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03_Mulheres usuárias de drogas e o sequestro de seus filhos

Isadora Simões de Souza

Maria Cristina Gonçalves Vicentin

Vietnã

Mulher, como você se chama? – Não sei.
Quando você nasceu, de onde você vem? – Não sei.
Para que cavou uma toca na terra? – Não sei.
Desde quando está escondida? – Não sei.
Por que mordeu o meu dedo anular? – Não sei.
Não sabe que não vamos te fazer nenhum mal? – Não sei.
De que lado você está? – Não sei.
É a guerra, você tem que escolher. – Não sei.
Tua aldeia ainda existe? – Não sei
Esses são teus filhos? – São.

Wislawa Szymborska

A criminalização das mulheres usuárias de drogas é uma política de discriminação de gênero, como refere a autora Susan Boyd (2019), ao apontar que a violência social e econômica do colonialismo é ainda mais dramática quando nos referimos às “mulheres pobres, grávidas ou mães, principalmente quando não são brancas” (Boyd, 2019, p. 215).

A autora sinaliza que, nas décadas de 1980 e 1990, foi construída uma narrativa baseada em falsas evidências sobre as histórias dos crack babies, na qual se afirmava que o uso de crack era prejudicial aos fetos. Isso foi movimentado pelos testes do cabelo realizados pelo Hospital de Toronto. Porém, anos mais tarde, verificou-se que esses testes eram imprecisos, sendo que muitas famílias já haviam sido destruídas em função de falsos resultados. 

Carl Hart (2021), no livro Drogas para Adultos, aponta que os comentários “neuro” sobre as pessoas que consomem drogas, sem base em evidências, acabaram por construir um ambiente – injustificado e irreal – visando eliminar o uso de drogas por cidadãos marginalizados, mesmo que isso significasse atropelar suas liberdades civis. Segundo o autor, ainda, os alarmes decorrentes desses estudos “neuro” se agravaram quando o tema se conectou com o debate sobre os danos da exposição pré-natal às drogas. A crença popular é que a exposição pré-natal às drogas danifica inevitavelmente o cérebro dos fetos em desenvolvimento. Essa opinião foi profundamente replicada e os pesquisadores que relatam descobertas “consistentes” com essa visão desfrutam de mais prestígio de suas pesquisas, “especialmente se os dados de imagens cerebrais forem incluídos” (Hart, 2021, p. 101). O que Carl Hart (2021) aponta é o papel dos saberes biomédicos, na forma de testes e mapeamentos cerebrais, na produção de um jogo de forças, verdades e tecnologias que governam os corpos de mulheres e crianças em situação de vulnerabilidade social e que fazem um uso intenso de drogas. 

Tal é o caso da legislação aprovada em 1986 pelo Congresso dos EUA estabelecendo penalidades muito mais severas para o tráfico de crack do que para as violações do tráfico de cocaína em pó, ainda que sejam a mesma droga do ponto de vista farmacológico: “a diferença é que uma é fumada (crack) e a outra aspirada ou injetada por via intravenosa após ser dissolvido em líquido.” (Hart, 2021, p. 101). Ainda segundo Hart, o que visa essa lei é o fato dela ter como alvo a pessoa que consome o crack: nos Estados Unidos o crack foi utilizado majoritariamente por negros e latinos, em função do custo mais baixo, e a cocaína em pó costuma ser consumida por pessoas brancas.

No caso do Brasil, estudos e pesquisas sobre os itinerários institucionais de mulheres que usam drogas e são mães (Malheiro, 2020; Souza, 2021) evidenciam uma sucessão de violação de direitos: são desmentidas, não há apoio do Estado às suas reais demandas e necessidades e isso resulta na condução de um processo de vida que se torna judicial.  Nesse processo, diferentes dispositivos foram engendrados, sendo operados por redes de juízes, policiais, médicos e outros profissionais do campo da saúde e da assistência. Em nome da pretensa proteção, se desmente e não se escuta, violando, desse modo, os direitos das mulheres e das crianças que já são comumente julgadas pelos seus modos de vida. Estas passam a receber uma nova “sentença”: não podem ser mães e seus filhos não podem ser filhos delas. Por isso, formulamos a imagem de um duplo sequestro, que se apoia, ainda, na produção das maternidades indignas (Souza, 2021). 

Sabemos que se trata de uma problemática complexa que demanda respostas igualmente complexas. Nesse texto, além de situarmos brevemente o que chamamos de sequestro, pretendemos apontar algumas perspectivas de ação, considerando a ideia da proposição de redes, daquelas que vivemos e daquelas redes que sonhamos. E aqui, partimos da problematização de como as redes podem operar de forma “aquecida” e “viva” ou de forma “mortificada”.

 

1. A dimensão do sequestro 

Utilizamos o termo “sequestro” em referência ao modo pelo qual mulheres, que foram afastadas de seus filhos, falam de suas experiências, conforme apontamos em outro estudo (Souza, 2022).  Por sequestro, nos referimos mais especificamente aos modos de condução do processo judicial e da construção de uma “rede fria”, que produz o impedimento da maternidade.  Trata-se de formulações que alimentam uma ideia persistente de que há uma boa mãe e uma mãe ruim, porque “usam drogas, são pobres, são loucas”.

A construção do que é ser mãe, de como esta deve se comportar na relação com a criança, como deve viver, amamentar, amar e tudo mais que se presume que exista em uma relação “inata” entre mãe e filho é fruto do que foi construído com o surgimento do patriarcado e tudo aquilo que as mulheres passaram a viver como condição legítima de convivência, como a dominação e o abuso por parte do homem – e do Estado.

Para Gerda Verden-Zoller e Humberto Maturana (2004), essa forma de estar no mundo, que passou a ser a principal fonte de servidão e escravidão em nossa cultura, é uma consequência da expansão do espaço psíquico do patriarcado. Dessa forma, é importante evidenciarmos a existência de uma estrutura que articula ideias, ações e intervenções pautadas na centralidade da família, que passa a sustentar a ação do Estado sobre o corpo das mulheres e crianças.

  Para nos ancorar no que denominamos sequestro, seguimos com o estudo da autora Berenice Bento (2018) que traz reflexões em relação à necrobiopolítica, fazendo uma relação entre “biopolítica (dar a vida) e a necropolítica (promover a morte)” (Bento, 2018, n.p). A autora trabalha com três situações emblemáticas para pensar a necrobiopolítica: a Lei do Ventre Livre, a detenção indefinida e os autos de resistência, sinalizando ainda que o terror e a morte são elementos estruturantes do Estado brasileiro:

 

[…] quando as pesquisas se referem à violência do Estado contra os corpos abjetos, geralmente se aciona a noção de “soberania” em contraposição à de governabilidade (conjunto de técnicas voltadas para o cuidado da vida, da população). Sugiro outro conceito: necrobiopoder (Bento, 2018, n.p).

 

Atendo-nos ao exemplo que ela traz em relação à Lei do Ventre Livre, a autora aponta que as crianças nascidas após a promulgação da lei seriam livres, mas suas mães continuariam escravizadas: “o tráfico negreiro tinha sido interrompido em 1850, mas as mulheres negras continuaram a procriar e a oferecer a carne necessária para alimentar o sistema” (Bento, 2018, n.p). Essas mulheres, esses corpos, no âmbito dessa lei, expressam o que a autora nomeia como o “necrobiopoder” que estrutura o Estado brasileiro de forma “tentacular e sistemática” (Bento, 2018, n.p).

Por estarmos em uma guerra permanente contra as mulheres – onde o denominador comum é a desvalorização da vida daquelas catalogadas por seus modos de existência, em que a violência se torna uma força produtiva privilegiada para a acumulação do capital, nos deparamos com inúmeras violações de direitos humanos, como mulheres mortas, crianças sequestradas de suas mães, mulheres encarceradas, medicalizadas, laqueadas compulsoriamente, cuja a intenção é que sua voz seja progressivamente silenciada.

Como aponta Veronica Gago (2020), essas violências, esse desejo de produção de silenciamento é uma ideia-força para combatermos, e nos ajuda pensar o que vivemos hoje no Brasil; nas palavras da autora ainda nos restaria “desenvolver a pergunta sobre a atualidade, trata-se de pôr à prova a atualização das caças às bruxas como hipótese política” (Gago, 2020, p. 75).

Isso mostra o tamanho da ameaça que as mulheres representaram e seguem representando para uma determinada concepção de família, mas ainda assim, ressaltamos a força de resistência dessas mulheres que, mesmo vivenciando histórias tão duras, conseguem escapar e confrontar o próprio regime.

A autora indiana Veena Das (2020), ao pensar as relações entre tempo e subjetividade, trauma e testemunho, nos leva a considerar necessariamente os impactos psicossociais da construção dessas maternidades indignas como efeito do necrobiopoder. O que podemos entender é que as repercussões do trauma permaneceram ao longo dos anos, efeito das sentenças sobre muitas mulheres que foram julgadas como inadequadas, mães ruins, afetando diretamente a vida de inúmeras crianças que ainda puderam “servir” para algumas famílias, porém suas mães não, por não corresponderem a uma determinada concepção de maternidade.

Shoshana Felman (2014) fala da dimensão dos traumas privados e coletivos e do quanto não podemos tratá-los de forma separada, justamente porque uma experiência vai transformando a outra. Nesse sentido, podemos afirmar que a dor de inúmeras mulheres, marcadas nesses diferentes tempos históricos, atravessa gerações. 

Dessa perspectiva é fundamental olhar para o período que estamos vivendo no Brasil, no qual a defesa de um ideário de família tem sido investida pelo governo que está na presidência desde 2019 e que encerra seu mandato em dezembro de  2022, presidido por um homem que odeia mulheres e crianças, e que sustenta pautas extremamente conservadoras, explicitadas também pelos integrantes do parlamento e do executivo brasileiro, como a ex- ministra Damares Alves (Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos – MDH). 

Mas vale também retomarmos diferentes práticas de sequestro de crianças, práticas essas que ocorreram sob diferentes racionalidades e tecnologias, como as realizadas no Brasil, aproximando-se pelo objetivo comum do impedimento da maternidade, como nos casos da roda dos expostos, do menorismo, das internações em hospitais psiquiátricos – que culminavam na separação e desaparecimento dos filhos-, de diversas formas de medicalização do corpo da mulher e do sequestro de bebês durante a ditadura militar, no período de 1964 a 1985.

Também pensando na história de outros países, vale lembrar o que ocorreu na ditadura Argentina, dos acontecimentos datados do período de 1978 a 1983, evidenciando o plano sistemático de sequestro de crianças elaborado pelas forças armadas daquele país. Há muitos anos, como marca de resistência, luta e força política, encontramos nas mães e avós da Praça de Maio, também conhecidas como as “loucas” da Praça de Maio, que lutam cotidianamente pela memória de seus filhos e pelo reencontro com seus netos. 

Na Espanha, vale destacarmos a forte aliança entre militares e psiquiatras que articularam o afastamento de crianças filhas de militantes políticos no período de 1939 a 1976, durante o franquismo. Naquele período, foram realizadas diferentes ações de sequestro de bebês, entre outras violências como estupros e assassinatos de mulheres, que seguem se atualizando nos dias de hoje, fazendo sombra às práticas atuais. Por isso a necessidade de lançar luz na história que nos antecede. 

 

2. Redes vivas e que fazem viver

Benedetto Saraceno (2011) discute a cidadania como forma de tolerância, apontando que a arbitrariedade de certas fronteiras nos coloca uma urgência: a necessidade de que nós, profissionais do campo da saúde, possamos alargar ainda mais práticas de autonomia e liberdade, pilares que são centrais dentro da saúde mental e da reforma psiquiátrica brasileira. Saraceno questiona a lógica do modelo biomédico, caracterizada por ser linear, individualista e a-histórico, apontando que o determinismo decorrente deste modelo resulta em uma simplificação da experiência do sofrimento e no aprisionamento em uma única identidade, como no campo das mulheres, tidas como doentes, incapazes e loucas. 

No campo das mulheres usuárias de drogas, pensamos na aproximação da cidadania como contexto inseparável de qualquer exercício de cuidado, da cidadania como direito em si. Dessa forma, o debate que o autor faz, nos convida a pensar na tolerância não mais como simples aceitação da diversidade, mas como exercício constante de afirmação de direitos. 

Quando pensamos na perspectiva do trabalho em rede, buscamos Saidón (2008), que discute justamente o fato de que a promoção do trabalho em rede possibilita o surgimento de um pensamento que, diante do caos ou da complexidade social, encontre uma resposta criativa e própria para aquele fenômeno que se vive. Quando trazemos  a cena da vida de mulheres que usam drogas e seus filhos, se faz necessária a construção de respostas complexas em rede, ou seja, que se criem alternativas que ultrapassem o menorismo, garantam os direitos das mulheres, e que façam valer com radicalidade os princípios postos em nossas legislações da infância, do SUS, bem como da Reforma Psiquiátrica antimanicomial. 

No campo das drogas, escutamos um discurso hegemônico, construído a partir de uma moralidade, no qual se pauta que uma vida boa é uma vida longe das drogas. Quando nos referimos a mulheres usuárias de drogas que estão gestantes ou já são mães, esse discurso se amplia consideravelmente dentro do que se entende como ‘rede de cuidados’. 

Muitas mulheres têm sido culpabilizadas pelos seus modos de vida, para além de todo julgamento sobre o uso de drogas, também foram julgadas pela situação de pobreza em que viviam. Nas pesquisas de Malheiro (2020) e Souza (2022), as mulheres que foram parceiras não mediram esforços para sustentar e cuidar de seus filhos. Porém, na leitura de muitos serviços, isso não era suficiente, reforçando a ideia de que as mães pretas não servem para seus filhos, mas esses filhos podem servir para as mulheres brancas e aqui, poderíamos entrar em outro debate, que diz respeito às formas de produção de adoção no Brasil.

Um dos exemplos que podemos trazer e que passam a ser “motivos” para a retirada de crianças é que suas mães estão sem emprego. Pois bem, pensando na importância do campo do trabalho, entendendo que esse é um campo estruturante como espaço de vida dos adultos, cabe destacar que inúmeras mulheres tiveram uma resposta negativa para entrar no mercado de trabalho, em função da “boa aparência” (Gonzales, 2019, p. 247). Muitas mulheres que acompanhamos, foram colocadas em trabalhos explorados ou não conseguiram trabalho em lugar algum, isso as destruiu subjetivamente, ou seja, o racismo e o sexismo constroem e consolidam “neuroses psicossociais” (Gonzales, 2019), especialmente nas mulheres negras e pobres. Delas nascem as experiências de sofrimento psíquico, rotuladas pelos mais diferentes diagnósticos psiquiátricos e expressas também nos usos diversos de substâncias lícitas e ilícitas, incluindo aquelas receitadas pelos próprios psiquiatras, em sua grande maioria brancos. 

Esses rótulos seguem sendo produzidos pelos mesmos brancos que desenvolvem pouco ou mal a escuta e não reconhecem o racismo e o sexismo como produtores dos mais diversos adoecimentos psíquicos, ao contrário disso, seguem produzindo mecanismos de controle social e moral dos corpos.

No Brasil, no campo das drogas, temos inúmeras campanhas que são apresentadas, pautadas não só pelos poderes executivos, mas pelo parlamento brasileiro e pela sociedade civil, com o lema “Diga não às drogas”. As redes que atuam no campo das drogas muitas vezes constroem modelos hegemônicos e piramidais atravessados pela lógica proibicionista. Concordamos com Merhy et al. (2014) que problematizam o cuidado às pessoas usuárias de drogas, bem como às pessoas que vivem ou que têm nas ruas seus espaços de existência. Nesses cenários, mais do que em qualquer outro, os trabalhadores precisariam se apoiar nas multiplicidades possíveis das tantas formas de estar no mundo e trazer para o campo do cuidado as singularidades dos sujeitos e suas possibilidades existenciais como redes vivas em produção. Penso que aí está a ética do trabalho vivo, do trabalho em ato.

Como propõem Merhy e Franco (2003), a mudança do modelo assistencial busca impactar o núcleo do cuidado, trazendo uma mudança de modelo, transformando o “trabalho morto” e hegemônico no “trabalho vivo”, o que significa uma produção da saúde, pensando na produção do cuidado de forma integralizada, operando em linhas de cuidado por toda a extensão dos serviços, centrado nas necessidades das pessoas que são atendidas. No campo das mulheres que fazem uso de drogas e estão em situação de imensa vulnerabilidade, a mobilização das redes precisaria operar no sentido de apoiá-las e não na direção do afastamento de seus filhos, uma vez que esse ato produz ampliação da dor e em muitos casos a intensificação do uso de drogas dessas mulheres.

Uma leitura fundamental é a autora Franca Basaglia (1985), que fala das transformações institucionais e da atuação dos trabalhadores. Ela relembra Goffman, retratando que uma instituição negada pode ser considerada como um lugar onde um grupo de pessoas é conduzido por outras pessoas, sem possibilidade de escolher a forma de viver. Fazer parte de uma instituição total significa ser controlado e julgado pelos planos de outros, sem que a pessoa que necessite de cuidados possa intervir para modificar o andamento da instituição (Basaglia, 1985).  Para Franca, a:

 

[…] transformação de uma instituição deveria, portanto, implicar uma transformação simultânea de ambos os pólos da situação de que se trata, através da negação de valores de referência que mantenham a condição de ambos os níveis. Só neste caso a liberdade perderia o caráter de concessão controlada de cima, e, ao mesmo tempo, o de reversão de uma situação coercitiva (Basaglia, 1985, p. 276).

 

Seguimos com Franca Basaglia para pensarmos em como muitos trabalhadores foram capturados em um “funcionamento total”, ficando à mercê das recomendações do poder judiciário e da promotoria da infância, no que se refere às mulheres usuárias de drogas e seus filhos. Um dos pontos centrais para pensar questões relativas às transformações institucionais que Franca propõe passa por perceber que as pessoas que deveriam ser cuidadas são estereotipadas e tornam-se “o […] internado do qual as pessoas sãs se defendem” (Basaglia, 1985, p. 273).

Frantz Fanon (2020) comentava pouco os sintomas das pessoas, mas se debruçava em entender o ambiente familiar e a conjuntura em que cada paciente vivia. Desafiava a psiquiatria tradicional e hegemônica, sendo que por esse motivo foi transferido para diversas instituições, por não operar na mesma lógica institucional. No livro Alienação e Liberdade, podemos ver seu trabalho em Saint-Alban, junto com François Tosquelles, momento em que construíram uma contribuição decisiva para a psiquiatria antimanicomial.

Fanon dirá que:

 

O louco é aquele que é estranho à sociedade. E a sociedade decide se livrar desse elemento anárquico. O internamento é a rejeição, o alijamento do enfermo. A sociedade exige do psiquiatra que torne o enfermo novamente apto a integrar a sociedade. O psiquiatra é o auxiliar da polícia. O protetor da sociedade contra o grupo social, decide se proteger e tranca o doente (Fanon, 2020, p. 276).

 

Mais do que a construção dos corpos das mulheres como loucas e drogadas, havia uma conduta de muitos trabalhadores que compunham as equipes técnicas no sentido de as lentificar, medicalizar, docilizar e, por fim, retirar suas crianças. Esta é uma das formas de obter mais controle e barra qualquer possibilidade de autodefesa. 

Seguimos com Elsa Dorlin (2020) que, em sua obra sobre autodefesa, parte da ideia de que o ‘direito natural’ está intimamente ligado àquele que possui propriedade. Nesse sentido, Dorlin avança para um entendimento da violência como uma forma de constituição possível para aquelas pessoas que vivem uma vida com seus direitos negados, e aqui pensamos nas intensificações do uso de drogas também como uma forma de autodefesa, algo que volta para si, para o corpo.

Pensando em formas de garantir cuidado e defesa, uma contribuição importante dos triestinos nos ajuda a problematizar as lógicas de funcionamento do que chamamos aqui como rede morta, que é a formulação da noção de “circuito do controle”, conforme propõe Ota de Leonardis (2001). A lógica do circuito mostra um mecanismo que alimenta os problemas de tal forma que os torna crônicos, como um espiral (Rotelli; Leonardis; Mauri, 2001). 

Quando não percebemos as tantas formas possíveis de existência, caímos em uma lógica de invalidação ou o que Kinoshita (2001) chama de problema de produção de valor, que é o que aumenta ou diminui o poder contratual das pessoas que atendemos. O autor aponta três dimensões que comumente são invalidadas na experiência do campo da saúde mental: “os bens se tornam suspeitos; as mensagens incompreensíveis, os afetos desnaturados” (Kinoshita, 2001, p. 55).

Nessa perspectiva de pensar na “soma de violações” a autora Kimberlé Crenshaw (2004) vai apontar que as discriminações ocorrem de formas distintas, entendendo que quando elas ocorrem de forma conjunta, no caso da discriminação racial e de gênero, aumentam as barreiras de acesso em muitos espaços de vida, como no caso das mulheres usuárias de drogas, que por conta de todas essas intersecções produz como efeito o sequestro de seus filhos.

Um conjunto de ações que sustenta essa guerra aniquilou a vida de muitas mulheres e crianças, desses corpos tomados como abjetos, segundo uma epistemologia pautada na lógica racista, sexista, patriarcal e colonial, que utiliza a maior parte de sua energia para produzir mais normas e julgamentos sobre o que é a boa maternidade e constrói largas explicações sobre a má mãe.

Um feminismo que se proponha decolonial não pode ignorar a violência que opera naquelas mulheres e crianças que vivem o efeito das distintas opressões, e que produz efeitos como os que Paul Preciado aponta “fechar fronteiras, capturar úteros, expulsar estrangeiros e imigrantes, negar-lhes trabalho, moradia e saúde […]” (Preciado, 2020, p. 94), ou seja, a produção da morte em vida.

A produção dessa guerra contra mulheres é intolerável, a intensidade das práticas violentas vigentes é insuportável, como aponta Mbembe (2021) em Brutalismo. Tamanha intensidade faz com que estas mulheres estejam em permanente estado de alerta, intensificando o uso de drogas, exaurindo ainda mais seus corpos diante da iminência do sequestro de seus filhos e, depois da consolidação de sequestro, o uso ainda mais intenso de drogas dá alguma sustentação para viver a dor da perda. 

Para que efetivamente as maternidades antiproibicionistas possam existir, precisamos embarcar no convite de Françoise Vergés (2021), ao nos falar de um futuro pós-escravocrata, em que é preciso ser antirracista, antipatriarcal, anticapitalista, antifascista e, eu acrescento, é preciso ser antimanicomial e antiproibicionista.

Para muitas mulheres a maternidade se constitui enquanto uma alegria, uma possibilidade e uma resistência, logo, essas perdas vividas, produzidas pela violência de Estado, consolidam-se como uma tragédia intolerável e traumática. Mas, ainda para estas mães, o que as mobiliza e fortalece é saberem que são mães, por isso lutam e insistem em propagar a verdade sobre suas histórias, sobre seus filhos que foram arrancados pelo Sistema de Justiça.

Se o Estado racista e assassino só se importa com os “corpos válidos”, como aponta Vergés, lembramos que justamente são essas mulheres invisibilizadas que sustentam as cidades em pé, fazendo desde a limpeza dos espaços, o cuidado das crianças, a garantia da alimentação, entre outros processos que as levam à exaustão e proporcionam o conforto aos “válidos”, relação essa que passa pela manutenção do funcionamento dos corpos exauridos. Dessa forma, sustentamos a produção de redes vivas como estratégia de enfrentamento ao intolerável, como uma forma de combater essa máquina necropolítica, que pulsa no Estado brasileiro.

*As autoras contaram com o apoio de bolsa CNPq, respectivamente, n. 140192/2018-2 e n. 314659/2021-8.

referências

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Isadora Simões de Souza

Psicóloga, doutora em psicologia social pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo- PUC- SP. Docente do curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie em São Paulo- SP, também é professora e supervisora da residência médica de psiquiatria em rede, da Escola Municipal de Saúde de São Paulo.

Maria Cristina Gonçalves Vicentin

Docente do Instituto de Psicologia da USP e membro do Instituto Brasileiro do Direito da Criança e do Adolescente.