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04_Sobre supervisão

Henry Krutzen

Quando comecei minha formação, além da análise que estava fazendo segundo o modelo da época, de três vezes por semana, procurei uma supervisão para poder falar dos casos que minha prática iniciante de jovem analista me trazia na instituição onde trabalhava. Era a época do auge da psicanálise lacaniana e meu analista – claro! – era um integrante reconhecido de uma escola lacaniana importante de então. A singularidade dessa análise era o silêncio, já que meu analista nunca falava nada além do tradicional “boa noite” da chegada e da saída. Em cinco anos de análise com ele, acho que nem chegou a pronunciar dez palavras. Mas eu estava conformado. Achava que devia ser assim, que era o normal da prática analítica: o analisando falando e associando livremente, de um lado, e o analista escutando flutuantemente, do outro lado. Então chegou o momento de escolher um supervisor e, naturalmente, fui buscar um numa escola lacaniana, mas, nessa vez, vizinha da escola do meu analista, para “ver as diferenças de escolas nas abordagens clínicas”. Cheguei para minha primeira sessão de supervisão, tendo preparado um texto e várias anotações sobre o caso que queria trabalhar, já que eu estava bastante perdido no manejo da análise dessa menina de oito anos que nem sequer falava uma palavra durante as sessões. Entrei, depois da “boa tarde” de rigor, sentei e comecei a expor o caso e as dificuldades com as quais estava me deparando. Falei, assim, durante uns quinze minutos e depois calei, esperando os comentários e as orientações que não faltariam de chegar, já que tinha escolhido um analista famoso para minha supervisão. E, de repente, me deparei com… um silêncio! Saí da sessão de supervisão, perplexo e desorientado. Será que era isso que o analista queria produzir em mim? Perplexidade e desorientação?

Enfim, resumindo a minha situação na época: eu estava fazendo análise com um analista que permanecia silencioso durante a sessão toda, estava supervisionado por um outro analista que permanecia silencioso também, para falar de um caso de uma menina de oito anos que permanecia silenciosa durante a sessão toda, também. Essa situação surreal durou um tempo até que eu decidisse mudar isso. Procurei uma supervisora kleiniana e winnicottiana e escolhi um analista falante para continuar minha análise.

Como começou?

A história da formação psicanalítica e, logo, da supervisão, está fundamentalmente intrincada com a constituição e o desenvolvimento do Instituto Psicanalítico de Berlim (IPB) e com a pessoa do seu fundador, mecenas e articulador, Max Eitingon. O IPB foi o primeiro instituto de formação e o modelo de todos os institutos que seguirão na International Psychoanalytic Association (IPA). Nenhuma mudança acontecerá na formação dos analistas antes das mudanças lacanianas com a École Freudienne Paris (EFP).

Foi em 1920 que Max Eitingon iniciou em Berlim esse novo projeto, que ia ter uma influência enorme sobre o crescimento e o desenvolvimento da psicanálise no mundo. Freud tinha sempre desejado que a psicanálise pudesse ter um caráter social e que seu acesso fosse aberto para todas as categorias de pacientes. Eitingon vai realizar este desejo freudiano ao abrir, em Berlim, a primeira policlínica psicanalítica da história. Ernst Freud, o filho de Sigmund, vai desenhar o projeto arquitetônico do prédio da clínica e Eitingon, tendo uma fortuna familiar considerável, no comércio de açúcar e de peles, vai bancar o funcionamento da clínica até 1929. Ele vai dirigir a instituição com Abraham até 1925 e, depois do falecimento do médico berlinense, com Ernst Simmel até 1933 (Roudinesco & Plon, 1997/1998).

Mas o projeto era muito mais ambicioso do que dar acesso democrático aos tratamentos, e a policlínica de Berlim se tornou também um laboratório de pesquisa onde novas ideias, direções e projetos iam nascer e inaugurar um padrão que, depois, seria exportado para o mundo inteiro.

Um Instituto de formação foi fundado e seu funcionamento se tornou o modelo de todos os institutos de psicanálise que iam aparecer no futuro.

Primeiro, a regra da psicanálise didática é instaurada: cada candidato a psicanalista deve se submeter a uma análise pessoal com um analista experimentado. Até então, os analistas se viravam com os encontros pessoais com Freud e, dependendo dos casos, iam ou não passar por um processo de análise pessoal. A partir da fundação do Instituto, esta passagem torna-se obrigatória para quem deseja praticar a psicanálise e a policlínica de Berlim é o primeiro lugar onde esta regra será aplicada.

Em segundo lugar, o Instituto vai propor um curso de formação teórica para os candidatos, com várias disciplinas em destaque. O curso se divide em disciplinas obrigatórias e outras opcionais. Todas as aulas acontecem à noite, das 20 às 23h. Os candidatos, na grande maioria, são médicos ou estudantes de medicina. O Instituto, embora não ministre aulas sobre a área das ciências humanas, recomenda aos alunos estudar várias matérias, como história, psicologia dos povos, sociologia, teoria da ciência… Em 1930, o curso demora dois anos e é divido em trimestres, com as seguintes disciplinas: introdução à psicanálise (primeira e segunda parte); interpretação dos sonhos; seminário sobre Freud (vários textos estudados durante os dois anos); teoria das pulsões; teoria das formas de neuroses (1); aplicação da psicanálise à literatura e arte; teoria das formas de neuroses (2); indicação e técnica da terapia psicanalítica (1); etnologia e psicologia coletiva psicanalítica; indicação e técnica da terapia psicanalítica (2);  psicanálise e pedagogia; seminário sobre arte, literatura e sobre a simbólica (Horney, 1930/1985).

Os principais professores são os seguintes: Karl Abraham, Hanns Sachs, Ernst Simmel, Sandor Radó, Franz Alexander, Felix Boehm, Max Eitingon, Carl Müller-Braunschweig, Helene Deutsch, Hans Liebermann, Karen Horney, Otto Fenichel, Theodor Reik, Siegfried Bernfeld, Harald Schultz-Hencke…

As disciplinas não são apenas teóricas e o acento é colocado sobre a prática dos candidatos que devem, para poder ter êxito na formação, mostrar a qualidade dos atendimentos e dos tratamentos que eles estão levando para frente.

Como consequência lógica, o terceiro elemento do famoso tripé vai ser a supervisão de casos. Essa parte foi conceitualizada especificamente por Eitingon, que, num primeiro momento, se encarregava da realização dessa parte da formação. Um pouco depois, Abraham vai também atuar como supervisor do IPB e os candidatos deverão apresentar os casos em função das decisões dos analistas já reconhecidos e responsáveis pela formação. As análises sob controle vão aparecer e entrar no padrão de formação que está se configurando neste momento histórico. Fica interessante, aqui, lembrar que Eitingon nunca fez uma “análise” propriamente falando; fez sessões, conversando com Freud enquanto passeavam no Parque (Freud & Eitingon, 1906-1936/2004). Abraham, entretanto, nem fez análise1.

O modelo é claramente médico e acadêmico. O interesse é centrado sobre o estudo, o curso, as disciplinas, as etapas necessárias. Nunca se fala, no Instituto de Berlim, de questões como o desejo de “ser” analista, a responsabilidade na formação etc. Parece um curso técnico que dá uma formação para ter mais uma possibilidade, entre outras opções terapêuticas.

A Comissão de Ensino (Unterrichtskomission) do Instituto tem todo o poder em 1923. Ela pode aceitar ou rejeitar qualquer candidato depois de três entrevistas, impor uma análise de pelo menos seis meses, escolher o analista do candidato e decidir sobre as etapas da formação a serem atravessadas, impor o controle que deve ser providenciado por um analista, o qual não é o analista do candidato, e exigir uma promessa, escrita pelo candidato, de que se compromete a não se declarar analista antes de receber a autorização pela comissão (Colonomos, 1985). A maioria dessas regras ainda estão funcionando hoje nos institutos de formação analítica afiliados à IPA.

Max Eitingonpassou para a posteridade como uma pessoa meio discreta, um tipo de funcionário da organização da psicanálise, tanto na presidência da IPA como na fundação e na administração do primeiro instituto de formação para psicanalistas. No entanto, o seu papel histórico é de primeira importância, pelos dispositivos e pelas estruturas que ele ajudou a criar e a desenvolver ao longo dos anos, até a sua morte em 1943, na Palestina. Foi no congresso de Bad-Homburg, em 1925, sob a presidência dele, que a supervisão se tornou obrigatória, juntamente com a análise didática, na formação dos candidatos à psicanalista, “em todas as sociedades componentes da IPA” (Roudinesco & Plon, 1997/1998, p. 746) e logo em todos os institutos do planeta. O modelo de Berlim vai ser exportado para todas as sociedades da IPA.

Em 1936, o Dr. Durval Marcondes conseguiu que a Dra. Adelheid Koch (1896-1980), a primeira psicanalista com formação reconhecida pela IPA a atuar na América Latina e a exercer a análise didática, viesse ao Brasil. Em 1951, por ocasião do XVII Congresso Internacional em Amsterdam, a IPA reconheceu como sua integrante a Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), graças ao seu trabalho (Do Vale, 2018).

Essa peripécia mostra bem como a aceitação de uma sociedade pela IPA dependia (e ainda depende) da fidelidade aos princípios de formação definidos no congresso de 1925, sob a égide de Max Eitingon.

Este modelo de formação do Instituto de Berlim vai ser exportado e servir de base para todos os institutos de psicanálise do planeta e não vai ser questionado, a não ser nos anos sessenta, quando Lacan vai fundar a EFP e divulgar, num texto histórico, outras propostas para a formação do analista (Lacan, 1978). Lacan, fiel a uma tradução mais literal da palavra alemão, Kontrollanalyse3, dará a sua preferência à expressão “controle”, em vez de supervisão. São raros os lugares onde menciona este processo, com um destaque nítido para a palavra “controle”. A ambiguidade ficou ampliada pelas questões da tradução, e o tradutor deveria pelo menos ter colocado alguma indicação sobre essa escolha e oscilação:

Acontece que me dou o luxo de supervisionar [grifo do original], como se diz, um certo número de pessoas que se autorizam por si mesmas, segundo minha fórmula, a ser analistas. Há duas etapas. Há aquela em que elas são como o rinoceronte. Fazem mais ou menos qualquer coisa, e sempre dou-lhes minha aprovação. Com efeito, sempre têm razão. A segunda etapa consiste em tirar proveito desse equívoco que poderia liberar algo do sinthoma. Com efeito, é unicamente pelo equívoco que a interpretação opera. É preciso que haja alguma coisa no significante que ressoe (Lacan, 2005/2007, p. 18).

O francês, tanto na versão de Miller como naquela da Association Freudienne Internationale, utiliza a palavra contrôler, que foi traduzida pelo português como “supervisionar” e que deixa a ambiguidade, exatamente sobre o uso, por Lacan, da expressão analyse de contrôle, ou ainda de contrôle e não da palavra supervision. Não vamos entrar mais adiante neste assunto que, porém, valeria a pena de uma elaboração mais ampla. O importante, aqui, é o fato de que Lacan fez questão de utilizar a palavra contrôle como tradução da expressão alemã Kontrollanalyse.

Voltando para o Instituto, ele inaugura uma nova era na história da psicanálise, já que a paixão e o desejo dos precursores deixam lugar à organização, à regulamentação, à burocracia, à “ditadura da secretaria”, na expressão feliz de Sachs (1947). O mesmo Sachs dizia, em 1930, que “a análise precisa de alguma coisa que corresponde ao noviciado na Igreja” (Sachs, 1930/1985, p. 162). Um Sachs visionário que antecipa, com essa asserção, toda uma vertente da formação analítica que ainda não conseguiu se desfazer dessa referência pesada. Pensando no artigo de Freud (1921/2011), não podemos evitar a associação com as duas massas descritas, o exército e a Igreja. Estamos claramente do lado da Igreja neste momento fundador em que o Instituto de Berlim teve um papel importante na estruturação da formação analítica conforme modelo eclesiástico, com seus desfiles de monges, abades, bispos, cardeais e papas que cada grupo ou escola ia em seguinte instituir e reverenciar.

Do outro lado, o Instituto foi também o primeiro lugar a oferecer tratamentos psicanalíticos acessíveis a todos, inaugurando, assim, a existência de múltiplas instituições sociais que funcionam no mundo atual. Dependendo dos sistemas de saúde de cada país, esses centros podem ser subsidiados e muitos analistas conseguem, desse modo, conjugar a prática social da psicanálise com a necessidade de ganhar os recursos necessários para se manter financeiramente. O problema é claramente político e só pode se resolver a partir de políticas de saúde efetivas com contratações de profissionais habilitados e competentes.

Então, a supervisão aparece neste contexto histórico e vai apresentar várias formas e tipos de verbetes, indo da palavra “supervisão” até “análise de controle”, passando pelas famosas “consultas4”, este último termo – mais usado nos países de língua inglesa – sendo geralmente usado quando se trata de encontros fora do tradicional enquadre de formação dos candidatos dos institutos. Resumido por Radó:

Os estagiários devem, a intervalos curtos, fazer um relatório ao diretor da policlínica sobre o desenrolar dos seus tratamentos, e este os aconselha sobre todas as questões conexas. Essas discussões acontecem geralmente na ausência do doente, mas, se necessário, sínteses podem ser organizadas incluindo o doente. Esta instituição passou firmemente a ser utilizada sob a designação de “análise de controle” e acabou por ser a melhor forma realizável do ensino prático (Radó, 1930/1985).

Aliás, Freud já tinha chamado a atenção para a necessidade de cuidar das questões ligadas à personalidade dos analistas, quando lembrava que “não apenas o Eu do paciente, também as particularidades do analista têm seu lugar entre os fatores que influem nas perspectivas do tratamento analítico e o tornam mais difícil, à maneira das resistências” (Freud, 1937/2018, pp. 317-318).

 

Como era?

Saraiva e Tiellet Nunes (2007) fizeram uma meta-análise dos artigos publicados e referenciados nas revistas brasileiras sobre o assunto, entre 2001 e 2006. Foram encontrados treze artigos tratando explicitamente da supervisão no contexto psicanalítico. As autoras lembram que a supervisão faz parte de um dos três pilares da formação, juntamente com a análise pessoal e a formação teórica. Destacam a posição de mestres, validados pelas instituições, que os supervisores tinham. As qualidades supostas dos supervisores são enumeradas e, segundo as pesquisadoras, bem diferentes de um autor para outro. Defendem o interesse da supervisão para o candidato, já que vai dar rumos e objetivos mais concretos para sua prática iniciante. As autoras conseguiram extrair onze categorias de assuntos para a análise desses treze artigos, o que já mostra a disparidade de ângulos e de perspectivas dos autores considerados. As categorias são as seguintes: questões históricas; papel/função do supervisor; finalidade da supervisão; impasses; responsabilidade do terapeuta supervisionado; transferência e contratransferência; utilização de casos/exemplos; supervisão em grupo; novas patologias; supervisão de estágio e o fato de que a supervisão é pouco discutida (Saveira & Tiellet Nunes, 2007, p. 262).

Nas conclusões do artigo, as autoras questionam essa ausência, ou escassez, do assunto da supervisão nas publicações. Será que esse fenômeno estaria ligado a questões de poder nas estruturas das instituições analíticas? Voltaremos a essa questão fundamental do poder na prática da supervisão, quando abordaremos as concepções mais recentes sobre o assunto.

Zimerman (2004/2008) apresenta uma visão geral, ampla e nuançada da concepção clássica da supervisão. Sintetiza, assim, várias abordagens numa apresentação um pouco acadêmica, mas integrativa, da abordagem da supervisão na IPA no Brasil de hoje. Começa lembrando que

hoje, ninguém contesta a importância fundamental que a supervisão sistemática e obrigatória – com um mínimo de horas a serem cumpridas, com mais de um paciente em análise formal, segundo os critérios da IPA – representa para a formação de um candidato à obtenção de condição de psicanalista (Zimerman, 2004/2008, p. 407).

O objetivo fica claramente aqui exposto, no sentido da formação e da “obtenção de condição psicanalítica”, mesmo se essa última expressão seja um pouco enigmática. Como se manifesta essa obtenção? Quem a decide? E outras perguntas… Até é lembrado que, na França, esse processo continua até o fim da análise do paciente. Uma tal posição só enfatiza o adiamento da “condição de psicanalista” para um futuro indeterminado e longínquo. Esta condição dificulta claramente o acesso dos candidatos à profissão e perpetua a ordem hierárquica dos circuitos do poder nos grupos analíticos, com uma gerontocracia atuante no modelo da igreja descrito por Freud (1921/2011).

Zimerman continua com a descrição detalhada das condições necessárias tanto para o supervisionando como para o supervisor. Então, como existem critérios de analisabilidade de pacientes “candidatos” à análise, o mesmo dispositivo se encontra em relação aos candidatos e aos analistas supervisores da instituição. Assim, o supervisor deve apresentar as condições seguintes: não se achar, ter consciência dos limites, respeitar o estilo do outro, se dar conta de que representa um modelo de identificação, funcionar como continente, estimular o candidato, ser atento a não seduzir o candidato e não confundir seu papel com o do analista do candidato.

Uma parte interessante do estudo de Zimerman é acerca da consideração do vínculo entre supervisor e supervisionado, dentro do processo. Aqui, o autor passa, tangencialmente, muito perto de uma concepção mais contemporânea do assunto, mas se afasta a partir de duas considerações um pouco equivocadas: uma leitura, no “senso comum”, da expressão lacaniana do “sujeito suposto saber”, que não tem como significado o fato de o supervisor se achar, “movido por um narcisismo exagerado” (Zimerman, 2004/2008, p. 410), mas bem o questionamento do próprio sujeito, representado por um significante para um outro significante, enquanto suposto saber, o que entra em dialética com a expressão vizinha do “saber suposto sujeito”. Isso, naturalmente, difere, de maneira radical, de uma leitura do analista que “sabe” ou que acha que sabe. A segunda consideração, que precisamos nuançar mais, é quando diz que

o enredo do teatro da mente do paciente seja projetado no analista-candidato, o qual, por sua vez, da mesma forma, reproduza com o supervisor a “encenação” (enactment em inglês, para definir este fenômeno que consiste em o paciente fazer com que o analista encene, desempenhe um determinado papel) (Zimerman, 2004/2008, p. 410).

A encenação, que constitui um conceito fundamental da psicanálise relacional, faz parte de um conjunto maior de conceitos, com a dissociação, a multiplicidade dos estados do self, a relacionalidade e a noção de inconsciente implícito e procedural. Neste sentido, ela não “consiste em o paciente fazer com que o analista encene”, o que deixaria o analista no seu papel de tela branco, de espelho opaco, de distanciamento do cirurgião, de um lado, e o paciente, do outro lado, único responsável pelas identificações projetivas no seu “enredo do teatro da mente”. A encenação é, pelo contrário, uma produção cocriada pela dupla, de maneira inconsciente, e aponta para a necessidade de os elementos dissociados5 se manifestarem dessa maneira. Sendo não simbolizados, esses elementos não podem ser apresentados de uma outra maneira, e essa apresentação constitui uma cocriação da dupla em que cada um tem sua parte, de maneira igual. Os elementos inconscientes resgatados no analista encontram os elementos dissociados do paciente para a cocriação da encenação. Agora, a hipótese de Zimerman é clinicamente muito aguda quando se refere ao fato de que esse processo pode ser transferido (quase no sentido literal da palavra) para o processo em curso entre supervisor e supervisionado. Este fenômeno é, sem dúvida, uma das apostas mais instigantes da concepção da supervisão na psicanálise relacional.

Essa parte muito interessante do vínculo entre supervisor e supervisionado traz depois uma pequena lista das patogenias deste vínculo, que podem acontecer durante o processo da supervisão:

a) a supervisão ficar restrita exclusivamente ao caso [grifo no original] e não às particularidades do candidato [grifo no original] em formação psicanalítica; b) o supervisionado ficar unicamente no papel de observador do supervisor que, então, dita de forma magistral e categórica o que aquele “deve” fazer; c) é relevante observar o “tipo de transferência” que possivelmente se estabelece entre ambos; d) o risco de a supervisão redundar em um trabalho apenas burocrático… e) os inconvenientes para o candidato, e para o supervisor, de um possível uso excessivo de regulamentação institucional (Zimerman, 2004/2008, p. 411).

Essa lista dos riscos do processo de supervisão foca em alguns pontos relacionais que valem a pena ser destacados aqui. Em primeiro lugar, não se trata apenas do caso, mas também do candidato. O caso não é considerado como um objeto externo, digno de interesse, que deve ser dissecado para mostrar a sua estrutura psíquica e, logo, os ingredientes necessários para sua resolução. Aqui, a presença do candidato é essencial e é considerada em função da formação analítica. Em segundo lugar, o supervisionado precisa se envolver, ser ativo. Ele não foi assistir a uma palestra sobre o caso. Seu desempenho e suas hipóteses são importantes, e o tipo de transferência vai ser considerado. Em terceiro lugar, a burocracia e as pressões institucionais podem atrapalhar o processo e é necessário ficar atento nisso.

Mas, no final das contas, falta um elemento crucial aqui. As patogenias do vínculo são pensadas de maneira unilateral, do lado do supervisionado e/ou da relação supervisionado/paciente. Não lemos nada sobre o supervisor e suas encenações, sobre sua contratransferência, suas dúvidas, suas cegueiras, suas dissociações. Parece que o fato de este processo acontecer no contexto da “formação do analista” deixa o supervisor um pouco fora do campo, e é a avaliação do candidato que está ocupando principalmente o palco dessa peça. Aliás, os três objetivos da supervisão, definidos por Zimerman, são os seguintes: a educação analítica, a instrumentação e a construção do sentimento de identidade do terapeuta psicanalítico (Zimerman, 2004/2008, p. 411). Neste sentido, o analista supervisor é um educador, um facilitador do acesso à técnica psicanalítica e à natureza do processo, também da construção dessa identidade de terapeuta analítico com o reforço das suas qualidades de continente, de empatia, de aliança terapêutica, fazendo conexões entre a teoria e a técnica.

 

E agora?

Vamos considerar, agora, algumas posições contemporâneas sobre supervisão. Frawley-O’Day (2003/2008) considera três eixos para descrever o processo de supervisão: “o poder e a autoridade, os dados considerados como relevantes para as conversas de supervisão, e o modo de participação do supervisor no processo” (Frawley-O’Day, 2003/2008, p. 355, tradução minha). Naturalmente, esses três eixos se superpõem constantemente nos encontros que caracterizam uma supervisão.

Mas, antes de entrar de maneira mais direta na análise desses três eixos, precisamos primeiro destacar um problema que pode ser recorrente nessas questões de supervisão, que é a questão das teorias de referências presentes nesse processo (Aron, 1999). Os institutos de formação, em relação às suas histórias, têm fundamentações teóricas relativamente homogêneas, o que permite uma consistência – imaginária – dos pontos de vistas dentro de um mesmo instituto. Os perigos, que conhecemos através das escolas e associações de psicanálise da segunda metade do século XX, são inerentes à endoutrinação ligada aos grupos constituídos, com suas teorias de referências. O resultado pode ser uma forte pressão para desencorajar qualquer tipo de iniciativa inovante da parte dos candidatos, o que pode terminar produzindo um tipo de “falso self analítico, imitativo e submisso” (Berman, 2014, p. 525, tradução minha). Do outro lado,

Um instituto heterogêneo, no qual pontos de vistas divergentes coexistem, oferece uma melhor oportunidade para cada estudante em formação encontrar sua própria voz única. Mas, pode apresentar os “perigos da diversidade”: a confusão causada pelas opiniões contraditórias (Berman, 2014, p. 525, tradução minha).

O caso do Instituto Psicanalítico Israelense oferece um bom exemplo deste último caso. O Instituto foi fundado em 1934 pelo próprio Eitingon, quando emigrou para a Palestina, de maneira definitiva. Colocou em prática sua experiência de Berlim para fundar o novo instituto e a instituição evoluiu, a partir da sua orientação tradicional para uma configuração pluralista em que se pode encontrar, hoje, influências de Freud, Klein, Bion, Winnicott, a psicanálise francesa e o movimento relacional-intersubjetivo (Berman, 2014). Uma das questões complicadas entre essas orientações diversas é, por exemplo, o problema da analisabilidade. Em função dos autores de referências, a própria analisabilidade pode causar problemas institucionais agudos. Seguindo Balint (1969/1992), Berman considera que “a analisabilidade, como atributo do paciente só, é uma ficção e que a questão relevante é a capacidade da dupla analítica específica de trabalhar analiticamente” (Berman, 2014, p. 526, tradução minha).

Cada escola tem seu funcionamento e sua teoria, sua doutrina sobre a formação necessária. Antes de Lacan (1978) e da EFP, o modelo era quase único e a prática de Lacan transformou bastante a paisagem da formação analítica e, logo, da supervisão. Mas essa questão remete automaticamente ao primeiro eixo proposto por Frawley-O’Day, o de poder e autoridade. De maneira institucionalizada, a posição de supervisor, dentro do processo de formação dos institutos, está ligada aos comitês de gestão e administração das sociedades e escolas, com as comissões de formação e seus responsáveis. A escolha de um supervisor no processo do candidato tem consequências importantes à sua formação. Paralelamente, a necessidade de poder se integrar na sociedade ou na associação passa pelo “bom” funcionamento do processo de análise de controle, porque entrará na avaliação do candidato adiante. É claro que a escolha das palavras “controle” e “supervisão” não pode negar sua relação com questões de poder. Assim, por exemplo, na teoria das organizações, “o conceito de controle está intimamente relacionado àquele de poder, no sentido de que ele pressupõe a ação de alguém ou algo sobre o comportamento do outro” (Martins, 2006/2012, não paginado). Esse contexto de poder dentro das instituições analíticas perpetua questões não resolvidas sobre a organização e o funcionamento dos grupos analíticos, assim como as condições e os pré-requisitos do acesso à profissão. A isso vem se juntar a própria disposição do candidato, que pode ter várias fantasias sobre o processo de supervisão, com um destaque à dimensão identificatória presente neste lugar. Ou seja, questões do tipo “o que meu supervisor faria nessa situação?”, ou “se eu fizer ou falar isso, será que meu supervisor vai gostar?”, ou, ainda, “não posso perder este paciente porque é muito importante para minha formação, por causa da análise de controle que estou fazendo com ele” e por aí vai. Assim, neste contexto,

O poder e a autoridade do supervisor são assumidos e dependem da sua posição na comunidade psicanalítica ampliada, patrocinando a supervisão. Sua própria formação e análise, os anos de experiência e a posição de professor/supervisor o investem com o direito de supervisionar. Através desse paradigma de poder e autoridade, o supervisor é considerado mais ou menos como um experto objetivo que, removido da matriz relacional do tratamento supervisionado, pode ensinar ao supervisionado a teoria e as técnicas aplicáveis no caso sendo discutido. Desse jeito, o conhecimento é transmitido de cima para baixo, didaticamente, de um clínico sênior para um clínico júnior (Frawley-O’Day, 2003/2008, p. 358, tradução minha).

Na psicanálise relacional, essas questões são tratadas de uma maneira diferente. Não se trata, aqui, de negar o impacto dos movimentos identificatórios e de outros que acontecem entre o supervisionado e o supervisor. A discussão é muito mais à volta da própria análise dessa questão da autoridade e do poder, dentro do processo de supervisão mesmo. Cada vez mais6, fica primordial voltar a questionar os eventos acontecendo dentro dos próprios encontros de supervisão, sem deixar passar esses assuntos de poder e de autoridade como “óbvios”, como se não necessitassem de análise. Essa negociação é permanente para que a relação de supervisão seja autorizada e reautorizada pela dupla. Neste sentido, o supervisor e o supervisionado co-constroem a relação de supervisão, que repete, com autossimilaridade fractal, os acontecimentos da outra dupla, a do supervisionado (analista) e paciente. Essas duplas entram no processo de autossimilaridade, ao mesmo tempo em que uma estrutura ternária é instaurada entre os três protagonistas, permitindo uma travessia das encenações de um nível para o outro e, assim, um trabalho dessas encenações nos acontecimentos da supervisão, como sendo similares àqueles da própria análise do paciente com o analista (supervisionado). Não esquecemos, nesse processo, a presença sempre importante dos analistas do supervisionado e do supervisor. Tudo isso configura uma comunidade em que as questões de poder e de autoridade necessitam de uma abordagem flexível e sempre negociada, para poder colocar o sistema em condições de auto-organização e de transformação, das quais o processo de supervisão precisa. Talvez seja o elemento mais saliente dessa questão: facilitar as condições que permitem a auto-organização, qualquer que seja a direção que esta tomará. Vemos aqui, então, que a própria noção de controle fica totalmente alheia a uma prática com tais parâmetros.

O trabalho de supervisão aborda a mutualidade inevitável dos protagonistas – supervisor e supervisionado – com a multiplicidade dos outros níveis de encontro ligadas a essa situação: supervisionado (analista) e paciente, supervisionado e analista dele, supervisor e analista dele, e até o paciente com outros terapeutas com quem pode ter consultas ou tratamentos (psiquiatras, fisioterapeutas, terapeutas manuais, mindfulness etc.). Naturalmente, essa mutualidade não existe sem a sua contrapartida de assimetria (Aron, 1996), sem a qual o processo analítico e a supervisão não podem existir.

O segundo eixo analisa os dados considerados como relevantes para fazer parte do processo de supervisão. Claro que aqui intervém a teoria – ou as teorias – de referência do analista supervisor. Berman (2014) relata uma situação de bloqueio de um processo de supervisão, quando a supervisionada, de repente, disse a ele que achava suas intervenções e posições “leves demais” e que ela precisava de “interpretações profundas” para o trabalho dela. Anos depois da mudança de supervisor, o que sucedeu o momento em que a ex-supervisionada mencionou isso, Berman se deu conta, então convivendo com ela enquanto colega, de que as referências dela eram basicamente apoiadas nas teorias de Klein e Bion. Ou seja, a abordagem relacional proposta por Berman não encontrava os critérios intrapsíquicos de dados relevantes e válidos para que a supervisionada os considerasse úteis para a continuação do seu trabalho com o caso do paciente discutido durante os encontros de supervisão. Esse ponto mostra a necessidade de o supervisor sempre deixar, no fim da sessão, um momento – que pode ser rápido – para fazer uma avaliação do trabalho realizado. Esse momento pode trazer dúvidas sobre algumas teorias de referências, expectativas do supervisionado e a maneira como imagina que a supervisão tenha que ser, com os conceitos por ele considerados pertinentes. O mesmo pode, aliás, também acontecer no processo analítico, quando o paciente, já informado de algumas teorias psicanalíticas, “espera” que a sua análise esteja como tal artigo ou livro que já leu sobre o assunto.

Uma grande mudança operou desde a virada trazida pela psicanálise relacional, que apareceu na década de oitenta nos Estados Unidos. Mesmo que este movimento ainda seja pouco conhecido no Brasil7, pouco a pouco ganha um pouco de espaço com o interesse das novas gerações de terapeutas e de analistas, insatisfeitos e insatisfeitas com as referências tradicionais que permanecem como único eixo válido considerado na formação analítica do Brasil. Essa mudança de paradigma, que alcança também, de uma certa maneira, a psicanálise tradicional, salienta tais elementos como relevantes. Passamos, assim, de uma psicanálise focada principalmente nas questões de conteúdos, com interpretações desses conteúdos, para uma psicanálise orientada para o processo e para as vicissitudes que este processo apresenta nas suas várias modificações e reorganizações. A interpretação estava proeminente na primeira posição, com os conteúdos de referências ligadas às especificidades de cada grande teórico da história da psicanálise: o édipo e o modelo estrutural para os freudianos; as fantasias inconscientes e as posições para os kleinianos; a alfabetização, o sem memória e o desejo para os bionianos; o significante, o objeto a e a suplência para os lacanianos; o objeto transicional e o holding para os winnicottianos8 etc. Com destaque à noção de processo, são outros os parâmetros de intervenção considerados no âmbito da psicanálise relacional: cocriação do espaço e do tempo analíticos; dissociações e encenações partilhadas com suas necessárias autorrevelações para sair dos impasses; multiplicidade dos estados dos selves dos protagonistas da dupla, a cada momento; necessidade de recursos bottom up (Krutzen, 2023) para a abordagem de situações traumáticas etc. Fica claro que essa mudança de paradigma não significa que a herança do passado e da história da psicanálise deva ser jogada no lixo. Trata-se muito mais do foco, o qual passou para a consideração do processo em andamento, sem por isso negar a necessidade de elaborar alguns assuntos importantes – conteúdos – para a vida do paciente. Ou seja, as descobertas da física quântica não invalidam o fato de que as maçãs continuam caindo no chão e de que as leis newtonianas permanecem válidas. Mas o contexto foi ampliado, e essas leis estão agora incluídas num conjunto muito maior, reclamando outras referências de construções metapsicológicas (Krutzen, 2018/2022).

Agora, as consequências dessa mudança são enormes. Um supervisor que considera, de maneira primordial, a importância de alguns assuntos e conceitos terá uma posição e uma atitude, no momento da supervisão, bem diferentes das do seu colega que considera o processo como sendo a referência principal a trabalhar nos encontros. Daí uma explicação possível daquilo que aconteceu com Berman (2014), quando a sua supervisionada falou que ele era “leve demais”. Mais uma vez, a flexibilidade, na clínica contemporânea, é cada vez mais importante e a adaptação do enquadro, juntamente com as posições analíticas diferenciadas, se torna uma necessidade imprescindível. Por exemplo, a posição clássica, deitada no divã, com o analista sentado atrás, mergulhado na atenção flutuante, enquanto o paciente segue os meandros da sua associação livre, pode se revelar crucial para um paciente que nunca foi escutado na sua vida, que sempre foi interrompido por uma mãe ou por um pai invasivos, que já sabiam “tudo” de que precisava, no lugar dele. Neste caso, o silêncio empático do analista pode ter um papel fundamental para deixar o paciente explorar e circular na sua fala, sem ser interrompido por alguma interpretação “esclarecida” que poderia – nesse caso – ser vivida como mais uma invasão. Este exemplo, embora não represente a situação mais comum da clínica contemporânea, deve ser tomado em conta nas multiplicidades dos estados do self com que nos deparamos cotidianamente. Ou seja, o dispositivo clássico – a maçã continua caindo da árvore – permanece válido, mas a singularidade de cada caso mandará o dispositivo adequado à situação. Este tipo de posição tem, naturalmente, consequências importantes sobre o processo de supervisão, que será considerado com os mesmos critérios de singularidade e de multiplicidade dos estados dos selves, entre todas as pessoas presentes, física ou virtualmente: o paciente, os outros terapeutas que o paciente encontra, o analista, o analista do analista, o supervisor, o supervisor do supervisor e o analista do supervisor. Toda essa comunidade – e provavelmente outros seres e objetos não humanos – estão presentes neste momento, implícita ou explicitamente.

Essas mudanças trouxeram novas visões e elaborações sobre o processo de supervisão. Se isso não significa a rejeição dos “conteúdos” para fora do foco da supervisão, o processo é considerado como sendo o lugar dos acontecimentos onde os possíveis conteúdos podem ser apresentados. A estrutura necessariamente embutida das várias situações transferenciais abre um espaço para pensar e para trabalhar fenômenos como reposições ao terceiro nível de situações que aconteceram no primeiro, pulando assim o segundo nível. Por exemplo, “o que acontece quando o terapeuta é uma candidata e seu supervisor reencena com ela o abuso vivido pela paciente?” (Castellano, 2013, tradução minha). Temos, aqui, três níveis emaranhados: no primeiro nível, temos a paciente e seu abusador; no segundo, a terapeuta e sua paciente; no terceiro, o supervisor e a terapeuta/candidata. Essas situações, que podem causar a disrupção da relação de supervisão (Sarnat, 2014) quando envolvem encenações muito poderosas, reclamam explorações conjuntas da dupla supervisor/supervisionado. “Os aspectos cognitivos da supervisão devem passar para o segundo plano e o supervisor deve começar a trabalhar com suas próprias defesas contra a angústia, junto com aquelas dos supervisionados e da influência da instituição envolvida” (Sarnat & Seligman, 2014, p. 524, tradução minha). Ou seja, as supervisões estão determinadas pelas mesmas situações complexas – às vezes ainda mais –, de maneira intrapsíquica e relacional, dos próprios processos analíticos. “Desejos, transferências, ambições, ansiedades de todo tipo inevitavelmente emergem na interação entre supervisionado, supervisor e paciente(s), e os representantes das instituições onde essas relações estão embutidas” (Sarnat & Seligman, 2014, p. 523, tradução minha). As disrupções que acontecem necessitam do mesmo cuidado – dentro do processo de supervisão – que as encenações apresentadas pelo processo analítico, necessariamente a partir dos elementos dissociados – não recalcados – dos vários estados dos selves em presença e dos seus protagonistas: paciente, analista, supervisor e outros. Então, “a função do supervisor vai além do ensino da teoria e da técnica para incluir o trabalho com as reações emocionais de ambos [grifo meu], supervisor e supervisionado” (Sarnat & Seligman, 2014, p. 523, tradução minha).

 

Em última análise…

Seguindo agora uma ideia de Aron (1999), propomos a parábola seguinte: uma analista A atende um paciente P pela primeira vez. A trabalha num consultório que lhe foi sublocado pela analista B. A ambientação, os móveis, os quadros pertencem todos a B, e A utiliza o consultório durante dois turnos por semana. Quando P entra no consultório pela primeira vez, olha para A, para a sala e comenta: “esse consultório não está a sua cara!”. Vamos imaginar, agora, que A aperta o botão “pausa” e pensa sobre as reações possíveis depois dessa fala do “novo” paciente.

A poderia acionar o seu supervisor W interno. O que W ia dizer? Provavelmente o seguinte: P acabou de chegar, você não sabe nada sobre ele. Você está ali para escutá-lo. Fique em silêncio e vamos aguardar o que vai vir depois. W é um freudo-lacaniano tradicional e quer deixar um tempo para a situação analítica se instalar. Nada de intervenção brusca num primeiro momento de encontro. Além disso, é importante não esquecer que não é para responder positivamente a nenhuma demanda do paciente. O que está aqui em jogo é o desejo de P, numa tensão entre a sua demanda e a necessidade. Como toda demanda é sempre uma demanda de amor, não é para gratificar P com o amor ilusório de uma resposta positiva à sua demanda. Aliás, não estamos aqui para conversa de boteco, trata-se de análise e, desde o primeiro momento, nossa atitude deve estar congruente com o lugar do analista. Pois bem!

Nessa altura, com o botão “pausa” ainda apertado, A chama a supervisora X. Será que X teria a mesma coisa a dizer? X é kleiniano, e essa situação vai lhe inspirar outra intervenção. P entrou na sala e fez este comentário. Não sabemos por que nem temos a menor ideia do que pode ter motivado P a fazer este comentário. Então, vamos indagar o que levou P a falar isso para A, dizendo, por exemplo: “Boa tarde, P, o que é que lhe deu essa impressão ao entrar na sala?”. Saindo com essa pergunta, X propõe que A indague cada vez mais as fantasias que P tem sobre a situação, sobre A, sobre o início da análise. A ideia é de orientar imediatamente o enquadre e o trabalho para as fantasias inconscientes que levaram P ao consultório e, logo, a fazer este comentário inaugural. Será que alguma inveja estaria envolvida nessa observação de P? X ajudaria A a indagar e aprofundar essas fantasias inconscientes, que levariam aos conceitos de posições e de reparo para o trabalho com P. Ou seja, neste contexto, não é para responder à demanda de P, mas indagar de onde vem este comentário e como ele já oferece muitas hipóteses possíveis para a análise que P está iniciando.

Mas, neste momento, A se dá conta de que o supervisor Y está levantando a mão e quer também entrar no debate sobre a atitude a tomar com a situação da chegada de P ao consultório. Y é winnicottiano e tem outras ideias sobre essa situação. Y acha que, num primeiro momento como esse, o acolhimento de P é uma coisa fundamental e que um cuidado deve ser dedicado particularmente neste primeiro instante de encontro. Talvez o paciente esteja desamparado, ansioso com esse primeiro encontro ou receoso de que A possa não cuidar bem dele. Talvez P seja uma pessoa muito intuitiva que precisa de holding para aguentar a angústia que este momento de início de um processo analítico pode produzir nele. Ou será que seu comentário tem um caráter agressivo, uma maneira de passar, em modo de ataque, algo que percebeu sem ter exatamente noção do que é, mas que lhe lembra os momentos difíceis de abuso e/ou de negligência que viveu com a sua mãe? Y vai ter uma posição mais amena com P e vai propor a A de agir com delicadeza e leveza, de acolher P para que se sinta bem-vindo, escutado e cuidado, coisas que talvez nunca aconteceram na vida dele anteriormente. Nesse caso, A deveria oferecer a P uma visão de que as coisas não precisam acontecer sempre do mesmo jeito e de que mudanças são, sim, possíveis. P atuaria, aqui, dentro do modelo de relação de objeto preconizado por Y e não ficaria impossível de explicar a P por que o consultório “não está a sua cara”.

Chega, então, a supervisora Z, que também acha que pode ter algumas opiniões sobre essa situação. Z vai mudar o foco. Como A está se sentindo com o comentário de P? Ficou comovida? Angustiada? Com medo? Achou engraçado? Ou viveu esta entrada de P como uma invasão? Ficou com vergonha porque não tem consultório próprio e P se deu conta disso? Ou ficou culpada de não conseguir se posicionar “bem” em frente a P? Z iria mais longe. Como A acha que essa primeira frase está configurando a relação entre P e A? Como A negociou este tipo de acontecimento na sua prática clínica antes de P chegar? Como A se sente, por exemplo, ao não responder à demanda de P? O que A imagina ou fantasia sobre a pergunta de P? Será que, na sua análise, A nunca faz/fez nenhuma demanda para seu analista? Nunca faz/fez comentários sobre o contexto das sessões, sobre o estilo do analista etc? O que teria acontecido se A tivesse tocado tais assuntos na sua análise? Será que A considera que são coisas “não analíticas”? Enfim, com todas essas perguntas – e muitas outras –, Z vai indagar como, desde o primeiro instante, a relação entre A e P está em construção e que essa relação só poderá existir de maneira bilateral, qualquer que seja a atitude de A em relação ao pequeno evento da chegada de P. Z trabalha mais na orientação relacional e vai ajudar A a tomar conta das suas próprias reações, juntamente com P, para conseguir enxergar e entender o que está acontecendo, agora entre eles.

Tudo bem! Mas isso aconteceu num momento imaginário, quando A pressionou o botão “pausa” e entrou neste devaneio de supervisores conversando dentro dela, como partes do self com uma certa independência. Mas isso, claro, nunca poderia acontecer numa situação real e funciona apenas no contexto da nossa pequena parábola. O que vai acontecer na realidade? A não terá muito tempo para pensar sobre a sua posição, pode ser que isso aconteça depois e que A procure uma supervisão para clarificar melhor o que aconteceu no momento da entrada de P no consultório. Como A vai fazer para reagir? É precisamente aqui que a formação de A entrará em ação. Quais são as referências teóricas de A? Não intelectuais, mais vividas, digeridas, como diria Bion (1962/1991)? O que é o estilo espontâneo de reação que A é capaz de vivenciar com um paciente como P, sem pensar, simplesmente porque está exatamente neste lugar, neste momento e que P acabou de entrar na sala? Claro que não podemos nos furtar a imaginar que trabalhamos sem teoria nenhuma. Nosso(s) analista(s) estão presentes dentro de nós, nosso(s) supervisor(es) também. Sem falar das horas que passamos estudando a teoria de tal ou tal autor. Podemos ver, aqui, como nossas identificações têm um papel fundamental nas escolhas que fizemos e que continuamos fazendo, para responder, ou não, à entrada de um paciente como P. Quais são os autores que lemos? Quais são os seminários, os grupos de trabalho dos quais participamos? Que tipo de conferência ou de congresso escolhemos como pertinentes para nossa formação? Todas essas questões terão um efeito determinante sobre a maneira como responderemos ao comentário de P quando entrou no consultório. Não podemos neutralizar tudo isso, e nossas escolhas estão bem presentes a cada momento que estamos escutando, e falando, durante as sessões, e fora delas, com nossos pacientes.

Então, o que fazer? Em outro lugar (Krutzen, 2023), dedicamos um subcapítulo sobre a questão da empatia e da intuição. Vimos que os circuitos da empatia são triplos e definem modos diferentes de se relacionar empaticamente. Mergulhar na convivência emocional da outra pessoa, identificando-se afetivamente com suas emoções profundas, é uma primeira figura da empatia. A capacidade cognitiva de entender o outro e de se colocar no lugar dele corresponde à mentalização (Fonagy, Gergely, Jurist & Target, 2002) e constitui um segundo tipo de empatia. Enfim, a autorregulação constitui uma terceira empatia. Essas três figuras da empatia têm circuitos e especificidades neuronais diferentes. A intuição, do seu lado, oferece ligações diretas com os circuitos implícitos do nosso cérebro social, com acesso ao nosso inconsciente relacional, em que estamos em contato permanente com o outro durante a sessão toda, e mais além. Ou seja, as ideias freudianas de comunicações entre inconscientes e a famosa Einfühlung, que será retomada por Ferenczi no seu artigo sobre elasticidade (Ferenczi, 1928/1992), encontraram confirmação e ampliação nas neurociências de hoje. É fundamental a distinção entre esses tipos de empatias, de um lado, e entre a intuição e os impulsos reacionais, de outro, que podem empurrar o analista a atuar em cima do paciente. A transdisciplinaridade, aqui, se revela indispensável. E essas diferenças clínicas cruciais podem ser abordadas e elaboradas nas supervisões que consideram o lado cocriado de cada encontro analítico, com seus concomitantes de dissociações, encenações, multiplicidade dos estados do self, autorrevelações e regulações recíprocas. Todos esses fenômenos envolvem a estrutura fractal na qual os encontros embutidos repetem seus padrões até encontrar o ponto de bifurcação onde o sistema pode se reorganizar (Krutzen, 2018).

Em última análise, deixamos a palavra a Bromberg (2011, p. 144): “Existem coisas importantes a aprender sobre como fazer psicoterapia desde que possa as esquecer enquanto você está com seu paciente”. E aqui se encontra o mais contemporâneo – o pensamento de Philip Bromberg – com o mais clássico – o sem memória e sem desejo de Wilfred Bion (1967/1988).

[1] Roudinesco, comunicação pessoal.

[2] Alguns dos dados a seguir podem aparecer num contexto diferente em Krutzen (2018/2022).

[3] Literalmente traduzido como “análise de controle”.

[4] Consultation, em inglês.

[5] Não sem evocar os elementos β de Bion (1962/1991).

[6] Como na expressão francesa cent fois sur le métier, remettez votre ouvrage, significando recomeçar sempre de novo como sendo necessário, como escreve Chartier (2009).

[7] Isto se deve sobretudo pela falta de tradução de obras sobre a psicanálise relacional, que são quase todas escritas na língua inglesa, e também – os dois pontos estão vinculados – pela posição conservadora das faculdades de psicologia. A tradição, no Brasil, permanece dividida entre os eixos Klein/Bion, de um lado, e Lacan do outro lado. O foco recente sobre a obra de Ferenczi poderia ter um efeito sobre essa divisão, mas não parece, até hoje, ter aberto um espaço para a psicanálise relacional no Brasil. Uma das consequências disso é a reticência dos editores para investir em traduções e publicações das produções numerosas deste movimento contemporâneo.

[8] Nosso ponto de vista aqui não é de reduzir essas ricas teorias a um ponto só, mas de dar exemplos dos conceitos de referências implicados nessas abordagens.

referências

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Henry Krutzen

Belga, psicólogo e psicanalista. Membro do Questionnement psychanalytique (Bélgica), membro da International Association for Relational Psychoanalysis and Psychotherapy (IARPP), membro do Grupo Relacional Iberolatinoamericano de Psicoterapia y Psicoanálisis (GRILPP). Reside e atende em João Pessoa (PB). Autor de Ecopsicanálise (2023), São Paulo: Zagodoni. Contato: henrykrutzen@gmail.com