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03_Da fera ao filho: articulações entre o acontecimento urso e a maternidade

Edna Granja

Ainda sangrava o nascimento do meu segundo filho quando abri Escute as feras1 para ler.

A obra da antropóloga francesa Nastassja Martin é fruto das suas experiências ao longo de cinco anos junto aos even da península de Kamtchátka, na Sibéria.

O livro, cuja primeira publicação data de 2019, aborda o encontro da antropóloga com um urso. Desde as primeiras linhas, a autora não o posiciona como um mero acidente ou ataque, mesmo diante da evidência do sangue e dos ferimentos: o encontro é narrado como um acontecimento que implode as fronteiras entre mundos.

A evidência do meu filho nos braços, somada à confusão de sentimentos de um segundo puerpério, guiou a minha leitura, marcada por uma estranha e, ao mesmo tempo, profunda identificação. A entrada na parentalidade seria (sobretudo para as mulheres2) algo próximo ao encontro com o urso vivenciado por Nastassja Martin?

A constituição subjetiva de alguém – seja do bebê que nasce, seja da mãe que vive o seu tornar-se – envolve uma nomeação, e esta depende da inscrição social do nascimento da criança, que se estabelece, tal qual o encontro com o urso, como um acontecimento. Segundo Miriam Debieux Rosa (2020, p. 27), “o acontecimento vai além do simbólico, entra no real e escreve na relação”.

Partindo da noção de ato analítico, Thaís Garrafa (2020) afirma que a inscrição na posição parental não decorre, necessariamente, da gestação e do parto. É, principalmente, um ato de adoção: uma mulher ou um homem assume o lugar de pai ou mãe de uma criança. O ato aqui é compreendido como um evento não corriqueiro, tendo um valor de inauguração: uma linha divisória entre um antes e um depois; um caminho sem volta. Garrafa (2020) complementa a ideia, se referindo à entrada na posição parental como um mergulho que envolve solidão e risco, com produção de efeitos em quem decide entrar.

Em Escute as feras, o encontro com o urso marca definitivamente Martin3 e inaugura um outro lugar: o entre. Dária, uma das even com quem a antropóloga estabelece relações de afeto e confiança, afirma que, agora, ela é “meio a meio” e complementa: “significa que os seus sonhos são os dele ao mesmo tempo que são os seus” (Martin, 2021, p. 84).

Hoje, percebo que, ao ler Escute as feras no puerpério, aceitei um suposto convite para “rabiscar”4 com a autora. Construímos um desenho coletivo e, sem intencionalidade expressa, conectamos nossos mundos, produzindo novos entres. Onde lia urso, sentia filho. Onde sentia ataque, lia encontro. Parto. Nascimentos e iminências de mortes. Sobrevivência.

Recebi os trechos do livro como guias da jornada reflexiva que dividirei neste texto. Com ares de resenha, este texto é um convite para leitura do livro-guia e, em simultâneo, uma convocação para mergulhar ainda mais profundamente nas reflexões sobre maternidades, sejam aquelas decorrentes da vivência pessoal, sejam as que subsidiam e são também alimentadas pela prática clínica5.

O compromisso psicanalítico com a escuta da singularidade, aqui, abre espaço para as coletividades partilhadas. No texto intitulado “Feminilidade e maternidade”, Mara Caffé chama atenção para os efeitos das construções ideológicas sobre a maternidade: “não há experiência singular desterrada dessas construções ideológicas” (Caffé, 2020, p. 54).

Assim, me parece que, quando reconhecemos pontos de aproximação na escuta das narrativas de outras mulheres, constatamos que somos parte desse tecido discursivo vivo, animado histórica e politicamente. Há algo que nos atravessa. Este texto é também um convite para refletirmos sobre esses atravessamentos.

Nastassja Martin, chamada pelos even de Nástia6, escreve a sua narrativa a partir dos seus diários de campo. São dois cadernos: um diurno e um noturno. O diurno, segundo ela, é repleto de descrições minuciosas, transcrições. O noturno é de conteúdo mais parcial, fragmentário e instável. Os cadernos são apresentados como expressões da dualidade da autora – objetivo e subjetivo, dentro e fora, escrita automática ou selvagem e aquela mais controlada.

Na obra, asteriscos são utilizados para diferenciar e costurar as cenas narradas. E as estações do ano são as formas de nomear os capítulos, que iniciam no outono, passam pelo inverno, pela primavera e chegam ao verão. Elegi as estações como pontos de parada (dinâmicos!) da nossa jornada reflexiva.

1. Outono: “ele não quis matar você, ele quis marcar você”

Escute as feras inicia com uma breve e intensa descrição da cena e dos sentimentos vivenciados pela autora logo após o encontro com o urso:

O urso, a essa altura, já se foi há muitas horas, e eu espero, espero a bruma se dissipar. A estepe está vermelha, as mãos estão vermelhas, o rosto intumescido e dilacerado já não é o mesmo. Como nos tempos do mito, é a indistinção que reina, sou essa forma incerta de traços desaparecidos sob as brechas abertas no rosto, coberta de humores e de sangue: é um nascimento, pois claramente não é uma morte (Martin, 2021, p. 7).

Com ferimentos evidentes, Nástia narra a sua espera por cuidados médicos, as primeiras cirurgias às quais se submeteu, o reencontro com seus amigos even e com a sua família. E apresenta a tarefa a que se impõe: sobreviver. Agora, é necessário conseguir viver, apesar do que ficou perdido no corpo do outro e diante do que foi depositado a partir desse encontro.

Sempre achei que apenas sobreviver era uma boa meta para os primeiros dias após o parto. Sobreviver apesar do que se rompe com o parto7. A saída de um pedaço que já constituía o seu corpo. O pedaço sai, mas, como o urso, deixa. Marca. Deposita.

Em Escute as feras, o sangue espalhado na estepe e no corpo evidencia que o encontro com o urso foi também uma batalha. Logo, sobreviver pode ser posicionado como o resultado de uma luta. Nástia lutou com o urso. Lutou para sobreviver.

Juliana Lang Lima (2022) afirma que o processo de tornar-se mãe é marcado por uma invasão: durante a gestação, um corpo passa a ser dois. O parto se estabelece como o momento em que essa dupla se reparte. Uma vivência importante de separação de corpos transforma em dois o que, até então, era uma unidade. A maternidade é apresentada, assim, com uma experiência de fronteira e, portanto, como um convite para que pensemos em território, no que se refere tanto a limites quanto a conexões. 

Dessa forma, amplificando nosso campo de sentidos, à ideia de encontro com urso e de luta por sobrevivência, poderíamos acrescentar o borramento de fronteiras e a invasão. Ao arrancar um pedaço do maxilar de Nástia, o urso invade o seu mundo, o seu corpo. Sai, mas leva um pedaço dela. Leva e deixa um pedaço de si: “Passei do estágio da dor, não sinto mais nada, mas continuo consciente, nem uma gota me escapa, estou lúcida para além da minha humanidade, separada do meu corpo e ainda habitando nele” (Martin, 2021, p. 9).

Parabenizada pelas pessoas ao seu redor por estar viva, ao final do outono, Nástia segue para a França, para dar continuidade ao seu tratamento em um lugar mais familiar.  

2. Inverno: “eu me chamo de volta à vida”

A chegada ao Hospital da Salpêtrière é narrada como algo que, ao invés de refúgio, consiste em uma “descida aos infernos”. Ao encarar o espelho e se ver, Nástia descreve:

Eu desabo no chão e deixo minhas lágrimas inundarem tudo. Choro como uma menina abandonada, choro por tudo que não pôde ser evitado, choro pelo meu urso, meu rosto de antes, perdido, minha existência anterior, ela também certamente perdida, choro por tudo que nunca mais será igual (Martin, 2021, p. 35).

Chorei quinze dias consecutivos após o nascimento do meu primeiro filho. Chorava sem conseguir explicar por que estava chorando. Pensamentos confusos me sinalizavam que havia algo ali que ainda não podia ser integrado. No segundo puerpério, não havia tempo-espaço para o choro. Foi quando eu encontrei Nástia e chorei diante do seu rosto e do meu corpo dilacerado8.

Algumas experiências nos levam a reativar a vivência inicial de desamparo que experimentamos no começo da vida. O encontro com o urso, mais uma vez, me aproxima do reconhecimento da chegada do bebê como uma dessas experiências que podem nos recolocar diante dos nossos enigmas mais primitivos.

A dependência radical de um bebê no início de sua vida exige muito trabalho psíquico. Além da necessidade de ajuste da rotina e da dinâmica familiar para acolher as demandas do pequeno ser, estados psíquicos primitivos podem ser evocados, reativando a vivência de desamparo que experenciamos no início da vida e produzindo efeitos na organização psíquica de quem a vive (Ferrari, 2023).

Segundo Christian Dunker (2020), os cuidados com o bebê retorcem nossas identificações narcísicas, uma vez que um novo soberano passa a reinar e a ditar como será a dinâmica da casa e da família. Ao mesmo tempo, esse processo de desarticulações e rearticulações pode abrir espaço para movimentos de recomposição subjetiva que trazem, como consequência possível, uma verdadeira reorganização narcísica em quem se dedica a essa função (Kehdy, 2020).

Nesse processo, o sentimento de ser em si mesmo pode abalar-se e questionamentos importantes podem ser produzidos. Geralmente, giram em torno da dúvida sobre as condições de se realizar a tarefa posta: “será que eu consigo ser a mãe que o meu bebê precisa?”.

A escolha por tornar-se mãe nem sempre vem acompanhada de reflexões sobre prazeres e sofrimentos, benefícios e sacrifícios. Elizabeth Badinter (2011, p. 22), em uma tentativa de produzir visibilidade para as ambivalências da maternidade, denuncia que “a futura mãe fantasia apenas o amor e a felicidade” e parece ignorar o que pode haver de esgotamento, frustração, solidão, alienação e culpa na estruturação dessa experiência.

A ambivalência desvelada é recebida com surpresa (ou susto!) por parte das mulheres que se cobram por não estar vivendo a felicidade fantasiada. Facilmente, a escuta dessas narrativas gera um diagnóstico, uma inscrição em uma lista nosográfica e uma prescrição de medicação. Tais condutas permitem, por um lado, silenciar o que o sofrimento das mulheres denuncia e, por outro, ofuscar a compreensão da complexidade do trabalho psíquico implicado nos primeiros tempos da parentalidade.

Roberta Wanderley Kehdy (2020) nos lembra de que há uma dupla tarefa na construção da parentalidade. É preciso constituir uma nova posição subjetiva para si e ainda gerar outro sujeito humano, abrindo espaço para a constituição subjetiva do bebê. Na constituição subjetiva de si, a chegada9 do bebê parece produzir uma marcação difícil de passar despercebida.

Escutei que o segundo puerpério seria mais fácil. A experiência do primeiro, somada ao amadurecimento decorrente, me garantiria uma experiência mais suave. Hoje, entendo que esta é uma afirmativa, pelo menos, simplória.

Se, por um lado, o cuidado com o bebê, em situações típicas, é menos apavorante, por outro, a complexidade do entorno agrega desafios. A pergunta sobre as condições de se realizar a tarefa posta se transforma: “será que conseguirei ser a mãe que cada um dos meus filhos precisa?”. E ganha um desdobramento, agora mais visível: “o que sobrará de mim (ou para mim) diferente da maternidade?”.

Quando a psicóloga do Hospital atende Nástia, entre as perguntas insistentes e atrapalhadas sobre como ela está se sentindo, a profissional parece se preocupar com a localização do ferimento maior, no rosto: “porque, você sabe, o rosto é a identidade” (Martin, 2021, p. 38). Facilmente, como Nástia, podemos contestar o rosto como algo que localiza a identidade.

Porém, talvez a evidência da localização traga uma outra reflexão: estaríamos diante de um ferimento que não pode ser escondido? Fui buscar fotos de Nástia, em um ímpeto de conhecer o seu rosto após tudo o que viveu. Entendi que, de forma parecida com o que pode acontecer na maternidade, o ferimento não consegue ser escondido, mas, quando se torna cicatriz, pode não ser percebido, principalmente por quem não vivenciou o acontecimento. Olhei para Nástia e quase não o percebi.

As reconstruções necessárias após o encontro com o urso, materializadas pelos procedimentos médicos realizados, tomaram Nástia ao longo do inverno. Transbordando essa materialidade, ela parecia se ocupar, cada vez mais, da tarefa psíquica de significar o encontro. Precisava reconstruir o seu corpo e as suas fronteiras.

Quero fechar minhas fronteiras, expulsar os intrusos, resistir à invasão. Mas talvez eu já esteja sitiada. É sempre a mesma coisa. Diante de pensamentos assim, eu afundo: sei que para fechar as minhas fronteiras, seria preciso antes poder reconstruí-las (Martin, 2021, p. 47).

 

3. Primavera: “tudo é permitido quando renascemos das próprias cinzas”

Como forma de reconstruir as suas fronteiras, Nástia decidiu voltar para a Sibéria, reencontrar lugares, pessoas e memórias. Ela procura refúgio e, ao descrever essa busca, refere-se às paredes do útero, provedoras de todos os nutrientes necessários para o bebê em desenvolvimento, como uma condição que buscamos produzir ao longo da vida. O útero como um lugar fechado, pequeno, que pode até parecer, por isso, macabro. Mas que teria em si o potencial de proteger e de restaurar.

Nástia precisava de um espaço-tempo para produzir o seu entremundos:

Perdi meu lugar, procuro um entremeio. Um lugar onde me reconstituir. Esse recolhimento deve ajudar a alma a se reerguer. Porque será muito necessário construir essas pontes e portas entre os mundos; porque renunciar jamais fará parte do meu léxico interior (Martin, 2021, p. 76-77).

É preciso separar, reestabelecer o que foi fundido naquele acontecimento. Mas já não é possível voltar a ser o que se era. Algo se estabelece entre o que se era e o que se pretende vir a ser. A maternidade volta, aqui, como uma experiência de território, uma vez que nela o trânsito entre fusão e necessidade de separação também pode ser percebido.

O conceito de preocupação materna primária, de Donald W. Winnicott (1956), nos ajuda a pensar na fusão ou na devoção necessária durante a fase inicial da vida do bebê. Para o autor, a mãe vivencia uma sensibilidade acentuada na gestação, especialmente com a aproximação do parto, que se estende até semanas após o evento. Trata-se de um tipo de perturbação temporária que permite às mães se dedicarem às necessidades do bebê nos primeiros momentos de vida através de um processo de identificação importante: “em grande medida, a mãe é o bebê e o bebê é a mãe” (Winnicott, 1987 [1966], p. 20).

Mesmo que este seja considerado um estado estruturante na constituição do psiquismo infantil, chega o tempo da separação. Aquele tempo em que, se tudo tiver corrido bem, o bebê já terá condições de permanecer longe da mãe e de suportar suas faltas. A capacidade de estar só, um dos sinais de amadurecimento do desenvolvimento emocional do bebê, é possível quando ele introjeta e passa a sentir a mãe dentro dele. A separação parece, assim, ser tão necessária quanto a devoção (Winnicott, 1958).

Nunca é demais lembrar que toda essa sensibilidade/disponibilidade acontece enquanto a mãe se encontra em um estado de plasticidade psíquica. Roberta Wanderley Kehdy (2020) diferencia esse estado de uma suposta fragilidade e caracteriza-o como marcado pela diminuição do recalque e pela abertura para transformação. A autora enfatiza que, nesse estado, ter relações de confiança influencia de maneira significativa a constituição da parentalidade.

Nástia parece buscar suas redes de afeto para elaborar o que foi vivenciado e construir pontes e portas entre os mundos. O acontecimento urso é apresentado como algo grandioso, a ponto de não poder ser assimilado tão facilmente: “o acontecimento deve ser transformado para se tornar aceitável, deve por sua vez ser comido e depois digerido para fazer sentido” (Martin, 2021, p. 77, grifos meus).

Ela não digere só. Rachele Ferrari (2023) se refere à chegada de um filho como um momento de passagem que pode ser arrebatador. A experiência de arrebatamento leva a uma ruptura na unidade narcísica e a um retorno provisório à não-integração.

Ferrari (2023) utiliza o conceito de ressonância, de Hamut Rosa (2019), para pensar nos primeiros tempos da parentalidade. Trata-se de uma forma de nos relacionarmos com o mundo marcada por responsividade e por afetação mútua. Quando não há ressonância, o mundo se cala ou nos ameaça. Há uma insuficiência relacional.

A chegada de um filho poderia, assim, ser compreendida como um momento de passagem, no qual a ressonância pode ser vivenciada entre os/as cuidadores/as e entre as pessoas que estão ao redor. Ferrari (2023) nos alerta para que não confundamos ressonância com consonância. Isto porque as relações de ressonância podem implicar contradição e dissonância: “a resposta que surge do encontro com o outro acolhe, nutre, mas também perturba, desestabiliza, arrebata” (Ferrari, 2023, p. 70-71).

A psicanalista Lia Pitliuk, durante um evento do Instituto Sedes Sapientiae, em 2022, assegura: “ressoar não é soar igual”10. Fazendo uma analogia com a música, chama atenção para a importância dos acordes dissonantes. 

O desenvolvimento de relações de ressonância pode contribuir para que a experiência arrebatadora se torne tolerável à medida que passa a estar ligada ou integrada subjetivamente. Nástia precisou voltar para a Sibéria, para a floresta e para os even11. Nós, na maternidade, precisamos dos nossos arredores. Das nossas redes de afeto. Sobreviver se impõe como uma tarefa que também é coletiva.

O cotidiano da floresta é apresentado para Nástia como um imperativo à fluidez. O nomadismo diário denota uma disponibilidade para transitar por diferentes papéis, uma vez que a sobrevivência depende das capacidades compartilhadas quando algum membro da família se ausenta. Na floresta, nada acontece como se deseja: “a coisa resiste” (Martin, 2021, p. 101). Viver na floresta implicaria ser um vivente em meio a tantos outros e, por conseguinte, oscilar entre eles.

Na escuta clínica de mulheres mães, produzimos juntas uma metáfora que evidencia a necessidade de produzir fluidez no território da maternidade. Em um banho de mar, ao avistar uma onda, o que podemos fazer? Se conseguirmos olhá-la e avaliar o tamanho e a força com que ela virá, podemos pensar diferentes estratégias: 1) simplesmente dar um pulinho, porque a onda parece suave; 2) pular bem alto e de costas, para minimizar o impacto da onda que parece forte; 3) “pegar um jacaré”12 diante da constatação da força e da inevitabilidade de se deslocar com a onda; ou 4) segurar o ar, mergulhar e esperar a onda passar.

Há sempre o risco de errarmos na avaliação da força da onda, de levarmos um “caldo”13 e de precisarmos aprender com isso. Algumas mulheres “decidem”14 permanecer com os pés fincados no chão, no mesmo quadrado de mar: “essa onda não vai me tomar”. Talvez, se aventurar pelo terreno escorregadio da maternidade seja aprender que, como na floresta, muito se escapa. Que se controla pouco. Mas podemos gostar do mar, aprender cada vez mais com as ondas. Saber ou aprender a nadar. E estar acompanhadas ou bem amparadas para termos a quem recorrer nos momentos de intercorrências.

O capítulo da primavera é encerrado por Nástia com um reconhecimento do que se escapa: “Não digo nada, estou emocionada. Eis minha libertação. A incerteza: uma promessa de vida” (Martin, 2021, p. 104).

4. Verão: “haverá uma única e mesma história polifônica”

O último capítulo do livro tem apenas duas páginas e é fruto do (re)encontro de Nástia com os cadernos em que estão os seus registros sobre o que foi vivenciado nos últimos cinco anos.

Acho que o caderno preto se derramou pelos cadernos coloridos depois do urso; acho que não vai mais existir caderno preto; acho que isso não é nada de mais. Haverá uma única e mesma história, polifônica, aquela que tecemos juntos, eles e eu, sobre tudo aquilo que nos atravessa e nos constitui (Martin, 2021, p. 106).

Lembro de terminar a leitura do livro emocionada. E, tomada pelas reflexões sobre maternidade, um tanto atordoada. Voltei à internet para tentar responder a uma pergunta que pulsava: Nástia tem filhos? Parece que não. Mas como ela pôde elaborar uma narrativa tão próxima ao que sinto e nomeio como atravessamentos da maternidade?

Dias à frente, enquanto me preparava para cofacilitar uma roda de gestantes sobre puerpério e procurava uma poesia ou outro texto relevante sobre este tempo, lembrei-me de Escute as feras e resolvi levar o livro para a roda. As narrativas sobre puerpério podem ser tão assustadoras quanto o que se pensa ao iniciar a leitura de uma obra que fala sobre uma antropóloga que luta com um urso e tem o seu rosto dilacerado. Mas eu não queria assustá-las.

Tentei falar sobre a força do acontecimento urso. Sobre a potência de vida que também existiu nesse encontro arrebatador. Procurei produzir visibilidade para a necessidade de reconstruir fronteiras e para a importância de encontrar relações de ressonância para que essas reconstruções fossem mais suaves. Convidei as participantes para apostarem nas transformações em curso, que podiam lhes trazer potência, e no novo lugar (o entre!), que poderia ser até um canto melhor para se estar.

Afetada, desorganizada teórica e emocionalmente, sinto que não consegui despertar as reflexões que desejava. Passei os meses seguintes lendo, abrindo a discussão em diversas rodas e conectando as reflexões ao que vinha estudando nas diferentes frentes da minha formação como analista. Este texto é fruto de um primeiro exercício de dar forma a tudo isso.

É também uma tentativa de lidar com uma sensação de incompletude importante vivenciada, sobretudo, no meu segundo puerpério. Porque sinto que, no primeiro, o despedaçamento alternava com momentos de completude. Ou, pelo menos, de ilusão de.

Colocar meu primeiro filho no colo, ser alimento para ele e assisti-lo dormir me produziam conforto e calmaria. Ilusão de inteireza. Descanso. No segundo puerpério, não visitei esse lugar.

Na verdade, já na preparação para o parto comecei a me sentir dividida, dessa vez, entre o filho mais velho e o que eu gestava. Sigo assim: se estou com um, penso ou preciso administrar o outro. Ou sou efetivamente demandada pelo outro.

Como feras, vez por outra são eles que lutam pela minha presença. Parecem se devorar, mesmo quando a evidência do sangue está em mim. Entre costuras e cuidados, como Nástia, escrevo para marcar que eu estou viva.

[1] A leitura foi provocada pelo Clube do Livro Feminista Traça, idealizado e coordenado pela socióloga e amiga querida Clarissa Galvão.

[2] Este texto partiu das afetações diante das minhas experiências como mulher, cisgênero, mãe de dois meninos. Porém, é importante destacar que gestar, parir e adentrar no puerpério não são vivências restritas às mulheres. Dessa forma, a discussões sobre o acontecimento urso podem também subsidiar as reflexões sobre o ciclo gravídico-puerperal de homens transgênero ou de outras pessoas que não se definem a partir da referência binária de gênero.

[3] Ao me referir à autora do livro pelo seu sobrenome, percebi que este é o nome do meu filho mais velho: Martin. Teria sido esse o convite que recebi para fazer deste livro lentes para olhar para os atravessamentos da maternidade? Talvez.

[4] O verbo “rabiscar” é uma referência ao jogo do rabisco utilizado por Winnicott em suas consultas terapêuticas. Ele e seus pacientes rabiscavam juntos. Um desenho podia começar às cegas e ganhar sentido à medida que os traços se encontravam (Winnicott, 1964-1968).

[5] As reflexões trazidas aqui foram produzidas a partir dos ecos das provocações de Lia Pitliuk e Wilson Franco, presentes em supervisão e em momentos significativos de formação que compuseram o tempo de elaboração deste texto.

[6] Neste texto, escolhi chamá-la da mesma forma, no intuito de provocar e de sentir ainda mais as aproximações entre os nossos mundos.

[7] Aqui, me refiro ao parto como evento que atravessa a biologia do corpo, mesmo reconhecendo que é possível ampliar o campo de sentidos deste evento, de forma que a nomeação acolha experiências que extrapolam a biologia e que consistam no ato de adoção, fundante da inscrição parental, já referido a partir das reflexões de Thaís Garrafa (2020).

[8] Fui rasgada ao meio para que meus filhos saíssem. A despeito de toda a preparação para o parto normal, vivenciei duas cesarianas. As minhas primeiras e, até então, únicas experiências de cirurgias.

[9] Ao falar em chegada, nos referimos ao que acontece após o parto. Porém, convém lembrarmos que a constatação da plasticidade psíquica nos faz supor que algumas mulheres podem vivenciar muitas coisas antes deste evento.

[10] Instituto Sedes Sapientiae (Canal do Youtube). (2022) Christopher Bollas: por um pensamento contracolonial e democrático. Disponível em: www.youtube.com/watch?v=muMKcZZ7gjk&t=11s. Acesso em: 4 nov. 2023.

[11] Talvez, Nástia tenha voltado também para reencontrar o urso. Ou reviver o encontro onde é possível integrá-lo em uma rede de sentidos.

[12] “Pegar jacaré” é uma expressão utilizada em Recife para se referir ao ato de surfar na onda, mesmo que sem prancha.

[13] Mais uma expressão local. “Caldo” denota um mergulho sem aviso e contra a vontade.

[14] As aspas são utilizadas para convidar a uma relativização desse poder decisório, considerando que há muitos conteúdos, inclusive inconscientes, estruturando as nossas decisões.

referências

Badinter, E. (2011) O conflito: a mulher e a mãe. Trad. V. L. Reis. Rio de Janeiro: Record, 2011.

Caffé, M. (2020) Feminilidade e maternidade. In: Teperman, D.; Garrafa, T.; Iaconelli, V. (Orgs.). Gênero. Belo Horizonte: Autêntica, 2020; pp. 49-63.

Dunker, C. I. L. (2020) Economia libidinal da parentalidade. In: Teperman, D.; Garrafa, T.; Iaconelli, V. (Orgs.). Parentalidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2020; pp. 39-53.

Ferrari, R. (2023) Maternidades, assombro e elaboração: uma perspectiva psicanalítica. Porto Alegre: Artes & Ecos, 2023.

Garrafa, T. (2020) Primeiros tempos da parentalidade. In: Teperman, D.; Garrafa, T.; Iaconelli, V. (Orgs.). Parentalidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2020; pp. 55-69.

Kehdy, R. W. (2020) Redes de apoio: cuidar de pais na chegada de um filho. In: Teperman, D.; Garrafa, T.; Iaconelli, V. (Orgs.). Laço. Belo Horizonte: Autêntica, 2020; pp. 67-79.

Lima, J. L. (2022) Tempos maternos: reflexões de corpo e alma. Porto Alegre: Artes & Ecos, 2022.

Martin, N. (2019) Escute as feras. Trad. C. V. Boldrini e D. Luhmann. São Paulo: Ed. 34, 2021.

Rosa, H. (2005) Aceleração: a transformação das estruturas temporais na Modernidade. Trad. R. H. Silveira. São Paulo: Ed. Unesp, 2019.

Rosa, M. D. (2020) Passa anel: famílias, transmissão e tradição. In: Teperman, D.; Garrafa, T.; Iaconelli, V. (Orgs.). Parentalidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2020; pp. 23-37.

Winnicott, D. W. (1956) Preocupação materna primária. In: Winnicott D. W. Da Pediatria à Psicanálise. Trad. D. Bogomoletz. São Paulo: Ubu, 2021; pp. 493-501.

Winnicott, D. W. (1958) A capacidade de ficar sozinho. In: Winnicott, D. W. Processos de amadurecimento e ambiente facilitador. Trad. I. C. S. Ortiz. São Paulo: Ubu, 2022; pp. 34-43.

Winnicott, D. W. (1964-1968) O jogo do rabisco. In: Winnicott, C.; Shepherd, R.; Davis, M. Explorações psicanalíticas. Trad. J. O. A. Abreu. Porto Alegre: Artes Médicas Sul, 1994.  

Winnicott, D. W. (1987) A mãe dedicada comum. In: Bebês e suas mães. Trad. B. Longhi. São Paulo: Ubu, 2020; pp. 17-28.

Edna Granja

Psicóloga e psicanalista, com mestrado em Psicologia (UFPE), doutorado em Saúde Coletiva (IFF/FIOCRUZ-RJ) e formação em Psicanálise, Perinatalidade e Parentalidade (Instituto Gerar). É colaboradora do Núcleo Feminista de Pesquisas em Gênero e Masculinidades (GEMA-UFPE) e co-fundadora do Instituto Panapaná: maternidades em bando. E, sim, é mãe de Martin e Antônio.