Texto produzido em 2022, durante a Oficina de Escrita
do Instituto Gerar de Psicanálise.
Na minha memória sempre foi velho…
Quando eu nasci, ele já tinha quarenta e sete anos, não tenho memória de uma pessoa jovem, cheia de disposição.
De poucas palavras, vez ou outra soltava uma piadinha, como quem não quer nada, e saía dando risadas sem ver o que deixou no ar.
Quando o tema era os filhos… oh, têm que estudar!
Mas não sabia ao certo responder o motivo.
Sabia ler e escrever com dificuldade, saiu da escola no primeiro ano, quando a professora ia bater na mão de todos os alunos e ele tirou a mão. Ela acertou a cabeça dele com um tapa e o chamou de “negrim”. “Nunca mais voltei!”, dizia ele.
Sempre falei dele assim… “É velho! Tem tudo que pessoas velhas têm, de doenças a pensamentos”.
Eu queria que aquele velho tivesse orgulho de mim e passei grande parte dos meus dias me dedicando aos passos que ele deveria contemplar na minha vida antes que morresse.
Ele tinha de ver a filha num lugar diferente do que conseguiu contemplar.
Desejei que ele me visse na faculdade, desejei que me visse formada.
Sentia medo de receber um telefonema de alguém comunicando sua morte, sem me ver formada!
Os retornos para casa durante as férias me traziam para um lugar diferente na passagem do tempo…
A gravidade atuando sob cada ruga do seu rosto e o tempo cada vez mais cavando linhas sob a sua face, as costas cada vez mais curvadas, a pele sempre mais flácida, denunciando uma musculatura enfraquecida, as pernas mais lentas e enrijecidas, a sensação de morte eminente.
Uma semana antes da minha formatura, pediu para ir comigo ao centro da cidade com a desculpa de que tinha que me dar um anel de formatura, que, por motivos óbvios, não deixei, mas caminhamos pelo centro, lugar onde ele trabalhou por muitos anos.
Enquanto caminhávamos, passando pelos conhecidos que vinham cumprimentá-lo com alegria, ele me apresentava orgulhoso… “MINHA FIA, PSICÓLIGA!”
Eu achava o máximo ver a alegria dele, me sentia o máximo também, porque estava cumprindo com o que me propus como meta, realizar sonhos de alguém que, para mim, sempre pareceu à beira da morte.
Me viu formada!
Quando desejei um filho, pensei que papai não suportaria a ideia de sua filha ser mãe solteira. Afinal ele era um homem velho, filho do seu tempo e prestes a morrer.
Papai esteve no meu casamento!
Assim pude me autorizar a ficar grávida.
Papai recebeu a notícia do seu neto, que tem o segundo nome igual ao dele. Ficou feliz com a homenagem, pegou o netinho no colo e brincou com o menino.
Papai já estava com a mobilidade mais comprometida, andava com um andador, meu filho engatinhava atrás dele tentando alcançá-lo, enquanto eu rachava o bico de rir, registrando o momento na memória. Ele chamava minha mãe para pegar o menino que estava correndo atrás dele.
Essa história eu conto para o meu filho e morremos de rir quando eu imito meu pai.
Já disse que papai era velho?
Tinha diabetes, hipertensão, glaucoma, enfisema pulmonar e, pelo menos, umas duas pneumonias por ano.
Papai sempre esteve à beira da morte nos meus pensamentos, mesmo que não estivesse.
Até que um dia, não muito distante desses últimos que relatei, me avisaram que ele havia sido entubado em um hospital com atendimento especializado em cuidados paliativos.
Chorei bastante e finalmente disse o que sempre pensei… – O meu pai está morrendo!
Viajei no mesmo dia que soube do perrengue… eu sempre contava com isso e fazia rotas mentais para quando isso acontecesse.
Vi papai no dia seguinte; embora estivesse acordado, não conseguia falar… estávamos minha irmã e eu, enquanto uma exaltava ser a mais bela, a outra falava saber ser a mais querida.
Ele ria com o canto da boca.
Eu ria de desespero!
Dois dias depois voltei ao hospital, ele já não respondia nada.
Eu e minha sobrinha mantivemos o humor desesperado de quem vê um alvo de seu amor morrer.
Eu falava… Pai, quando a luz vier, foge! Pica a mula, corre, pai, a luz não é legal, vaza!
O aniversário do Jorge é daqui dois meses, o senhor não vai querer perder né?
Minha sobrinha botava mais luz sob o repertório que se desenrolava ali.
Ele só olhava, sem esboçar nenhuma reação.
Naquele dia, me despedi, agradeci, prometi contar ao meu filho quem foi meu pai e segui sem nenhum sentimento de que poderia ter sido uma filha diferente.
Ele morreu quatro dias depois desse dia.
Quando cheguei ao velório, fui direto tirar satisfação com o morto… – Eu não falei que era pra fugir da luz?
Pós-graduanda em “Perinatalidade e Parentalidade na Psicanálise” pelo Instituto Gerar de Psicanálise.