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02_De Virgínia a Clarice: a construção de um trabalho psicanalítico menos alienante

Aline Librelotto Rubin

Ao ler o texto “Psicanálise: ocupação ou um puxadinho da história?”, escrito por Clarice Paulon (2022) e publicado na primeira edição da revista Traço, inicialmente, pensei se tratar de uma escrita de denúncia. Mas logo percebi que poderia estar incorrendo no mesmo equívoco apontado por ela sobre as razões pelas quais precisamos nomear um tipo de psicanálise como “subversiva”. Logo, o caráter de denúncia se transformou, para mim, em caráter de apelo certeiro: não há mais tempo para pisarmos em ovos ou para pouparmos palavras no esclarecimento das posições políticas dxs psicanalistas e, por conseguinte, dos horizontes éticos que guiam suas práticas. Há, sim, a necessidade (histórica, inclusive) de revelar a paisagem ideológica invisível que reveste a montagem do enquadre analítico, onde quer que ele tome terreno. Como Clarice bem aponta no seu texto, a omissão, travestida de neutralidade, do compromisso político por trás de nossa prática serve apenas à manutenção das violências e desigualdades sociais e à produção de sofrimento sócio-político (Paulon, 2022).

A ideologia incontornável frente ao sintoma da formação analítica

Apelo semelhante ao de Clarice havia sido feito por um grupo de psicanalistas freudo-marxistas em plena ditadura civil-militar. Um deles foi o de Eduardo Mascarenhas, expulso junto com outros dois colegas da Sociedade Psicanalítica do Rio de Janeiro (SPRJ), no final da década de 1970, por suas denúncias contra o autoritarismo e o engessamento da instituição psicanalítica. Mascarenhas dizia que não se tratava de identificar a psicanálise como sendo de direita ou de esquerda, mas sim de esclarecer que, longe de ser neutra, ela é espaço de reprodução ideológica, assim como “uma prática social que se transforma conforme o solo que atua” (Mascarenhas, 1981, p. 23). Considerar que o solo transforma a prática é territorializar a psicanálise, retirá-la de um terreno supostamente universal e colonial.

Ainda de acordo com ele, a psicanálise havia se transformado dada a chegada do modelo capitalista no campo, o que perturbou o domínio do império feudal dos chamados “barões da psicanálise” e de sua clínica elitizada e privatista, em função da abertura e da democratização das diversas iniciativas psicanalíticas derivadas da crescente demanda do campo psi mais amplo. Fato que, segundo o psicanalista, se fez acompanhar das contradições próprias do capitalismo, já antecipando a invasão do modelo de gestão na vida social: se, por um lado, a natureza empresarial da competição mercantil exigiu uma qualificação maior do profissional, por outro, começou-se também a problematizar o modo social de produção da teoria. Disse Mascarenhas: “É uma ironia, que um Estado de direita proporcione o surgimento de uma psicanálise que problematiza os seus fundamentos de direita, isto porque retirou as instituições de seu remanso feudal e lançou-as na inquietude capitalista” (Mascarenhas, 1981, p. 24).

É válido recordar que, apesar de a psicanálise estar presente no campo da medicina e da saúde pública e imiscuída na cultura desde os anos 1920, a formação de psicanalistas começou somente décadas depois, assim como o seu movimento de privatização. A consolidação do movimento psicanalítico das escolas filiadas à International Psychoanalytic Association (IPA) teve seu ápice em paralelo aos anos mais duros da ditadura-civil militar, dado o não reconhecimento de suas alianças (ou, pelo menos, de suas conivências) com as políticas ditatoriais de Estado, através de uma série complexa de elementos sociais, institucionais, teóricos e políticos (Rubin, 2021; Lima, 2021a).

Ao psicanalista que ousasse proclamar ou explicitar suas articulações políticas ideológicas com a psicanálise, restavam a resistência e a exclusão. Vemos isso nos dois espectros do campo ideológico-político: Karl Weissman, o “psicanalista ideólogo” que psicopatologizou o comunismo, tendo grande disseminação cultural, mas que nunca se filiou institucionalmente – seja porque não o desejou, seja porque não fora desejado 1. Já aqueles que se aventuraram na luta contra o autoritarismo e a favor da defesa dos

direitos humanos sofreram resistências institucionais e até perseguição, como vimos no emblemático caso da psicanalista Helena Besserman Vianna2.

No lastro da importante leitura inaugurada por Hélio Pellegrino (1983) sobre os pactos sociais-psíquicos que se estabeleceram no Brasil, assim como os efeitos dos seus desrespeitos e dos seus rompimentos para as subjetividades, Clarice nos relembra daquilo que se insiste em fazer esquecer, dos impactos do capitalismo e do neoliberalismo na própria organização do campo e na possibilidade de nossa escuta analítica (Paulon, 2022). Sobre o primeiro, os impactos da alienação a este sistema econômico-político e da relação de extimidade com a ideologia individualizante igualam a condição da clínica psicanalítica à intimidade do consultório e circunscrevem a escuta do sujeito ao manejo dos romances neuróticos familiares-burgueses. Um sintoma ainda mais grave dessa alienação e dessa aversão ao que seria uma afirmação identitária3 da profissão é o deslocamento da psicanálise para iniciativas de cursos rápidos e de espírito empreendedor e autogestor, para associações religiosas, para coachs e influenciadores de psicanálise do mundo digital, incluindo o projeto de bacharelado de psicanálise, noticiado em 2022, como forma de tomada de poder de frentes neofascistas e conservadoras no campo da intervenção em saúde mental (Alencar, 2022).

Esse último exemplo não é um acontecimento novo na história da formação da psicanálise no Brasil. Lima (2021a) nos relembra, na sua tese de doutorado, de que a defesa à psicanálise como “ciência específica”, livre de vieses ideológicos – uma supra-ciência –, e à proposta da criação de uma faculdade de psicanálise, em acordo com as ideias de Freud, circulou desde as primeiras edições das revistas institucionais. Apesar de ter se mantido apenas no campo das ideias, esses eram textos de psicanalistas representantes da “elite quatrocentona”, que, com sua influência econômica e social, possuíam também grande poder na condução da vida institucional da psicanálise oficial e em seu modelo de formação.

Mas Lima (2021a) ainda nos conta sobre outro “sintoma” das disputas de campo de trabalho e da formação psicanalítica. Em pleno ano de 1968, surge a Escola Superior em Psicanálise (parte do Centro Acadêmico de Estudos de Psicanálise fundado um ano antes), jogando com suas próprias regras dentro de um campo já consolidado no cenário social e cultural brasileiro. Encabeçado por um jornalista, surge sem nenhum lastro histórico ou de filiação, com justificativas como as de “debater e renovar o acervo científico da Psicanálise, . . . crítica aos valores exorbitantes e a inacessibilidade do tratamento psicanalítico para as classes populares” (Lima, 2021a, p. 263). Apesar das demandas válidas, o grupo buscou legitimidade através da regulamentação da formação desde o Estado (de exceção). Porém, com a mistura excêntrica entre apologia estatista (vista na solenidade de colação de grau em que era cantado o hino e na leitura de ofícios de diversos agentes do Estado) e inspiração contracultural liberal, que aplicava noções psicanalíticas a práticas alternativas e sexuais sem nenhum rigor metodológico conceitual, as demandas intervencionistas do grupo sobre a psicanálise acabaram voltando-o contra si mesmo. Assim, seus participantes acabaram investigados e perseguidos pela polícia política que, a essa altura, já estava operando a todo vapor sua lei de segurança nacional contra a ameaça subversiva da ideologia contracultural. Por fim, Lima (2021a, pp. 266-267) afirma que esse acontecimento tem efeitos até hoje como “patrimônio sintomático oportunista”, sendo “tanto um sintoma da ditadura e suas redes autoritárias quanto um sintoma dos processos de institucionalização da psicanálise no Brasil em meio ao boom”.

O que se vê de comum nessas duas ocasiões, de 1968 e 2022, são: na macroesfera, a ambiência de autoritarismo dos regimes políticos; na microesfera, um debate empobrecido sobre a defesa à não regulamentação da formação psicanalítica, orientado pelas escolas e pelas instituições que ainda detêm a hegemonia e a centralidade da formação. Talvez um equívoco, nesse âmbito, seja pensar que, ao desarticular a psicanálise do Estado e de sua regulamentação, necessariamente se sustentaria uma autonomia, tanto interna quanto da sua prática, em relação aos regimes econômico-políticos vinculados ao Estado, à sua forma de gestão da produção do trabalho e ao impacto nas subjetividades.

Citando novamente Mascarenhas (1981, p. 24), ele afirma que a profissão de psicanalista não existe (e não porque o ofício do analista é da dimensão do impossível ou porque o analista é um discurso e não uma pessoa), mas, simplesmente, porque não existe tal categoria na legislação brasileira: “o que existe é a categoria de médicos, dos psicólogos, dos assistentes sociais. Então, qualquer formado nessas áreas pode intitular-se psicanalista”. Ao pensar seu campo de formação e de formalizações, incluindo as divergências e rupturas, de forma endogâmica e liberal, como campo de exceção frente a outras profissões, a psicanálise se desvia desse acerto de contas ideológico que rege o próprio campo do trabalho e sua produção no Brasil e que se refere ao território em que se trabalha com a psicanálise.

A “psicanálise no Brasil”, bem para além de uma identidade unívoca, ainda que exista uma hegemônica, quer dizer a soma das diferenças dos trabalhos dxs psicanalistas no Brasil, pois a psicanálise, enquanto existência material, é feita das pessoas que a elegem como escolha e instrumento de trabalho, seja ele no campo clínico, seja no acadêmico. Logo, a ausência da mobilização de classe que agregue essas diferenças, por um problema de pertencimento ou de reconhecimento, não revelaria a cegueira e o sintoma de compromisso de fundamento ideológico da sua práxis? Essa “paixão pela ignorância” em relação à sua posição de classe trabalhadora revela outro lastro histórico, a dizer, a manutenção de lógicas sintomáticas de formação da psicanálise brasileira (Dunker, 2015; Lima; 2021a) – prática que serviu à elite aristocrática e que não é ou é pouco atingida pelos problemas sociais de distribuição de renda, de falta de direitos do trabalho e de condições básicas de sobrevivência (habitação, educação, saúde), problemas que atingem maior parte do contingente populacional brasileiro, especialmente durante regimes autoritários e conservadores.

Seguindo o argumento de Clarice, essa mobilização reconhece a psicanálise não como propriedade privada de alguns, mas sim como trabalho de transformação justamente dessa lógica de “alguns para alguns” ou de “alguns para alguns mais”, como podemos ver a partir de propostas de inclusão de escolas e de instituições – fundamentais, mas que não dão conta do problema ainda existente de centralidade urbana e de classe da psicanálise, uma vez que esse não é só um problema da psicanálise, mas também da sociedade que perpetua a lógica colonial no seu interior. O trabalho contra o colonialismo é também o trabalho com e contra as inscrições do passado que se fazem repetir no futuro, dada a condição mesma de apagamento e recalcamento de certos elementos históricos, isso também dentro do campo psicanalítico.

A respeito da reconstituição da história da psicanálise no território brasileiro, nos últimos anos vemos o importante movimento de reconhecimento do trabalho da psicanalista Virgínia Leone Bicudo, a primeira mulher negra e não-médica a se formar psicanalista no nosso país. Apesar da recuperação fundamental de sua memória e do seu trabalho como trabalhadora e construtora da psicanálise no Brasil, em particular no estado paulista e na capital federal, nota-se que esse reconhecimento poucas vezes vem acompanhado de partes importantes da história de sua vida, dos conflitos e das violências (veladas ou não) pelos quais passou dentro de um campo de trabalho elitizado e discriminatório.

 

Virgínia e o mito da democracia racial na psicanálise brasileira

A psicanalista Maria Ângela Gomes Moretzsohn escreveu um artigo sobre a vida de Virgínia, baseado em uma série de documentos do Fundo Virgínia Leone Bicudo, arquivados pelo Centro de Documentação e Memória da Sociedade Brasileira de Psicanálise de São Paulo (SBPSP), na época coordenadora desse último, que hoje leva seu nome. No artigo, aponta como Virgínia carregava, na sua história pessoal e geracional, um composto de contradições sociais do território brasileiro. Sua mãe, de família pobre italiana que imigrou para o Brasil, morava na fazenda de Bento Bicudo, onde trabalhava como ama da casa-grande. Seu pai, filho de uma escrava alforriada que “desapareceu”, foi apadrinhado pelo fazendeiro e coronel, um “homem esclarecido”, que o apoiou na condução de seus estudos e na carreira de funcionarismo público. No texto, Moretzsohn afirma que o fato de Teófilo, pai de Virgínia, passar a usar o sobrenome de Bento era “costume existente no período pós-abolição, no qual os ex-escravos e seus descendentes, em geral na falta de um sobrenome próprio, adotavam o de seus senhores [grifo meu]” (Moretzsohn, 2013, p. 211).

Já na sua juventude, o “preconceito de cor” e o sofrimento gerado por ele na sua experiência pessoal conduziram Virgínia para seus pioneiros estudos dentro da sociologia sobre as relações raciais no Brasil. Foi assim que, após trabalhar desde cedo como professora primária e tendo completado a formação como educadora sanitária, em 1936, Virgínia ingressa na Escola Livre de Sociologia e Política. Escolhera a última porque lá havia operários, diferentemente da elitizada Faculdade de Filosofia com os “filhos de papai” de sobrenome “Almeida Prado”, o mesmo de colegas que viria a ter em sua trajetória na psicanálise (Maio, 2010, p. 344 citado por Braga, 2022, p. 50). Tendo chegado à conclusão, a partir de seus estudos, de que o sofrimento racial era constituído socioeconomicamente, precisava ir mais além, pois suas implicações se davam na dimensão subjetiva. Do encontro com Durval Marcondes e da sua formação como educadora sanitária4 , se aproximou da psicanálise e, por sua vez, dos efeitos do encontro com o exercício da psicanálise para a sua própria experiência de negritude. Novamente acompanhada de uma maioria de homens, brancos e com condição socioeconômica superior que a sua, Virgínia deita-se no divã para ser analisada pela psicanalista judia Adelheid Koch, que imigrara para o Brasil durante a Segunda Guerra.

Na década de 50, segundo Braga (2022, p. 60), dois acontecimentos marcaram a vida de Virgínia em uma “exclusão de dois campos aos quais havia se dedicado arduamente até então”. O primeiro se deu em 1954, durante o I Congresso Latino-Americano de Saúde Mental, no qual participava representando a Seção de Higiene Mental. Por seu trabalho com a psicanálise fazer frente e oferecer uma alternativa mais progressista ao establishment psiquiátrico, ela e as colegas Lygia do Amaral e Judith Andreucci teriam sido duramente atacadas, acusadas de charlatanismo e até ameaçadas de prisão pelos psiquiatras presentes no congresso. Enquanto Virgínia testemunhou, depois, que o episódio “foi horrível e quis morrer”, Lygia, por sua vez, ao chegar em casa e ser interrogada pelo seu marido sobre o congresso, relata que havia descoberto ser charlatã (Moretzsohn, 2013, p. 218-219). Moretzohn comenta que, apesar dos contrastes existentes entre as duas, na sua “diversidade e semelhança, praticamente da mesma idade, [Virgínia e Lygia] formarão uma dupla coesa de construtora da psicanálise no Brasil” (Moretzsohn, 2013, p. 219). Porém, não esqueçamos que, assim como nos demonstrou Lélia Gonzalez (1981), os efeitos do sexismo são significativamente mais violentos e danosos para a mulher negra, que já sofre com o racismo.

No ano seguinte, em 1955, é publicado o livro Relações raciais entre negros e brancos em São Paulo, fruto de pesquisas financiadas pela Anhembi-Unesco e dirigidas por Roger Bastite e Florestan Fernandes. Apesar da semelhança com o título da tese de Virgínia, ela aparece apenas como “apêndice” no livro. Na nova edição, de 1959, o trabalho dela e de mais duas colegas são excluídos. Enquanto alguns autores destacam a exclusão e a falta de reconhecimento e de legitimidade sofridas por Virgínia nesse caso (Dunker, 2018; Braga, 2022), outras versões são mais otimistas, como a de Moretzsohn (2013, p. 216), apostando que “o alto nível dos participantes, é um bom indicador do conceito desfrutado por ela entre seus pares, naquele momento”. Além disso, sobre a decisão de Virgínia escrever a Winnicott nessa época, verificando a possibilidade “de aprimorar sua formação nos cursos da Sociedade britânica”, a mesma psicanalista pergunta, retoricamente: “poderia haver um lugar melhor para se estar?” (Moretzsohn, 2013, p. 221). Nesse sentido, vemos que Moretzsohn mantém, para dizer o mínimo, um tom conciliatório frente a estes acontecimentos que atravessaram a vida e o trabalho de Virgínia.

Virgínia parte, então, em busca de outro território, que pudesse lhe dar a língua e a credencial que a fariam ter uma voz a ser escutada segundo as insígnias coloniais que compunham a valoração e o reconhecimento nesta terra aqui. Apesar das dificuldades com o inglês e da sua condição econômica (contando com os vencimentos da licença concedida por Jânio Quadros de seu cargo de professora e com o apoio financeiro das instituições inglesas), fica cinco anos no centro geográfico oficial da psicanálise no período. Em Londres, é recebida por Bion, do qual se aproxima e se torna articuladora de suas visitas ao Brasil durante a década de 1970, além de conhecer Klein e Winnicott, de ter participado do grupo de Bloomsbury e de retomar sua análise com Frank Phillips, influenciando também o retorno deste ao nosso país (Moretzsohn, 2013).

Virgínia retorna ao Brasil em um momento de importante consolidação do movimento psicanalítico vinculado à IPA, sendo muito valorizada e requisitada neste cenário. Com grande inserção social junto à elite política e diplomática, vive um período de enriquecimento e glamour, assim como o que seria, na visão de historiadores como Abrão (2010), do âmbito da superação de seus sofrimentos e traumas com a ajuda da psicanálise (Braga, 2022). Ao afastar-se das ruas, dos canais de disseminação da psicanálise na cultura popular e das articulações com a questão pública, agora com a legitimidade da instituição psicanalítica, Virgínia encontra um lugar seguro (e assegurado pela sua práxis) de reconhecimento profissional e de ascensão social. Segundo Braga (2022), as imagens daquele período revelam que esse reconhecimento e essa relevância no campo acontecem junto ao apagamento de seus traços afrodescendentes e à inclusão de signos da branquitude na sua aparência, como chapéus. Teria Virgínia vivido na pele aquilo que sua teoria de uma década atrás descrevia, ao ter de fazer sumir sua cor para aparecer?

Contudo, uma carta redigida por ela, em 1975, revela que sua preocupação com o racismo não desaparecera, mas havia se deslocado. Ao recusar um convite para visitar uma amiga nos Estados Unidos, justifica não poder ficar longe do seu trabalho, mas também afirma que sofreria preconceito racial dos americanos: “eu poderia estar em risco, antes de chegar à sua casa!” (Moretzsohn, 2013, p. 216). Poderíamos hipotetizar que, no Brasil, ela já não se sentia tão em risco, pois estava protegida pelo seu trabalho. Durante as difíceis décadas do regime ditatorial, Virgínia acumulou uma série de funções na lida com a psicanálise dentro da SBPSP: do secretariado e da tesouraria, chega aos cargos de professora, supervisora, analista didata, parte do conselho editorial da revista da instituição e diretora do Instituto Durval Marcondes por várias gestões.

Esse foi também um período de intensa produção psicanalítica, em que Virgínia defendia a pureza da ciência psicanalítica – diferenciando-a de uma ideologia –, a neutralidade da escuta analítica e a ortodoxia da formação. Ao defender uma abstenção da incidência da realidade social na escuta analítica, talvez Virgínia não necessariamente demonstrasse que a pessoa do analista seria politicamente alienada, mas sim que seu trabalho seria alienante para sua própria condição e prática. É o que Dunker (2018, não paginado) aponta ao questionar se a ausência de estudos raciais no trabalho de Virgínia com a psicanálise teria se dado como efeito do seu embraquecimento individual ou da brancura própria da psicanálise, que teria lhe oferecido um “lugar de escuta assegurada [grifo do autor], como analista de sua própria experiência”, o qual, assim, se tornaria “um ponto de localização subjetiva e objetiva do conflito” racial.

Tomando alguns elementos da história de vida de Virgínia, não para revelar alguma verdade sobre ela, mas como índice da história social e política no Brasil – e também da psicanálise –, retomo a pergunta que me levou do argumento de Clarice à história de Virgínia: qual seria o interesse em se recuperar uma história de superação de uma mulher negra, pioneira, que teria alçado prestígio sem conflitos e resistências? Seria um vestígio da história da psicanálise em sua face oficialista e democraticamente racial? Braga (2022) chama atenção para a importância de uma escrita que faça frente à produção de esquecimento, mas que não seja uma versão heroica que claudica, novamente, a história e as profundas marcas das violências raciais e de classe na psicanálise. É nesse sentido que o mito da democracia racial desponta como parte fundamental da história oficial brasileira, essa que ainda tem seu lugar cativo no linguajar, na transmissão cultural e no ideário republicano que prega a igualdade entre os sujeitos – desde que sejam diferentes na superioridade de alguns.

 

O trabalho do colonialismo é o trabalho contra o retorno do (passado) recalcado

O colonialismo brasileiro foi sustentado por diversas frentes, uma delas sendo o conhecimento das ciências naturais/raciais, que justificou o domínio da natureza pelo “Homem”, esse cuja letra maiúscula representa também seu território: branco, europeu, burguês, cristão, com sua moral e com seus costumes, posto como modelo, ponto de partida/chegada da história e da “descoberta” do  Brasil. Em aliança com a história oficial, foi construída a versão epistemológica e ontológica do mito de origem do Brasil e dos brasileiros, com seus binarismos subalternizantes: civilização-barbárie, cidade-natureza, sujeito-objeto, eu-outro. Mas, a milhas de distância de serem neutros, os cientistas/historiadores também responderam aos interesses de alguém, nesse caso, aos do império e dos seus métodos de dominação e exploração das colônias.

Em um encontro do núcleo Psicanálise e Territórios do Instituto Gerar, realizado no ano passado, recebemos a escritora e historiadora Micheliny Verunsch (2021), para uma conversa sobre seu premiado livro O som do rugido da onça5. Na temporalidade em dobras da sua narrativa, aparecem os efeitos transgeracionais das violências históricas, que se inauguram com a protagonista Ine-e e que chegam até Josefina, uma garota de nosso tempo que visita a exposição de cinco séculos de história brasileira, no Itaú Cultural, onde a foto de uma menina indígena, roubada pelos cientistas europeus, está exposta. A escrita de Micheliny devolve uma outra história para esses corpos inferiorizados, esquecidos e dizimados pela ciência do homem europeu. Ine-e recupera a autoria da sua vida e, sobretudo, da sua morte, uma morte que não foi apenas de seu corpo, mas de sua língua, de sua voz transpessoal, assim como do sujeito, da voz da onça e do saber destoante do saber dos colonizadores.

Esclareço o salto entre a psicanálise e a ficção teórica de Micheliny: sabe-se que a famigerada proclamação da república brasileira colocou a elite política e intelectual a trabalho de um projeto de construção da identidade nacional que servisse aos ideais de progresso republicano. Isso porque o país contava com uma ampla “literatura médico-mental acerca do desequilíbrio, da degeneração ou do primitivismo do mestiço . . . como o ilustram os trabalhos de Nina-Rodrigues” (Facchinetti, 2012, p. 46). A psicanálise chega por aqui ao ser convocada, bastante contemporaneamente aos desenvolvimentos de Freud, na construção (e na crítica) desse projeto de modernização nacional, para que pudesse abrir alternativas à determinação de teorias psiquiátricas que condenavam o Brasil e seu povo como sem futuro (Facchinetti & Ponte, 2003; Facchinetti, 2012). A partir do componente da personalidade, a psicanálise serviu como ferramenta teórica e, associada a outras teorias, como a kraepeliana, deslocou ou ampliou o debate da medicina mental existente nas primeiras décadas do século XX (Facchinetti, 2012).

Posteriormente, junto ao trabalho da Liga de Higiene Mental, a psicanálise participou da construção das políticas públicas de desenvolvimento social e de promoção de saúde voltada às crianças e ao ambiente escolar, em que Virgínia foi personagem central, ativa e subjetivamente. Assim, a contradição ou a solução de compromisso que a psicanálise estabeleceu em terras brasileiras está posta desde o início, dado o território de exploração colonial e de violências históricas em que aportou, oferecendo uma teoria e uma prática progressistas, mas, ao mesmo tempo, aliadas ao Estado e às suas políticas de desenvolvimento (e às querelas nem sempre emancipatórias que esse arranjo implica).

Ainda que Freud e as primeiras gerações de psicanalistas, com seus projetos de clínica pública na Europa dos anos 20, sejam uma inspiração para o trabalho dos diversos coletivos de psicanálise em operação atualmente, destacamos aqui, de modo breve, a particularidade da recepção e da aplicação de inspirações psicanalíticas no território brasileiro, da aliança que esse saber fez junto ao Estado e que permitiu a psicanálise se instalar, aliada a uma psiquiatria e a uma medicina sanitária progressista e, tempos depois, desarticulada (formalmente) da máquina pública ao adentrar no seu período de institucionalização e de formação de psicanalistas. Resgatam-se, com isso, a memória e a importância atual para que a psicanálise, ou melhor, xs psicanalistas revelem (e não obscureçam sob a tutela da recomendação da abstinência da escuta) sua função dentro do campo político, esteja ela oficialmente articulada (o que não quer dizer, necessariamente, submetida) ou não ao Estado e aos seus órgãos de constituição de políticas públicas.

A psicanalista Belinda Mandelbaum (2021), em um texto sobre sua pesquisa realizada a respeito do desenvolvimento da psicanálise no Brasil durante a ditadura civil-militar, conta que por meses tentou estabelecer um diálogo com os responsáveis da SBPSP para acessar o Centro de Memória da instituição, o mesmo onde Maria Moretzsohn (2013) consultou os documentos históricos sobre a história de Virgínia. Apesar de se dizer estar o Centro aberto aos pesquisadores, após várias tentativas de contato, Mandelbaum recebeu a resposta de que somente os arquivos organizados poderiam ser consultados, mas que não havia arquivos organizados ainda. Mesma resposta foi dada à psicanalista e historiadora da psicanálise Lucia Valladares na década de 1990 (Mandelbaum, 2021). Dentre alguns autores que estudam a historiografia da psicanálise, há uma visão compartilhada acerca da dificuldade de acessar os arquivos das instituições psicanalíticas, ou mesmo acerca de uma política de segredo (Lima, 2021b) e de censura sobre eles. Uma lógica que, obviamente, é reflexo também de uma política social mais ampla.

Obstáculos e resistências em acessar evidências e registros do passado dificultam a elaboração de traumas e o trabalho de reparação histórica, mantendo de pé lógicas de verdade que perpetuam séries históricas de violências e políticas de subalternização. Não podemos deixar de refletir, nesse momento, sobre os efeitos transgeracionais alertados por Micheliny, dada a desoladora situação das comunidades Yanomami, condenadas à morte pela expropriação de riquezas do território indígena. O espaço temporal que separa Ine-e das crianças que morreram de fome e de doenças trazidas pelo garimpo ilegal na sua própria terra revela o fracasso não só em elaborar, mas em transformar as relações entre distintos territórios dentro de um mesmo país, que prossegue em replicar a lógica colonial após duzentos anos de sua dita independência.

 

A ética do desejo e/é a ética do comum

Um projeto de transformação social deve passar pela restituição da história, por seus apagamentos e violências, por suas nomeações e reparações pertinentes. Isso se faz não só na dimensão discursiva, mas também na transformação das condições materiais de existência e de reconhecimento da pluralidade cultural epistêmica dos territórios nacionais. Clarice aposta que há um saber-poder instrumentalizado pela teoria psicanalítica que capacitaria xs psicanalistas a escutar o sofrimento, o sintoma e as demandas que emergem do sujeito em determinado território e a dar um endereçamento prático a isso (Paulon, 2022). Nesse sentido, o horizonte e a direção de tratamento territorializado, não deslocado das necessidades locais nem reprodutor de normativas hegemônicas, implicariam também o cuidado em desambiguar a relação do analista com o que seria da dimensão da demanda (e, logo, do desejo), não reduzindo-a totalmente a dinâmicas neuróticas das quais o analista se esquiva, justamente porque aquilo que emerge na escuta é pertinente daquele emissor e também de seu território, composto pela tessitura de seu entorno social e de seus problemas causadores de sofrimento e adoecimento.

Costuma-se também fazer parte dos argumentos contra a regulamentação da psicanálise a defesa das condições necessárias para se trabalhar seguindo a ética do desejo. Mas o que significaria colocar essa ética e esse desejo como apartados da construção política e pública de saúde e dos direitos de seus cidadãos? Do contrário, poder-se-ia inferir que a escuta (do sujeito do desejo) não é política? Que “o inconsciente não tem cor”, ou seja, que não é atravessado pela construção histórico-colonial da raça?  Que as demandas neuróticas (de reconhecimento e exclusão) que enunciam o sofrimento individual não retratam certa constituição parametrizada pelos ideais familiares patriarcais do território onde nossa clínica se dá?

Na esteira das problematizações levantadas por seu grupo sobre a democratização da psicanálise na década de 1980, o psicanalista Chaim Katz afirma que “não se trata de atender mais, mas de atender bem”; para isso, seria necessário articular os desafios da clínica passando pelo problema do desejo, pois “historicizar a Psicanálise é teorizá-la desde a política do desejo” (Katz, 1981, p. 22). Logo, x psicanalista precisa do território, da rua, da escuta pública, não para refundar e alocar a psicanálise em uma posição especial supra-política-ideológica, mas para conduzi-la pela sua ética do desejo comum, transpessoal, territorializado, não individual nem transcendental.

Amparar-se na leitura da psicanálise como uma ética, uma ética do comum, como propõe Clarice, amparada por Bairrão (2000), desloca a gramática da legitimidade/propriedade psicanalítica, pois já não se trata de disputar se é ou não é psicanálise, debate que possivelmente beneficia aqueles já do campo da propriedade privada. Mas, sim, trata-se de que/qual ética orienta o campo teórico e prático, dentro de uma lógica de produção e de sua distribuição em rede, em associação com outros saberes e práticas.

Mascarenhas (1981, p. 25) dizia que “a psicanálise só atingirá seu estado de socialismo, quando a sociedade na qual operar for socialista”. Semelhantemente, Clarice pergunta se precisaríamos de outra ideologia para fazer uma psicanálise realmente subversiva e, assim, nos despojarmos da necessidade de qualificá-la enquanto tal (Paulon, 2022). O que Mascarenhas coloca em forma de afirmação e condição, Clarice coloca em forma de provocação e questionamento, por isso seu texto torna-se um convite-convocação ao exercício de cidadania. Se a psicanálise é uma ética, o trabalho que fazemos é o devir. Devir que pode reescrever as relações do sujeito com seu território, o que, por sua vez, pode transformar as gramáticas de reconhecimento, as produções sintomáticas e de desejo. Penso que essa proposta, apesar da faceta “revolucionária” ou “subversiva” que possa aparentar aos olhos de alguns, esteja em sintonia com o que lemos em Freud (2017/1904[1905], p. 57), se dermos a esta passagem um horizonte comum e material: “assim também o objetivo do tratamento nunca será algo diferente do que a cura prática [grifo meu] do doente, o estabelecimento de sua capacidade de realizar e de gozar [grifo meu]”.

[1] Sobre esse personagem marginalizado da história da psicanálise, recomendo a leitura da tese de doutorado Um psicanalista para os seus tempos: Karl Weissmann e a difusão da Psicanálise no Brasil, de Rodrigo Afonso Nogueira Santos (2022), citada às Referências.

[2] Além de Helena Besserman Vianna, perseguida institucionalmente por denunciar Amilcar Lobo, membro da SPRJ, por trabalhar nos porões do DOI-CODI (ver Vianna, 1994), citamos também os casos já mencionados de Hélio Pellegrino e Eduardo Mascarenhas, expulsos após as reverberações da matéria denunciativa intitulada “Barões da psicanálise” e publicada no Jornal do Brasil em 1980 (ver Mello, 1981). Uma observação importante é a de que Pellegrino era também jornalista e havia sido preso por dois meses, em 1969, por assinar “artigos considerados subversivos”. Se, por um lado, a instituição SPRJ pareceu ignorar todos esses fatos de sua vida fora da instituição, por outro, marginalizava sua participação no interior, até o rompimento na década de 1980 (Lima, 2021, pp. 172-173).

[3] Há, de forma geral, no campo do lacanismo, uma certa atitude combativa ou diminutiva daquilo que seria da dimensão do imaginário e da identidade, em função da lógica do não-todo. Aqui, chamamos atenção para o uso político dessa orientação teórico-clínica na materialidade do campo da sua formação, dada a necessidade prejudicada de reconhecer-se e de afirmar-se enquanto unidade, para então nomear diferenças e heterogeneidades que se compõem e decompõem em relação à teoria, à prática e à formação analítica.

[4] Virgínia participou das primeiras práticas envolvendo a psicanálise no Brasil, articuladas à educação sanitária, à promoção e à profilaxia da saúde mental e voltadas às crianças nas suas famílias e nos seus ambientes escolares. Com importante disseminação do seu trabalho no campo cultural, através de programas de rádios e de colunas em jornais, esse trabalho apresentava-se como uma importante alternativa às práticas eugênicas produtoras de mais exclusão e violência, dado o cenário de contínuo crescimento urbano após décadas da proclamação da república.

[5] A gravação do encontro pode ser conferida em: Instituto Gerar. (2022) I Encontro Psicanálise e Territórios. Youtube, 2023. Disponível em https://www.youtube.com/watch?v=IpxSoPSjq1o

referências

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Aline Rubin

Aline Rubin é psicóloga e psicanalista, mestre em Estudos Psicanalíticos pela Birkbeck, University of London, doutora em Psicologia Social pela USP, com período sanduíche na Birkbeck, University of London. Atualmente trabalha na prática clínica e co-coordena e é docente em cursos livres e de pós-graduação no tema da psicanálise. Áreas de atuação: psicanálise, história da psicanálise no Brasil e suas relações com a clínica, a cultura e a política.