve a contingência da leitura. Porém, no caso da vivência traumática de um refugiado, a marca do poderia ter sido eu? não cessa de se escrever. Trata-se da lógica do necessário – sem que algo tenha podido cessar do trauma, o terror da proximidade da morte se inscreve ininterruptamente. Quando falamos da vinda de M. para o Brasil e dos sonhos contados enquanto um trabalho de “letramento”, estamos considerando que a marca, aqui, surge em uma relação de signo: representa alguma Coisa para alguém. Tal qual a ruptura do aparelho psíquico por das Ding, esta marca se insere na vida desse homem sem poder ser lida – ela se escreve ininterruptamente sem se fazer cessar. O trabalho que nomeamos de “letramento” vem como uma maneira de escrever o que não cessa de se escrever, para que possa ser lido de um modo diferente. Narrar o inenarrável. Isso se dá, por exemplo, na interpretação do sonho: não ter trabalho não precisa significar morrer. Há toda uma cadeia de significantes que se insere em torno desse núcleo traumático, recuperando sua história de vida e sua decisão de vir para o Brasil – feita, como sabemos, a partir (também) de algo da ordem do desejo: país dos maracanãs. Esse “letramento” aparece no mesmo sentido da letra que elabora o significante: para que haja uma leitura que faça alguma coisa cessar, são necessárias, antes, escrita e maturação. Podemos assim dizer que o efeito de cura se dá na leitura de algo que cessa de não se escrever. O que cessa pode se escrever na sua leitura mesma – não sendo necessários mais e mais “letramentos”, como estamos nomeando aqui, porque houve o suficiente.

Encontramos o tema da decisão: é quando haveria o suficiente de escrita que poderia haver – contingencialmente – essa leitura que toca o suficiente do real. Tratar-se-ia de leituras decisivas em que se daria o efeito de cura. Não estou, com isso, dizendo que a análise termina, apenas que existem alguns momentos nos quais alguma coisa pode cessar e que, assim, é possível imaginar algo da ordem do real através de todo o percurso significante. Isso faz marca – não como em um trauma, quando uma marca precisa ser melhor escrita para ser lida – mas marca suficientemente escrita, trabalhada em um processo de esvaziamento que permite ler uma inexistência (se pensarmos na discussão com Frege empreendida por Lacan no seminário XX); ou, se preferirmos, ler o Vazio mediano (Cheng, 2012/2016), se pudermos fazer referência ao pensamento chinês. É, portanto, na baliza do suficiente que algo pode se decidir na sua leitura mesma – eis a definição mais apropriada sobre o efeito de cura que foi possível oferecer na minha tese (Silva, 2023).

Em suma, o efeito de cura é o efeito daquilo que se decide em sua leitura – uma leitura que se dá contingencialmente ao se alcançar o suficiente da escrita: a sua possibilidade de cessar e de ler algo da ordem do real.

[1] Cabe sempre relembrar que essa escolha de tradução foi elaborada em um cartel sobre escrita e estilo em Lacan, no qual nos propusemos a traduzir o texto Lituraterre. Tal tradução não foi publicada, mas fica a lembrança de boas tardes de discussão, nas quais traduzir era uma arte de equívoco. Compúnhamos esse cartel Eu, Elizabeth Brose, Gilberto Mariotti, Mariana Castro e Priscila David.

[2] No original: “soit figurant qu’un domaine tout entier fait pour l’autre frontière, de ce qu’ils sont étrangers, jusqu’à n’être pas réciproques?”.

[3] Lacan faz um jogo de palavras com os termos dort (dorme) e d’or (de ouro). Permito-me acrescentar, a partir dos equívocos que o português nos possibilita produzir, o ouro do tolo que dorme, o ouro dos não tolos que erram, através dessas imagens que, a partir de uma articulação simbólica (quando a fala intervém ao se narrar um sonho), permitiriam uma leitura sobre algo da ordem do impossível.

[4] A expressão à l’insu de pode ser traduzida como à revelia. Porém, cabe notar a brincadeira, proposta por Lacan no seminário XXIV (Lacan, 1976-1977), na fórmula à l’insu que sait. Trata-se de homofonia translinguística que ele propõe para o termo alemão Unbewusste e que se completa por de l’une-bevue s’aile à mourre. A parte l’insu que sait ressoa em francês como l’insuccès, o insucesso.

[5] É verdade, o trabalho pode libertar. É uma frase que vem como uma espécie de herança de seu pai. Mas… isso não quer necessariamente dizer que se você não tiver trabalho por agora você deveria se sentir prisioneiro.

[6] É verdade o que você diz, eu preciso parar de me sentir assim, eu preciso parar de me isolar, preciso fazer novos amigos, novos laços aqui!

referências

Allouch, J. (1984) Lettre pour lettre. Transcrire, traduire, translittérer. Toulouse: Érès, 1984.

Aristóteles. Éthique à Nicomaque. Trad. R. Bodéus. Paris: Flammarion, 2004.

Cheng, F. (2012) Lacan e o pensamento chinês. In: Cheng, F., Regnault, F., Wajcman, G., Aubert, J. & Milner, J.-C. Lacan, o escrito, a imagem. Trad. Y. Vilela. Belo Horizonte: Autêntica, 2016.

Derrida, J. (1967) De la Grammatologie. Paris: Les Éditions de Minuit, 2011.

Lacan, J. (1959-1960) Le Séminaire, Livre VII: L’Éthique de la Psychanalyse. Paris: Éditions du Seuil, 1986.

Lacan, J. (1961-1962) L’identification. Disponível em http://staferla.free.fr/S9/S9.htm

Lacan, J. (1971) Lituraterre. In: Autres Écrits. Paris: Seuil, 2001.

Lacan, J. (1971-1972) Le Séminaire, Livre XIX : … ou pire. Paris: Seuil, 2011.

Lacan, J. (1972-1973) Encore. Paris: Seuil, 1999.

Lacan, J. (1973-1974). Le Séminaire, Livre XXI: Les non-dupes errent. Disponível em http://staferla.free.fr/S21/S21.htm

Lacan, J. (1976-1977). Le Séminaire, Livre XXIV: L’insu que sait de l’une-bevue s’aile à mourre. Disponível em http://staferla.free.fr/S24/S24.htm

Pommier, G. (1993) Naissance et renaissance de l’écriture. Paris: PUF, 1993.

Silva, G. C. O. (2018). Leitura e escrita da letra na obra de Jacques Lacan (Dissertação de Mestrado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018. Disponível em https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-16072018-112425/pt-br.php

Silva, G. C. O. (2023) A letra e os efeitos de cura em uma análise: duas formas de leitura (Tese de Doutorado). Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2023. Disponível em https://www.teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47134/tde-06092023-173515/pt-br.php

Guilherme Celio Oliveira Silva