Coletivo Pontes da Psicanálise
Érico Andrade
Marcelle Xavier Correia Rodrigues
Guilbert Kallyan da Silva Araújo
Juni Maria Mota Cavalcanti
Introdução: sobre confluências e cidades
Formar um coletivo é apostar na confluência. Esta palavra, tão usada por Nego Bispo (Santos, 2023), é também aquela com a qual enredamos as primeiras linhas do presente texto. Apresentar um coletivo é primeiro dizer que houve confluência e que seguimos na tentativa de coadunar os cursos de nossos rios na forma de uma experiência comum. A confluência se inicia pequena, com umas quatro pessoas, mas se expande porque vários rios entram na cena, na cidade que é, como já disseram, “mais rio do que mar” (Andrade, 2023, no prelo). E, na confluência dos rios, temos um coletivo que se dilata para ser mais coletivo, isto é, para mais gente e gente variada. Tudo isso se desenlaçando, desde o princípio, ainda na Praça 13 de maio, no espaço público, local onde ocorreu a primeira reunião. Naquela ocasião, todos os corpos eram não brancos.
Embora a praça leve o nome de um momento importante na história contra a escravidão, um momento que, sabemos, só foi possível graças aos novembros negros, ela nos sábados era pouco habitada e a sua expressiva extensão não parecia ser adequada a um coletivo que se iniciava apenas com alguns corpos. A praça da qual seremos ou desejamos ser território é a praça do Derby. Lugar de encontros e despedidas, como diz a música. Um centro que é caminho de várias pessoas e de múltiplos corpos. Centro de encruzilhadas. Não é sob as encruzilhadas que nosso coletivo pensa a psicanálise?
Encruzilhar é uma outra forma de falar de confluência, é se colocar num ponto de entrecruzamento que se faz como ponte possível para lugares outros. Desde nosso texto fundador, por mais que não discorresse sobre a forma como iríamos realizar o nosso trabalho, um ponto sempre esteve nítido na mente de todes que compõem o coletivo: vamos nos reunir aos sábados de manhã e tem que ser em roda.
Encruzilhar é outra forma de falar de confluência, se entendemos que o nosso caminho foi nos juntarmos numa roda na praça do Derby, aos sábados, para pensarmos em um texto fundador do coletivo que não tinha uma forma definida, ainda que devesse ser roda.
Começar a pensar o coletivo na praça do Derby era uma tentativa incipiente de nos fazermos ser também aquele território pelo qual passávamos, mas o qual nem sempre compreendíamos ser cidade, naquilo que a cidade tem de encontro. A cidade que pode ser uma floresta, como afirma Krenak, mas na condição de que ela “consiga erguer uma política da urbanidade que devolva a potência da vida” (Krenak, 2022, p. 70). E a vida, na cidade, são as pessoas ou a mistura de gente, como disse, certa vez, a urbanista Jane Jacobs (2009). A verdade é que lá a gente se misturava mesmo. A gente se misturava em tudo que é humano quando um círculo de afetos, dos corpos presentes em roda, nos refrata para dentro de uma constelação de dúvidas a respeito do dispositivo. Nada fugia às nossas dúvidas. Nada. Seria o desejo de controlar uma experiência que apenas se anunciava?
Essa também era uma das perguntas. Como dizíamos, nada escapava quando o que estava em jogo era entender aquele território. Começaríamos a compreender, na radicalidade necessária, que a vida se escapa e que uma das tarefas da psicanálise é lidar com a vida para ter consciência, dentre outras coisas, de que ela nos escapa. Nos escapa com ou sem a psicanálise. Com a psicanálise, contudo, a gente acredita que aquilo que escapa não necessariamente tem que ficar incrustado como um ideal do ego. Há algo da psicanálise que entendemos que nos pode ajudar a lidar com a vida e com aquilo que lhe assombra: a morte.
Em parte, iniciar o coletivo nos obrigava a um embate com as nossas próprias fantasias. Afinal, não nos parece existir ambiente mais fantasioso do que os consultórios que guardam, na arquitetura dos seus metros quadrados, a fantasia de que ali existe um enquadramento ótimo. A transferência, a contratransferência, o atendimento e o seu desenvolvimento. A vida que nos escapava ali, na praça do Derby, parecia ganhar um contorno diferente dos consultórios, porque naquele território a cidade era o que nos atravessava como possibilidade. O céu, as árvores, os sons, o trânsito de pessoas e os veículos gritavam para dizer que vários caminhos estavam acontecendo numa mistura de elementos naturais e artificiais que são as cidades. Apesar deste campo aberto de possibilidades, a gente entende que a possibilidade é negatividade, no dizer da dialética do esclarecimento, porque não tem um fim preestabelecido, tendo em vista a abertura para uma vida que acontece na contingência dos caminhantes que passam pela praça pública, que se deparam com a placa “Pontes da Psicanálise, atendimentos individual e gratuito” e que ali decidem investir o seu tempo.
O território da cidade deixa mais evidente as encruzilhadas da vida quando consegue colocar muita gente diferente num mesmo espaço: o nosso próprio coletivo se tornava cidade, quando no seu espaço já éramos várias pessoas com a variação que se espera das pessoas. Já tinham alguns meses transcorrido quando começamos a abrir a roda na praça. Pessoas trans, negras, mulheres, pessoas não binárias rapidamente seguravam as mãos das pessoas que iniciavam o coletivo para fazer o coletivo naquilo que ele pode ser de radicalmente diverso. Nesse momento, a gente já fazia leituras e estudos na praça do Derby e convocava pessoas interessadas em participar daquela experiência – não experimento, é bom frisar – coletiva. Pessoas interessadas em ler com entusiasmo, na praça, os textos que poderiam orientar a ação do nosso coletivo. Pessoas interessadas em atender na praça pública e em começar a girar a roda de um destino incerto. Mas qual destino não é incerto?
Começamos a atender. Foi um dia de sol, numa cidade que só não é completamente solar porque a chuva vem nos deslocar e, assim como a psicanálise, nos desarranjar. Depois de alguns meses, foram iniciados os atendimentos. Consoantes com aquilo que sustenta a nossa implicação política com a psicanálise, as primeiras escutas na praça foram realizadas por pessoas negras e trans. Foi um dia inesquecível e, com ele, a nossa experiência se abria para que começássemos o processo que é o foco principal do presente artigo: a intervisão que por nós será chamada de visão de gira. A razão desse termo é porque se trata, e aqui a gente faz um resumo preciso, de uma comunhão de percepções dialógicas que giram quando os microfones dos computadores ou dos celulares são abertos para a palavra nos constituir, continuamente e pouco a pouco, um analista grupo, inscrito não apenas em escuta feita na forma de rodízio, mas também em conversa coletiva sobre os atendimentos. Vamos lá conversar mais sobre esses pontos.
Escuta de gira
Antes de começarmos a atender, tivemos reuniões com Adriana Marinho, do Coletivo da Praça Roosevelt e da Rede de Escutas Marginais (REM), para pensar, ainda com uma parte do que seria o nosso coletivo, como poderiam acontecer os atendimentos. Lemos muito e iniciamos os atendimentos com a ideia de que os faríamos na forma de rodízio. Neste momento, nosso coletivo tinha mais corpos que acompanhavam as leituras na praça desde o início. E lemos muito no espaço onde seria a nossa clínica. A decisão de atender no formato de rodízio estava tomada, mas sem ser acompanhada de uma segurança que só conseguimos, na maior parte dos casos, na fantasia. Nós, psicanalistas, não estamos livres dessas fantasias.
Começamos os atendimentos com algumas inseguranças, como, por exemplo, se deveríamos abrir exceções para alguns corpos serem atendidos por determinada corporeidade específica, de maneira contínua, ou ainda se fazia realmente sentido sustentar um atendimento na forma de rodízio, para além de outras questões práticas (como a de garantir psicanalistas, com as suas mais diversas agendas, na praça todos os sábados). No primeiro dia de atendimento, como já chegamos a adiantar, o sol reinava em Recife e nós éramos a esperança naquilo que ela tem de grande. A gente não se continha. Mesmo quando calados/as/es, a gente se expandia na linguagem do corpo para comunicar o nosso desejo de inaugurar os atendimentos.
Nesses atendimentos, experimentávamos um arrefecimento das nossas tantas fantasias, muitas delas oriundas da nossa experiência nos consultórios particulares, quando a cidade, na forma daquelas pessoas que iam à praça para serem cuidadas por nós, começava a ser um corpo de pessoas dispostas no espaço público a serem escutadas no seu sofrimento. Se, em algum momento, tínhamos fantasiado ou mesmo conjecturado sobre quem escutaríamos na praça, nas manhãs de sábado de sol as pessoas que frequentavam o espaço seguiam a cidade no que ela tem de diverso. Pessoas negras, pessoas que portavam o dispositivo eletrônico de limite de circulação, pessoas cujo dispositivo de controle era de outra ordem, como o toque no celular para realizar a próxima entrega. Pessoas negras e o racismo que lhes atravessa. Pessoas brancas, homens brancos e os seus desejos socialmente reprimidos pela monocultura patriarcal. Pessoas brancas, homens e seus pais que, no exercício do patriarcado, violentavam com palavras e gestos suas irmãs e mães. Pessoas cobradas para serem modeladas na forma do capital. Pessoas mulheres com conflitos familiares, igualmente marcados pelo patriarcado. Pessoas atravessadas de pessoas.
Dessas pessoas e dos seus trânsitos nos vinha a impressão – ainda precisávamos que as palavras fossem cultivadas para uma vagarosa colheita do que a gente iniciava – de que o trânsito da cidade era também transitoriedade dos corpos que pela praça passavam. A transitoriedade da existência era também a própria condição da nossa clínica, num espaço que é uma encruzilhada, espaço de onde muitas pessoas seguem viagens para outros destinos, fora do Recife, ou de onde pessoas do Recife seguem destino para suas casas e trabalhos. Espaço inscrito numa arquitetura greco-romana que só atesta o colonialismo e que é impregnada por dejetos, especialmente em algumas de suas partes, de pessoas que literalmente cagam para as construções coloniais. A transitoriedade, assim, pode ser vista como a expressão da cidade que se desloca e que se fixa momentaneamente, na praça do Derby, para transitar por dezenas de minutos, em geral, na análise de si. Na construção de narrativas de si. Nessas narrativas de si, as singularidades se reconheciam como singulares já no primeiro atendimento, quando elas já relatavam, para um coletivo de analistas, coisas tão íntimas quanto constitutivas de suas subjetividades.
Alguns colegas e algumas colegas, reticentes, por variadas razões, com aquele dispositivo ou mesmo engolfados pela falta de tempo, que afeta sobretudo pessoas negras, desistiam do coletivo na mesma medida em que parte das pessoas consolidava uma confluência, graças à qual dávamos um contorno à clínica com a discussão de cada caso.
Os casos não eram apenas daqueles que se sentavam nas nossas cadeiras de praia, de frente para uma pessoa de nós analista, mas de pessoas que transitavam pela cidade em busca de comida, de atenção e também de escuta, no seu modo singular de existir. Foi numa roda de conversa e de leitura que um homem negro foi interpelado com a atitude antianalítica de calá-lo, feita por uma analista mulher branca: como se trata de silenciamento, estamos falando de racismo. O homem negro sentou-se no meio de nossa roda e, mesmo constrangido a se calar por uma de nossas colegas brancas, manteve o seu corpo negro como a corporeidade resistente ao que a branquitude quis impor como silêncio. Ao atestar o lugar do trabalho como legitimador da atividade que realizávamos, nossa colega negava duplamente ao rapaz negro a sua condição de humano; por um lado, a branquitude se impunha como silenciadora da negrura com a qual se deparava, ao mesmo passo em que encerrava o rapaz num lugar de socialmente contraproducente de silêncio. Esse foi um desafio para o nosso coletivo, o qual apenas se confluía nos seus primeiros braços de rio. Conversamos muito sobre isso e, especialmente, sobre a branquitude. Como manter pontes com quem reproduzia violência de uma forma contrária ao que havíamos acordado enquanto ponto comum de confluência?
Mesmo na visão de gira, a colega se mantinha contrária àquilo que, naquela altura, já era considerado uma violência reincidente. Demos um giro decisivo para afastar a colega e para ampliar as margens de nossos rios, a fim de que voltássemos à confluência e de que continuássemos a nos dedicarmos às pessoas que não paravam de vir aos sábados, com exceção de um único sábado sem atendimento. Construir coletivamente um dispositivo que se dispõe à escuta rotativa é, também, lidar com as contradições que o encontro de sujeitos das mais variadas origens pode permitir.
De uma variedade enorme de atendimentos, alguns resolveram bancar o desejo de fazer análise sem as paredes do consultório e, imersos numa continuidade, seguem sendo atendidos/as/es pelo coletivo. Os atendimentos únicos e os atendimentos que continuam sendo cuidados pelo coletivo não deixam de atestar a importância clínica do projeto, cuja ousadia não estava talvez no seu caráter inédito na cidade, mas no seu modo de contrariar uma prática clínica, já secular, realizada nos consultórios particulares. Com efeito, a ousadia clínica se estende à intervisão, sobre a qual iremos conversar mais vagarosamente.
Visão de gira
Somos povos de trajetórias, não somos povos de teoria.
Somos da circularidade: começo, meio e começo.
As nossas vidas não têm fim.
(Santos [Nego Bispo], 2023, p.35)
Nas terças-feiras, no horário do almoço, o único capaz de abarcar tantas agendas diferentes e de persistir como o horário mais viável depois de uma segunda consulta, nos encontramos ainda sob o efeito do sábado e de sua dinâmica. No tempo de uma hora e meia, tentamos dar conta dos casos e das várias questões que o nosso dispositivo nos suscita continuamente.
A visão gira. Circula com semblantes. Circula também com dúvidas e interações no chat. Circula como escuta atenta para reconhecer pontos em comum dos atendimentos feitos às mesmas pessoas. Escuta também para ampliar a roda da percepção de um caso. Escuta para saber como escutar sem repetir a mesma abordagem, mas seguindo com a continuidade do cuidado tecido a vários ouvidos. A palavra também se faz presente na intervisão ou naquilo que chamaremos, a partir de agora, visão de gira. Conversamos sobre transferência e contratransferência. Pensamos como alguns casos nos mobilizam mais do que outros e como alguns e algumas de nós se sentem mais compelidos/as/es diante de certos casos, tudo isso na forma da roda, na qual todas as pessoas que figuram nos atendimentos aos sábados se posicionam de modo igual, ao mesmo centro: o cuidado. Ninguém está mais próximo ou mais distante do centro e só na nossa comunhão é que formamos a própria roda. A palavra circula, gira, roda, vai, volta, sem constituir uma hierarquização de falas e de vozes que possam se sobrepor por quaisquer motivos que sejam. Nossa aposta num cuidado que se dá na comunhão e na partilha, através da gira, demanda uma constituição de relação em que todes possam falar, pois entendemos que somente na partilha é que se consolida o grupo que escuta a cidade aos sábados.
O que entendemos por visão de gira é, nas reuniões clínicas, o giro pelas palavras, pela escuta e pelas dúvidas que nos conduzem a refletir coletivamente sobre cada caso e sobre nós mesmos diante desses casos. O tempo todo somos convidados/as/es a refletir sobre nossa singularidade de escuta no coletivo, na mesma medida em que a experiência coletiva de escuta nos convida a pensar sobre os nossos atendimentos, não numa lógica da “melhor abordagem” ou da “melhor intervenção”, mas sob o signo do coletivo como aquilo que nos ampara porque nos retira, paradoxalmente, qualquer fantasia de segurança. Por mais que nós tenhamos, coletivamente, uma trajetória clínica ancorada nos conceitos psicanalíticos que sustentam a nossa escuta, a dimensão do se fazer enquanto analista grupo, tendo como ponto de partida uma ruptura com a formatação consolidada do setting terapêutico, demanda, sobretudo, um quê de questionamento contínuo para com a nossa atividade.
Eis o paradoxo da visão de gira. É possível ampliar o desconforto, compreensível diante da profusão de vozes e de sugestões de caminhos para a abordagem de um caso, na mesma medida em que cultivamos o terreno comum, o qual não se trata propriamente de ser mais confortável, mas de ser suficientemente acolhedor, para pegar a imagem de Winnicott. Ou seja, as inseguranças que nos atravessam como singularidade psicanalítica, numa experiência de visão coletiva, não desfazem a compreensão de que, quando a visão sobre os casos gira, se produz um analista grupo que não é talvez a expressão de um terceiro, como poderia pensar alguém com assiduidade na leitura de Ogden, mas a emergência de uma experiência que não se diz das partes, nem se discrimina em números. A roda só é roda na sua totalidade. E o coletivo é uma totalidade orgânica. Funciona mais como um organismo. Funciona como um corpo. Não se trata de um terceiro analítico, mas de um território que encontra na roda (circunferência) a sua forma.
O território é fértil quando semeamos diversidade. É nessa perspectiva que as nossas singularidades de corpos insubmissos não operam em concorrência para um desenvolvimento aprimorado de uma perspectiva analítica. Trata-se do que Negro Bispo nos ensina: envolvimento (Santos, 2023). Nossos corpos se envolvem com as suas singularidades para que, em cada caso, possamos achar pontos que nos auxiliem na continuidade dos atendimentos e mesmo na compreensão da transitoriedade dos que passam uma única vez pelo coletivo.
Nessa perspectiva, é fundamental sublinhar que a pessoa cuidada pelo coletivo aos sábados, na praça do Derby em Recife, não se encerra, enquanto ato analítico, naquilo que ocorre no sábado. O atendimento se estende à visão de gira porque, no giro das falas e das observações, vamos partilhando a experiência estética e ética de viver coletivamente a própria experiência do analista grupo. Ou seja, o que se segue, na visão de gira, não é um relato de alguém que fez um atendimento e que submete ao grupo as suas apreciações para escutar alguém “de fora” lhe sugerir caminhos por não estar sob a mesma influência contratransferencial. Na roda ninguém está de fora, porque todas as pessoas da visão de gira atendem e podem atender as mesmas pessoas que estão, a partir do relato dos/as/es colegas, presentes enquanto um afeto pulsante.
Assim, não se trata da descrição de um caso por parte de alguma pessoa do coletivo, responsável por cuidar de alguma pessoa que aportou na Praça do Derby num sábado. Nem se trata de uma descrição que passaria pelo crivo de um “externo” ou de uma analista cuja experiência poderia indicar o “melhor caminho” ou o caminho mais interessante para um caso. Na visão de gira, todas as pessoas estão tocadas afetivamente: não se trata de trazer um relato, mas de (re)viver um atendimento como um corpo coletivo, no sentido de que a análise continua no cuidado dos afetos, presentificado no corpo de alguma pessoa de nós que está narrando a experiência de um atendimento, o qual poderá ser retomado por qualquer pessoa do nosso corpo coletivo.
O relato do caso é, na verdade, um atendimento coletivo da experiência relatada. Ou seja, não é uma pessoa que atende e que relata o caso para uma “super” visão dizer caminhos e estabelecer rotas mais seguras. O atendimento, quando dito na visão de gira, (re)acontece como experiência afetiva, comungada no giro das falas e das observações sobre o atendimento. É uma experiência de atendimento em que ele continua como uma implicação coletiva do cuidado com as pessoas. Há uma partilha estética e ética.
Na visão de gira, o que se conversa não são correções diante de uma súbita e inesperada contratransferência de uma pessoa responsável por atender outra na Praça do Derby. A conversa é uma experiência corporal (portanto, estética) de construção de um campo afetivo comum (um campo ético), não como uma espécie de síntese perfeita do que poderia ser atender determinadas pessoas, mas como uma abertura radical em que a polifonia de vozes não deve ser calada na forma de um consenso.
As vozes politonam na forma de uma gira, de uma visão que sai rodando sem rumo certo, mas que no seu movimento segue deixando um rastro de possibilidades vivenciadas singularmente pelo coletivo, que são expressão da própria experiência coletiva. O analista grupo é essa visão de gira, com a qual cada caso é vivo, talvez mais do que revivido, na conversa das terças, em que, longe de estarmos em busca de uma ideia única, de uma resposta pertinente ou de uma intervenção potente (quase milagrosa), estamos levantando possibilidades, as quais se reinventam quando atendemos a mesma pessoa, quando voltamos a dispor o seu corpo (o seu circuito de afetos) na roda e quando novamente o caso é contado numa terça-feira.
É girar sem saber para onde ir, mas sabendo da potência do próprio giro de percepções sobre o caso. Sabendo como essa potência nos motiva a avançarmos, cultivando um mapa de possibilidades com as quais pessoas podem caminhar para além da paralisia de uma visão monolítica de si. É a partir deste prisma que apresentamos dois casos como forma de mostrarmos, na medida do possível, como a nossa escuta se faz escuta de gira.
Caso 1: Bruno e a analista preferida
Bruno chegou no mês de abril – mesmo mês em que os atendimentos iniciaram e em que tivemos a abertura e a partilha da roda com a Praça do Derby e seu público. Era chegada a hora de a gente se mostrar. No entanto, para aparecermos, era preciso suportar sermos visto com as falhas e, poucas semanas depois do nosso estabelecimento, a questão dos atendimentos rotativos se recolocava para nós.
Bruno havia sido atendido algumas vezes antes de solicitar que a mesma analista repetisse o seu atendimento. Os acasos e a sedimentação, próprios de um grupo em formação, permitiram que seu pedido fosse atendido mais rápido. A primeira da fila dos atendimentos, naquele dia, era a mesma que silenciou o homem negro, caso mencionado anteriormente, a segunda da fila era o seu pedido. A pessoa que cuidava da recepção levou a questão para as analistas decidirem e elas optaram por acolher esse pedido e esperar para ver o que ia acontecer depois.
Como citado, Bruno havia sido atendido por outros analistas antes desse momento, portanto, já tínhamos um histórico para analisar o pedido na escuta de gira. Bruno é o primeiro da família que foi à faculdade, contrariando o que havia escutado de sua família, que reconhece a dedicação ao trabalho duro e à igreja como formas de emancipação. Ele se sentia “burro” em relação aos colegas da faculdade e incapaz em relação à família, que gostaria que ele fizesse outras escolhas. O paciente gostava de ir à igreja, para ele era um lugar de acolhimento e segurança, estava envolvido nos projetos de música e se sentiu mal quando precisou se afastar da instituição por ter relações sexuais antes do casamento.
Bruno saía com homens e esse era um outro conflito para ele, pois, além da desaprovação do sexo antes do casamento, a orientação homossexual era proibida. Essa tríade contornava as sessões com Bruno: sexo, família e igreja. Sentir aqueles desejos parecia tão errado para Bruno que ele não conseguia pensar em outra coisa, mas a questão deveria ser passada adiante. Bruno questionava os analistas de maneira direta e incisiva: “tenho TDAH?”, “eu sei, tenho TDAH, por isso não consigo me concentrar”, Bruno tinha uma certeza na qual podia se amparar.
A relação com a religião e com tudo o que ela poderia fazer era de uma ordem onipotente e onipresente – pouco espaço para dúvidas e certeza de um futuro antecipado. Após uma passagem pelo confessionário dos pecados, a igreja o puniu em público, mostrando aquilo de que era capaz: a igreja era a mesma que podia controlar o seu destino. Bruno tinha uma rotina de preces preservada e acreditava que poderia ser punido por mau comportamento, caso se desviasse dos ensinamentos que havia aprendido.
A analista e a fé de Bruno: uma não poderia viver sem a outra. Na visão de gira, definimos que atenderíamos o pedido de Bruno, se ele o fizesse novamente. Aconteceu. No caminho entre o encontro com a analista até as cadeiras de praia que fazem o enquadramento do nosso setting analítico, ele confessou que veio de casa até à praça pedindo para que a analista preferida estivesse lá; na semana anterior, ela havia faltado por uma questão pessoal, e a fé de Bruno havia trazido o objeto de desejo a ele novamente.
Na semana seguinte, após a revelação do paciente, chegamos à conclusão de que o manejo do caso se daria por outros meios e de que respeitaríamos a ordem dos analistas disponíveis para atendê-lo no próximo final de semana. Não entendemos as preces de Bruno, essa foi a nossa aposta.
Esse caso ampliou nossa compreensão para os benefícios obtidos por um paciente no atendimento rotativo de analistas – como a nossa clínica propõe. Dar aquilo que o paciente demanda pode reforçar a sua imagem idealizada e, no caso de Bruno, que acreditava no poder mágico das suas palavras, era a confirmação de que aquilo que ele ouvia na igreja e na família podia mesmo acontecer, sem espaço para a diferença e alienado ao outro.
O analista grupo negou e Bruno continuou. À medida que as sessões iam acontecendo, os colegas da faculdade não pareciam tão mais sabidos assim, ele conseguia tirar dúvidas de outras pessoas na faculdade e até podia contar sobre o que tinha aprendido nas aulas de pedagogia para os/as analistas. A gente ouviu e reconheceu esse lugar do profissional em formação, titular do conhecimento, que nunca cabia nas figuras de referência para Bruno.
O amor que surge pela analista durante o tratamento, ao mesmo tempo que uma inevitável consequência, pode se apresentar como impossibilidade para a continuidade do processo analítico. Os analistas precisam tomar cuidado para não afastar a transferência e serem firmes para não correspondê-la (Freud, 1915/2010). Nesse impasse difícil, a depender do caso, aqui considerando o caso de Bruno, que produziu uma cola de maneira direta com determinada analista, o analista grupo aparece como manejo interessante para continuidade do tratamento, preservando os elementos fundamentais de análise.
Os benefícios da rotatividade dos analistas não ficaram só em Bruno. Era possível perceber os efeitos daquele pedido na analista preferida e no grupo, que passou a reconhecê-la nesse lugar. Ser a escolhida poderia reafirmar uma posição de psicanalista que pouco beneficiaria o andamento do processo de análise. A transferência amorosa não deve ser encarada pelo analista como uma conquista atribuída a sua pessoa e nem se sentir orgulhoso dela (Freud, 1915/2010). No entanto, da mesma forma que Freud nos alerta para o fiasco que seria preparar um paciente para esse momento, acreditamos que seja difícil saber antecipadamente as reverberações em cada analista: por mais experiente que seja e por mais preservado que esteja pelas quatro paredes do consultório, isso pode lhe ficar bem misturado.
Na semana seguinte, era uma nova analista, também branca, contando que o novo paciente que acabara de chegar havia pedido para continuar o tratamento com ela na semana seguinte. Era nítida a satisfação por trás daquele comunicado, que vinha acompanhado por um sorriso; ali estava o novo efeito que aquele primeiro pedido havia provocado no nosso grupo. Agora, de maneira ampliada, enquanto analista grupo, estávamos sugestionados a também querer ocupar aquele lugar valorizado. Essa inflamação do Eu e de sugestão que mirava o lugar de pretensa superioridade da branquitude pôde ser dissolvida pelo próprio grupo.
Sabemos que a transferência se dá por um traço do qual não temos notícias, a não ser que o analisando ou a analisanda nos conte. Mas como isso acontece no Brasil, um país tão identificado com os fenótipos brancos e cor de pele clara, onde a maior parte dos psicanalistas e das psicanalistas são brancos e onde a continuidade da psicanálise se perpetua nesses moldes? Estaria o analista branco e a analista branca brasileiro/a atento/a às provocações de sua imagem ou apenas trataria a transferência com neutralidade?
Por que essa pessoa escolheu permanecer em análise com uma pessoa branca? Essa pergunta se trata de uma demanda sem reciprocidade natural e instaura a dialética do analista, pois o analista não é um ser desencarnado ou uma entidade. Então, como podemos pensar essa casualidade e essa transferência, considerando a sobreposição de demandas de uma psicanálise que nasceu na Europa, cujos pioneiros brasileiros foram pessoas brancas que estudaram a partir de uma única tradição? Como psicanalistas brancos e psicanalistas brancas lidam com esse lugar de serem eles/elas os mais procurados/as por falta de outra representatividade?
Não há como negar os efeitos da imagem no nosso ofício, reforçados nos diferentes percursos da formação em psicanálise, seja nos estudos tidos tradicionais, oferecidos nas universidades, seja nos fóruns particulares de formação ou nas indicações de pacientes feitas por outros profissionais que, portanto, nos permitirão fazer a passagem de estudantes a psicanalistas. Todos brancos, encarados como um dado natural, quando, na verdade, se trata de uma construção histórica violenta.
Não podemos deixar de considerar que essa imagem nos afeta subjetivamente e nos dá notícias para fundamentarmos alguns discursos totalizantes que estão presentes nas instituições:
Esse Outro, precisamos que ele seja muito real, que seja um ser vivo, de carne, embora não seja a sua carne que eu provoco. Mas, por outro lado, há também aí algo de quase anônimo, que está presente naquilo a que me refiro para atingi-lo e para suscitar seu prazer ao mesmo tempo que o meu (Lacan, 1957/1999, p. 123).
Lacan desenvolveu o conceito do grande Outro como uma determinação óbvia por estar presente em todos os espaços sociais, mas resistente a qualquer movimento de nomeação pela sua característica anônima. Em outras palavras, normatizador de singularidades e referendado pelas nossas ações culturais. Fanon (1952/2020) é certeiro ao afirmar que o Outro é o branco1, pois o Outro tem um estatuto de ordenar e de produzir sentido para nós, demonstrando que ele está presente no real, no simbólico e no imaginário compartilhado.
Portanto, a partir das interações sociais de poder mencionadas, podemos considerar essa como uma forma de representação do desejo, produzida pela via da demanda de amor e estabelecida pelo compromisso da retribuição de favores? Para Lacan, quando articulamos a demanda ao desejo, estamos colocando o Outro em jogo, pois não se trata, aqui, de um desejo particularizado, mas de um desejo coletivo.
Seria esse mais um fator que estaria em jogo também no pacto narcísico da branquitude?2
A troca de favores que são experimentados como amores carrega em comum a imagem do branco como garantidor de segurança social. A demanda, por meio das trocas de favores, perdura o tempo, a história e a clínica, desde o início ao fim da vida dos brasileiros e das brasileiras após a colonização.
Caso 2: Fernanda e os limites do nosso dispositivo
É possível atender um casal num dispositivo rotativo?
Até a chegada de Fernanda, não tínhamos batido o martelo em relação a essa questão; como nos propomos refletir sobre todas as bases e práticas psicanalíticas, essa era apenas mais uma colocada na roda para ser pensada no um a um.
Fernanda é uma mulher branca, de classe média, estudante de direito em uma faculdade particular. Ela chegou através da indicação de uma pessoa do nosso coletivo.
Fernanda nos contou que o atual namorado veio para o Recife por conta dela, sentia que o namorado fazia mais por ela, ficava esperando por ela para fazer as coisas. Ela, por outro lado, se sentia responsável por ele. Em uma das sessões, diz sentir culpa por não estar vinculada ao namorado como antes e por ter que levá-lo aos lugares. Duas frases nos chamaram atenção pela relação de simbiose estabelecida no início da relação e pela desautorização do outro, descrevendo o namorado quase como incapaz, o que a colocava também em uma posição elevada em relação a ele.
Fernanda se sentia sufocada, quase não lhe sobrava tempo e não queria ter nenhuma obrigação com o namorado quando chegasse em casa. Ela disse já ter percebido isso antes, o primeiro namorado fazia tudo por ela e ela havia perdido a vontade de continuar a relação depois de um tempo. O atual namorado era uma repetição dessa forma de se relacionar.
Ela passou a identificar que, no início dos relacionamentos, queria muito que a pessoa estivesse perto, mas depois deixava de querer a relação quando passava a perder autonomia. Fernanda foi responsável por trazer alguns colegas da faculdade para serem atendidos pelo coletivo, o último foi o namorado, de quem ela pedia separação. Nesse momento nos vimos num impasse, sem chegarmos a uma conclusão, pois não sabíamos se o namorado ia mesmo aparecer. Ele apareceu e o analista que o recebeu se sentiu muito desconfortável com o atendimento. Na visão de gira, o grupo se viu dividido, assim como a escuta do analista que o atendeu, que precisou dispensar algumas intervenções, pois sabia de Ronaldo por Fernanda.
Tínhamos um analista grupo pela metade e não podíamos continuar assim. As reverberações de um casal em separação foram transmitidas ao grupo e não podíamos tomar para nós o sintoma que era do casal. Identificamos ali uma limitação da escuta que é similar com a que acontece na clínica particular, no que diz respeito ao analista. Conteúdos trazidos por pessoas, com questões muito próximas, se misturam no inconsciente do analista e da analista, culminando numa impossibilidade de escuta. Em relação a Fernanda, ela não demonstrou nenhuma preocupação com a segurança do conteúdo, o que é comum acontecer em casos assim; pelo contrário, nos disse que não tinha problema o namorado ser atendido no mesmo espaço que ela ou vê-lo ali, a metros de distância. Os significantes ajudar, servir a alguém e superioridade em relação ao outro parecem presentes.
Sob outra perspectiva, ficava evidente o contorno que o analista grupo havia ganhado. Podemos afirmar que existe um corpo orgânico, diferente do corpo próprio que se trata de um objeto do outro. O corpo orgânico do nosso coletivo é alimentado nos encontros de terças-feiras, que reverberam até o próximo encontro, dia dos atendimentos, por meio do comparecimento do inconsciente grupal dos atendimentos individuais e, fisicamente, quando estamos reunidos em corpo nos sábados de roda, na praça do Derby.
[1] “Está aí, não sou eu que crio um sentido para mim mesmo, mas é o sentido que já está lá, preexistente, esperando por mim” (Fanon, 1952/2020, p. 174).
[2] Referência à tese da autora Cida Bento (2022), que propõe um contrato social implícito feito por pessoas brancas no Brasil, meio pelo qual as pessoas brancas se beneficiam e sustentam seus privilégios sociais e privados.
Andrade, E. (2023) Noventa. São Paulo: Tesseractum, 2023, no prelo.
Bento, C. (2022) O pacto narcísico da branquitude. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
Fanon, F. (1952) Pele negra, máscaras brancas. Trad. R. Camargo e S. Nascimento. São Paulo: Ubu, 2020.
Freud, S. (1915) Observações sobre o amor transferencial (Novas recomendações sobre a técnica da psicanálise III). In: Observações psicanalíticas sobre um caso de paranoia relatado em autobiografia (“O caso Schreber”), artigos sobre técnica e outros textos (1911 – 1913) – Obras completas, Volume 10. Trad. P. C. Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2010.
Jacobs, J. (2009) A morte e vida nas grandes cidades. São Paulo: Martins Fontes, 2009.
Krenak, A. (2022) O Futuro é ancestral. São Paulo: Companhia das Letras, 2022.
Lacan, J. (1957-1958) Para trás, cavalinho! In: O seminário, livro 5: as formações do inconsciente (1957-1958). Trad. V. Ribeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1999.
Santos, A. B. (2023) A terra dá, a terra quer. São Paulo: Ubu, 2023.
Psicólogo clínico e mestrando bolsista FACEPE em filosofia pelo PPGFil – UFPE. Coordenador do Grupo de Estudos Frantz Fanon (GEFF – UFPE) e integrante do Coletivo Pontes da Psicanálise
guilbertkallyan@gmail.com
Psi clínico (CRP 02/24574) pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e Pós-graduando em Psicanálise e Relações de gênero: ética, clínica e política no IPPERG. Integra a Articulação Nacional de Psicólogues trans (ANPTrans) e o Coletivo de rua recifense Pontes da Psicanálise.
junicanti.psi@gmail.com
Psicóloga pela PUC-Rio, psicanalista e mentranda em pensamento social e político pela University of Sussex na Inglaterra. Pesquisa a branquitude e é integrante dos coletivos Pontes da Psicanálise e Basquete Cruzada.
marcellexrodrigues@gmail.com
Psicanalista, filósofo professor da UFPE
Psi clínico (CRP 02/24574) pela Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP) e Pós-graduando em Psicanálise e Relações de gênero: ética, clínica e política no IPPERG. Integra a Articulação Nacional de Psicólogues trans (ANPTrans) e o Coletivo de rua recifense Pontes da Psicanálise.
junicanti.psi@gmail.com