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06_A trajetória de um luto: para você, meu pai

Cristiane Izumi Nakagawa

Mesmo anunciada, foi inevitável: a morte adentrou minha alma e a despedaçou quase que completamente, deixando para trás apenas farrapos que talvez mais por instinto do que por qualquer outra coisa insistiam em não deixar a alma se desintegrar por completo. Farrapos que por ter suas bordas repentinamente desfeitas emanavam dor, sensação decorrente de uma imediata tentativa de reconhecimento dos novos e estranhos limites, que ainda se encontravam incapazes de conter o fino derramamento daquele fluido delicado e denso responsável por alimentar e nutrir a alma humana. Uma dor que era vivida sem a possibilidade de pensar e traduzida pelos olhos através de lágrimas. 

Nesse processo de reconhecimento, os farrapos perceberam que alguma resistência à desintegração completa poderia ser feita através dos mínimos pontos que ainda se tocavam e que ligavam fragilmente um fragmento ao outro. Eram mínimos, mas ainda estavam lá. Para não deixarem de existir empenharam toda energia que lhes restava na tarefa de fortalecer aqueles pontos, um investimento custoso que acabava por exaurir todo o corpo cansando cada célula que me compunha e me fazendo adormecer. Um trabalho árduo que aos poucos foi transformando aquelas breves conexões em amarrações um pouco mais firmes que se assemelhavam a pequenos nós. Esses, para mim, passaram a ser chamados de memórias, porque pareciam começar o trabalho da sustentação do peso da alma através de um mergulho no passado: um rememorar de lembranças que pareciam apenas lá habitar. 

Como o nome sugere, são espaços compartilhados, feitos de palavras, gestos, olhares, risadas, lágrimas, abraços – espaços onde justamente existe e sempre existirá um “nós”, uma comunicação constante e pulsante de afeto que vou chamar aqui de amor. No entanto, não me refiro àquele amor dos apaixonados, e sim a um sofrimento tão dilacerante que sob a mínima sombra de alívio faz sucumbir tanto o corpo como a mente como em uma overdose de alívio experienciada estranhamente como prazer. Um breve alívio que apenas pode ser vivido entre (os) nós. 

No começo, desorganizada e sem saber direito por onde ou como me orientar, me restringi a sentir e viver apenas uma lembrança de cada vez, habitando um a um esses entrelaçamentos inundados por aquele sofrimento chamado amor. Um afeto excessivo e por vezes sufocante, que começou a fazer brotar em mim uma sensação de enlouquecimento. 

Quando enlouquecia, e o sentimento do insuportável me arrematava, fechava rapidamente os olhos e me colocava rapidamente e impulsivamente em um certo movimento fantasmático e inquietante: me lançava em um cego mergulho naquele delicado, entretanto, denso fluido que me envolvia por completo e me puxava cada vez mais profundamente para um lugar onde os raios de luz não alcançavam. Então, antes de me afogar, de ficar completamente sem ar e imersa na escuridão, o desespero me obrigava a começar a nadar e emergir para um longo e vital respiro. Um nadar que, apesar de orientado pelo desespero, era também desajeitado, inábil, feito de braçadas estranhamente lentas que custavam a romper a densidade daquele delicado líquido, e que pela demasiada persistência, fazia formigar e arder cada músculo do corpo levando-o a um quase desfalecimento. Um imenso e árduo esforço para movimentos breves e tímidos, que apenas serviam para romper a sufocante inércia e encher de ar os pulmões. Porém, esses mesmos breves movimentos bastaram para me conduzir ao próximo pronto … um ponto de chegada, que logo se tornaria de partida. 

Esse processo se repetiu inúmeras vezes conferindo aos nós lugares de pontos de referência que, por sua vez, traçaram uma espécie de mapa. Como o uso das estrelas no desenhar de uma constelação imersa num caos de pontos brilhantes no céu escuro da noite limpa, os nós iam contornando e refazendo os limites da minha alma despedaçada, e aos poucos, bem vagarosamente, rotas mais fáceis começaram a ser traçadas. 

Com o tempo fui percebendo que apesar da constante dificuldade e exaustão, já não me afogava mais. Porém, inquietantemente também fui notando que seguia de olhos fechados, habitando um mundo muito próprio e esvaziado dos vivos, sem a possibilidade de produzir novas memórias e experiências. Um mundo onde havia apenas lugar para os fantasmas que viviam atemporalmente nos meus nós.  

Abri então os olhos e a primeira coisa que percebi foi o medo, principalmente no olhar dos outros que me observavam de longe. E contagiada por esse sentimento passei a temer a agressividade que repentinamente irrompia de dentro de mim querendo abrir a costura feita lentamente à custa de difíceis e fortes braçadas. Uma costura que não sabia que estava fazendo até aquele momento, mas que ficou mais dolorida quando me dei conta de que era a primeira vez que costurava a minha alma rasgada sozinha.  

“Me dei conta”: o reinício da possibilidade de pensar foi um rememorar reflexivo imerso em tristeza. Lembrei que fora meu pai que me ensinara a dar pontos, a remendar e costurar aquilo em mim que os outros e o mundo rasgavam e seguiriam rasgando. Meu pai… aquele cujo olhar, palavras, sorrisos, expressões eram capazes de produzir agulhas e linhas que pouco a pouco juntava os retalhos da alma e me re-compunha. 

Ele me ensinou que esse tipo de costura deve apenas servir para remendar, e sussurrava que para fazer estes remendos era necessário usar e fazer pontos bem visíveis. Pontos que não se escondem, se deixam ver e que jamais se desfarão, porque são feitos com a linha mais resistente que existe: a linha do sofrimento. Ele dizia suavemente e sorrindo: “esquecer, jamais!”. Me ensinou que as cicatrizes, as marcas e vergões das nossas costuras são fundamentais para nos fazer lembrar e reivindicar nossa própria história. São elas que humanizam a alma, que nos permitem ver e reconhecer. Essas são as verdadeiras rugas da vida e aquelas que não podem e nem devem desaparecer. 

Percebi que aquilo que eu achava ter feito por instinto de sobrevivência, automaticamente, aquele difícil percurso por entre os nós me foi, na realidade, ensinado por ele. Aquele nadar desajeitado e inábil era eu a costurar sozinha o que antes era feito a quatro mãos. E os nós, aqueles pontos de amarração que desenharam para mim uma espécie de mapa, vagarosamente começaram a se transformar em cicatrizes, que por sua vez, quando olhadas a certa distância, ajudaram na formação de uma rede de amor, esse afeto que transforma nossos pontos em laços os quais a vida não apaga e a morte não desfaz.

Anos depois fui compreendendo que ao contrário do que eu sempre ouvia, com o tempo a alma despedaçada não cicatriza e, por sua vez, a dor jamais passa. O que talvez ocorra é o aumento da nossa resistência à ela. Me parece que a alma forma resistências, que nos anestesiam e nos permitem viver e seguir sangrando. Então, no dia a dia a dor é discreta, contida. Mas ainda há momentos de loucura que são vividos como pura ira e, tudo que toca, destrói. E como todo ato de destruição, envenena não só sua nascente, mas contamina tudo por onde passa, e só cessa quando o cansaço vence. 

Exausta e vencida, desabo e sinto a secura, mudez e frieza do chão. Então, as cicatrizes com seus vergões abismáticos da alma irascível se fundem com o espaço opaco, branco e vazio desacelerando o coração. Assim, para evitar o descontrole comecei a andar descalça com o chão gelado sempre sob meus pés. Mas isso não resolve o problema, porque um dia sentei em uma cadeira alta demais. Foi insuportável. Levantei rapidamente antes que tudo recomeçasse. Aprendi: cadeiras altas nunca mais. Mas o problema só muda de lugar, porque basta escurecer que o sono traz de volta o mesmo enigma. E é a noite que acerto minhas contas comigo mesma. Mas é também só a noite, durante os poucos sonhos de esperança, que revejo aqueles bons olhos e posso ouvir aquela voz que conheço de cor, mas que jamais será reproduzida enquanto eu estiver acordada.

Cristiane Izumi Nakagawa

Psicanalista e psicóloga social clínica. Psicóloga, mestra, doutora e pós-doutoranda pelo Instituto de Psicologia da USP