Albert Camus não foi o primeiro, houve outros antes dele. Boccaccio (2013), com o seu célebre Decameron, foi quem inaugurou a tradição de livros ficcionais que trazem a epidemia como tema. A trama se desenrola em 1.348, numa Florença devastada pela peste. Diante de tal cenário, dez jovens refugiam-se em um castelo no campo e contam histórias para se entreterem. Dez pessoas, dez dias, dez histórias por dia, totalizando cem pequenos contos apresentados aos leitores. Há aí um ponto bastante interessante que é a solução encontrada pelo grupo diante do flagelo: a invenção de narrativas. Em face ao horror, recorrem às palavras.
O interesse pelo texto de Camus, portanto, não se deve a um suposto pioneirismo, mas sim à maneira com que interpreta o significado da irrupção da peste. A história se passa na pacata cidade de Orã, na Argélia. Apresentada como um lugar feio, cuja primavera não dá flores, com excessivo calor no verão e que tem o chão coberto de lama no outono. Os dias são belos apenas durante o inverno. Desprovida de vegetação ou paisagem natural que mereçam atenção, Orã foi construída de costas para uma linda baía, ingrata posição de onde é impossível que se veja o mar. Uma cidade, diz o narrador, se conhece pelo modo que se trabalha, se ama e se morre. Marcados por uma espécie de desistência pulsional, beirando a melancolia, os cidadãos amam e copulam mecanicamente, por hábito. Mas, por outro lado, se entregam com ardor aos negócios, trabalham com o único objetivo de enriquecer. Quanto à forma com que se morre, esta é o que há de mais original na cidade: resistentes ao contato com a doença e com a morte, os moradores de Orã abandonam os convalescentes, negando-lhes os cuidados necessários. Um lugar marcado pela banalidade, ausência de emoções, labor intenso e negação da morte.
Tudo muda quando uma epidemia abate a cidade, dizimando grande parte de sua população. O primeiro sinal de que algo não ia bem foi dado pelo súbito aparecimento de ratos que começaram a sair agonizantes de esgotos para morrer nas ruas e casas. Os roedores sempre estiveram na cidade, nos subterrâneos, mas só vieram à tona com a peste.
O ano dos acontecimentos “que são objeto desta crônica ocorreram em 194…” (Camus, 1947/2017). É interessante o modo que o autor trabalha com a questão temporal, pois não se trata de uma completa omissão, haja visto que revela a década em que se passa o romance, mas ao mesmo tempo mantem em suspenso o ano. Sabe-se que essa localização da década e indeterminação do ano participam da metáfora central do livro, qual seja, a peste como alegoria à ocupação alemã da França durante a Segunda Guerra Mundial. O ponto interessante consiste no fato da peste não ter vindo de fora, tal qual o exército germânico; ela emerge dos bueiros precisamente por sempre ter estado lá, talvez em latência.
Aqui já podemos fazer uma primeira parada para introduzir a frase que, de acordo com Lacan (1955/1998), teria sido proferida por Freud: “eles não sabem que estamos lhes trazendo a peste” (p. 404). A frase foi falada a Jung durante a viagem aos Estados Unidos em 1909. Como neste contexto os fatos que nos importam são aqueles de discurso, nos absteremos do debate sobre a veracidade da fala, debate levantado por Roudinesco (2011). O mais relevante é que essa fala teve efeitos no campo psicanalítico, como não poderia deixar de ter. As descobertas freudianas, de modo semelhante às grandes epidemias que assolaram a Europa, chegaram de navio aos Estados Unidos. Vieram de fora. O que as caracterizaria como peste é o seu potencial de revelar que – ali onde parece que tudo vai bem, pelo contrário – tudo vai muito mal, assim como em Orã.
Outro ponto relevante da viagem é que Freud não se encontrava na tranquilidade de que haveria uma fácil aceitação de sua teoria no Novo Mundo. A estratégia de fazer coincidir sua ida com a de Jung passa por suas preocupações relativas ao risco de encontrar obstáculos por parte do antissemitismo. Além disso, houve um esforço de Freud para não topar com a resistência provinda do moralismo da sociedade estadunidense, podendo, assim, ampliar consideravelmente a disseminação psicanalítica para além dos limites do continente europeu. É inegável a importância dessa viagem para o campo psicanalítico, tanto pela expansão dos territórios apestados, como pelo sucesso editorial da publicação das conferências Cinco lições de psicanálise (Freud, 1910/1996), que foram rapidamente traduzidas para diversas línguas.
A peste, vinda de fora, por definição é exógena, organismo estranho. Ou seja, ainda que haja inoculação do vírus, o corpo (social) irá produzir anticorpos. E assim foi com a sociedade estadunidense, que atuou no sentido de neutralizar o antígeno psicanalítico. Essa neutralização consistiu na construção de uma versão moralizante da psicanálise, eliminando o seu potencial subversivo. Não à toa que Lacan irá mencionar a famosa frase justamente no texto em que aponta para a necessidade de um retorno a Freud. Compreende que, naquele momento histórico de 1955, era preciso que se recolocasse em vigor o sentido que Freud conferiu à psicanálise (Lacan, 1955/1998, p. 404), sentido este obliterado por algumas leituras de psicanalistas pós-freudianos. É o próprio Lacan (1955/1998) quem denunciará que se estruturou nos Estados Unidos uma prática psicanalítica degradada, propagada como meio para obtenção do sucesso e da felicidade, pois lá não se quis saber da descoberta de Freud (p. 417). Talking cure, cunhou Anna O., mas uma cura que não pode ser confundida como simples supressão de sintomas que obstacularizariam a felicidade de um eu. A demanda daqueles que chegam aos consultórios, nos dirá Lacan (1959-1960/2008, p. 342), é uma demanda de felicidade em nossos tempos. Não é sem razão que a metodologia coaching, com suas promessas de performance e vida extraordinárias, faz enorme sucesso, pois é vendida como um produto que se propõe a se adequar a tal demanda, semelhante à psicanálise degradada estadunidense. Sempre há algo que está além e aquém da demanda e, esta, articulada ao significante, sempre é uma demanda de outra coisa, e de outra, e de outra. Este é o primeiro motivo pelo qual não se deve responder à demanda com tentativas de gratificação. Intuitivamente poderíamos pensar que o analista deve, portanto, frustrar a demanda que lhe é dirigida, mas este seria um outro erro. Na verdade, é o mesmo erro, só que ao avesso. A frustração é parte constitutiva da estrutura da demanda, haja visto que demanda sempre outra coisa. Mas clinicamente a frustração não se constituirá como uma estratégia do analista. A frustração e a gratificação não são as orientadoras da direção do tratamento, porque “nos dois casos notifica-se o paciente de que não há outra dimensão da experiência e elide-se, portanto, o desejo que se trataria de revelar por meio da interpretação” (Soler, 2009-2010/2013, p. 72). A demanda que desliza de significante em significante tem por base o desejo e uma das funções da análise é criar as condições para a sua emergência. Assim, quando não se responde às demandas contidas nas queixas iniciais do analisante, o intento não é o de frustrar, mas de inscrever a questão sobre o desejo e o gozo, de forma que o paciente passe a se questionar: “o que fazer para enlaçar o desejo deste que não responde prontamente às minhas demandas?”.
Há um outro motivo para que não gratifiquemos as demandas de felicidade. Sabemos que há uma demanda intransitiva e esta não é a de felicidade, mas sim a de amor. O que exige um esclarecimento: quando Lacan afirma que em nossos tempos se chega aos consultórios com uma demanda de felicidade, não está alçando, esta, ao estatuto de intransitividade, mas realizando um diagnóstico da época. A estrutura da demanda é intransitiva, e ela serve de referência para a série de demandas transitivas, que são demandas por algo. O que nos leva à compreensão de que a “felicidade” conjuga uma série de outros tantos significantes da demanda produzidos na atualidade. Isso tem relação com o que foi nomeado como “serviço dos bens”, “bens privados, bens de família, bens da casa, outros bens que igualmente nos solicitam, bens do ofício, da profissão, da Cidade” (Lacan, 1959-1960/2008, p. 355). Acredita-se que o caminho para a felicidade, ensinado pelos coachs, é o que conduzirá à obtenção desses bens. Em Orã os cidadãos não faziam outra coisa senão pôr em funcionamento o serviço dos bens, com suas vidas banais, preenchidas apenas por hábitos e trabalho. A psicanálise degradada é aquela que sustenta sua prática em uma ética do serviço dos bens, em nome da felicidade para todos.
Retomando a metáfora, pode-se dizer que Freud foi exitoso em seu objetivo de inocular o vírus nos Estados Unidos, posto que as resistências não impediram sua instalação. Mas parece que da expressão talking cure, mencionada na segunda conferência (Freud, 1910/1996), só ficou retida uma versão bastante equivocada de cura. Se a fala é essencial no processo analítico não é porque o “eu” fala, mas sim porque “isso” fala e o faz precisamente “onde menos seria de se esperar, ali onde isso sofre” (Lacan, 1955/1998, p. 414). Portanto, o sofrimento que o sintoma comporta não é algo a ser prontamente eliminado, e essa operação tampouco sinonimiza cura. Se à verdade é permitido que suba no púlpito, é à revelia de um “eu”, é porque quando se fala a verdade aparece. Tal fenômeno não ocorre por vontade do sujeito, pois se, por um lado, é despedaçado pelo sofrimento que se chega à análise e se toma a palavra, por outro lado, é inteiro que se busca não escutá-la (Lacan, 1955/1998, p. 428). Assim, do mesmo modo que Freud fez entrar o vírus na América, aquele que sofre busca um tratamento; tanto a sociedade estadunidense como alguns sujeitos acometidos por sofrimento topam o encontro com a psicanálise, mas resistem. A função viral é a de desvelar a verdade própria ao falante, mas esta função pode ser neutralizada quando não há alguém capaz de sustentar aquilo que é próprio ao caráter pestilento das descobertas freudianas, a ética da psicanálise. Essas descobertas “vão de conceitos que se mantiveram inexplorados a detalhes clínicos deixados ao sabor de nossa exploração, e que atestam a que ponto o campo de que Freud teve a experiência, ultrapassa as vias que ele se encarregou de nos abrir” (Lacan, 1955/1998, p. 405).
Por isso, o retorno aos textos canônicos, aos textos esquecidos, aos textos tardiamente descobertos e, o mais importante, às lacunas do texto. No rigor do retorno se opera, também, uma ultrapassagem, que não pode ser tomada arbitrariamente. A ultrapassagem se dá por um caminho preciso que são as vielas e trilhas abertas pelo próprio Freud. Por isso é preciso retornar. Lacan nunca retornou sozinho, esteve com Lévi-Strauss, Hegel, Frege, Gödel, e outros tantos. Esteve com Ella Sharpe e com Helene Deutsch, ao discutir seus casos clínicos. Lacan nunca retornou sozinho para desvelar o aspecto subversivo da obra freudiana, constantemente recoberto por aqueles que buscaram atalhos. Em nosso tempo, marcado por um duplo retorno, da peste epidêmica e do totalitarismo, é preciso definir com quem retornaremos: a Freud e a Lacan.
Por hora, retornemos a Camus, para afirmar que o surgimento dos ratos é a emergência da verdade em Orã. Para sustentar essa tese se faz necessário que, antes de tudo, recordemos que a noção de absurdo é a pedra angular de sua filosofia. Este é um conceito que atravessa sua obra do início ao fim, de tal modo que não nos arrogamos à pretensão de aprofundá-lo, o que fugiria aos objetivos deste ensaio. Contentamo-nos com uma breve aproximação de seu significado. Primeiramente há algo de inaugural, que é o sentimento absurdo, é a partir dele que se inicia a ruptura com as coordenadas que conferiam sentido ao cotidiano. Uma vida maquinal que consiste em “acordar, bonde, (…) escritório, almoço, bonde (…), trabalho, jantar, sono e segunda, terça, quarta, quinta, sexta, sábado no mesmo ritmo” (Camus, 1942/2005, p. 27) é interrompida por uma questão “por quê?”. É a ausência de resposta que faz com que se presentifique o sentimento absurdo. Este sentimento de estranhamento, de inadequação, de rompimento com o sistema de simbolização que organizava a vida do sujeito até então, não é ainda o absurdo. O absurdo é a falta de um sentido que possa conectar as suas ações ao mundo. O absurdo é esse divórcio sem possibilidades de reconciliação (Camus, 1942/2005, p. 45). O tema da dimensão individual do absurdo foi trabalhado nos seus primeiros livros de grande sucesso: no ensaio filosófico O mito de Sísifo (1942/2005) e no romance O estrangeiro (1942/2020). Este, que constitui seu maior êxito de público e crítica, principia com a frase arrebatadora “Hoje mamãe morreu. Ou talvez ontem, não sei bem” (Camus, 1942/2020, p. 13). Esta frase é extremamente reveladora da natureza de um personagem que se mostra indiferente a tudo: ao falecimento da mãe, ao amor e ao ato homicida. Um homem absurdo. É em A peste (Camus, 1947/2017) que apresentará de forma inédita uma figura coletiva do absurdo: a própria peste, representante da irrupção da verdade que se encontra sob a estrutura social.
Voltemos ao romance, à emergência dos ratos, pois foi aí que paramos. Após esse estranho fenômeno, o que se seguiu foi o adoecimento e morte da população. As autoridades demoraram a agir e, quando o fizeram, foi através do isolamento da cidade. Houve aqueles que buscaram escapar, mas não conseguiram, pois “as portas tinham sido fechadas algumas horas antes de ser publicado o decreto do prefeito” (Camus, 1947/2017, p. 67-68). A citação interessa porque denuncia o descompasso entre o decreto e a execução. A obediência à ordem legal implicaria que se executasse a ação de fechamento apenas após a publicação do decreto. Este detalhe é emblemático para situar um dos efeitos da peste: a exceção. Quem nos dá essa pista é o próprio Camus que, no mesmo parágrafo, afirmará que a palavra “exceção” perdeu o significado na situação em que a cidade se encontrava (Camus, 1947/2017, p. 68). A perda de significado do vocábulo “exceção” resulta de uma transformação da exceção em regra, de modo que ambas se tornam indiscerníveis. A exceção como consequência da peste se mostra de modo ainda mais evidente em uma outra obra. Trata-se da peça teatral Estado de sítio (Camus, 1948/2018), em que a Peste ganha vida transformando-se num personagem que governa despoticamente a cidade sitiada. A fala de sua primeira aparição é bastante elucidativa “eu reino, é um fato, logo um direito. No entanto, um direito que não se discute” (p. 87). Um direito que não se discute, no interior de uma democracia, já não é mais um direito, mas uma exceção. Foi exatamente isso que ocorreu na cidade empestada.
Foi precisamente o que ocorreu na Alemanha nazista. A deportação, o confinamento nos campos de concentração e o extermínio nas câmaras de gás foram realizados sob vigência da Constituição de Weimar. Hitler decretou a suspensão dos artigos relativos à liberdade individual em 1933, decreto que foi revogado. Assim, o estado de exceção alemão só findou em 1945, com o fim da guerra (Agamben, 2004, p. 12). Para compreendermos o significado político desse fato é importante que o situemos no campo jurídico, de onde se origina este conceito. O estado de exceção tem como premissa a suspensão pontual da norma em tempos de desordem interna, com o intuito de protegê-la. Essa medida, que por definição deveria ter uma curta duração, se estendeu por doze anos durante o regime nazista, deflagrando um estado de exceção permanente. Desde então o acionamento do estado de exceção tornou-se o paradigma de práticas governamentais nos Estados contemporâneos (Agamben, 2004, p. 13).
Observa-se que há um paradoxo: para proteger a lei o estado de exceção a suspende. Essa suspensão se dá sempre num regime de emergência, a partir de uma situação que é interpretada como requerente de respostas imediatas. Esta é a ordem: emergência; estado de exceção com suspensão de direitos; respostas adequadas à crise; e restabelecimento da normalidade. O pressuposto é o de que perante um acontecimento excepcional o tempo de reação das instituições num estado de normalidade é insuficiente, assim como suas regras. De modo que é previsto, obviamente, que durante uma epidemia possa ser acionado o estado de calamidade. Obvio, mas nem tanto. A emergência não é um fato, senão discursivo, é construída e disseminada enquanto ideologia. Uma situação emblemática que ilustra esse argumento são as diferentes reações de líderes mundiais à pandemia do COVID-19. Assistimos no Brasil grande parcela de sua população desdenhar da periculosidade do vírus, a ponto de ocorrer manifestações em que automóveis impediram a passagem de ambulâncias que se dirigiam a hospitais na cidade de São Paulo, episódios que ficaram conhecidos como “carreatas da morte”. O presidente Jair Bolsonaro é um dos propagadores da ideia de que o poder de letalidade do vírus é menor do que afirmam os meios científicos, incentivando a população e o empresariado a pressionar os governos estaduais e municipais que aderiram às orientações da Organização Mundial da Saúde (OMS). O ceticismo de sua posição não o impediu de enviar em 18 de março de 2020 um pedido de reconhecimento de estado de calamidade pública diante da pandemia, que foi aprovado por unanimidade. Nota-se que a emergência não é necessariamente a expressão de um fato. Fatos se constroem, de modo que não podemos afirmar que a Gripe Espanhola de 1918, o tsunami que atingiu a Indonésia no começo deste século e a pandemia do coronavírus caracterizam situações de emergência, por mais obvio que pareça. A ideia de emergência é construída discursivamente e propagada ideologicamente, a depender dos interesses em jogo em cada época e local. Logo, a série que apresentamos acima é fictícia: aquilo que deveria ser tratado como emergência (a pandemia do COVID-19, por exemplo) nem sempre o é; o estado de exceção, este sim, sempre comparece; as respostas à crise muitas vezes se adequam mais aos interesses daqueles que detém o poder econômico do que à situação; e a normalidade não se restabelece.
A situação não se restabelece porque, assim como os ratos, a peste sempre esteve lá, nos subterrâneos. Vivemos numa época em que predomina uma lógica securitária que prescinde de pandemias para se agir discricionariamente. As ações policiais nas periferias, favelas, comunidades quilombolas e indígenas nos revelam esse fato. Os ratos que saem dos bueiros durante essa pandemia nos mostram uma particularidade acerca da forma com a qual se opera a exceção no Brasil. Em Orã, assim como em muitos países europeus em 2020, há o isolamento em nome do cumprimento de medidas preventivas; o estado de sítio. No Brasil a opção foi pela abertura dos comércios para a proteção da economia, após breve interrupção do funcionamento. Soma-se a isso o sub-financiamento da saúde e a ausência de um projeto sanitário que articulasse as esferas municipais, estaduais e federal. Estão colocados os ingredientes para a produção de cerca de 688 mil mortes ocorridas ao longo dos trinta primeiros primeiros meses da pandemia. Os ratos revelam: a exceção no Brasil é necropolítica.
O termo necropolítica foi proposto por Achille Mbembe (2018), para analisar as relações entre poder, vida e morte na contemporaneidade. O autor opera uma torsão na noção foucaultiana de biopolítica, indicando que o Estado necropolítico assume como função o “fazer morrer e deixar viver”. Está em jogo não apenas o controle da vida, como no estado de exceção biopolítico, mas também a gestão sobre a morte, a definição de quem deve ser exposto a ela e de como se dará esse ato.
Relaciono a noção de biopoder de Foucault a dois outros conceitos: o estado de exceção e o estado de sítio. Examino essas trajetórias pelas quais o estado de exceção e a relação de inimizade tornaram-se a base normativa do direito de matar. Em tais instâncias, o poder (e não necessariamente o poder estatal) continuamente se refere e apela à exceção, à emergência e a uma noção ficcional do inimigo. Ele também trabalha para produzir a mesma exceção, emergência e inimigo ficcional (Mbembe, 2018, p. 16-17).
Trata-se de uma modalidade de exceção que tem por fim a morte de parte significativa da população. Reconhece-se que esse grupo de matáveis constitui um excedente do processo produtivo. Já não se trata da criação, por parte do capitalismo, de reservas de trabalhadores desempregados para o seu funcionamento, é uma massa que excede essas reservas. A falha não está nessas arestas mal aparadas que são os “supérfluos”, pois desde o fim da escravidão eles continuam sendo produzidos enquanto tais. O ponto nevrálgico se encontra na falência das “soluções” empregadas até o momento para dar conta do problema – já não há mais apartheid e o encarceramento em massa dá mostras de seus limites. Desse modo, o neoliberalismo assume as tarefas de continuar fabricando e, ao mesmo tempo, criando as condições de eliminação dessas pessoas. O que possibilita esse acontecimento é a produção de ficções de inimizade (Mbembe, 2010/2019, p. 26).
Mas lembremos, a peste de Camus não vem de fora, ela sempre esteve presente. Por outro lado, seria equivocado afirmarmos que vem de dentro, posto que o absurdo, assim como o real, é aquilo que foge ao conjunto de coordenadas simbólicas de uma sociedade. A topologia da peste se torna incompreensível se tomarmos como modelo a estrutura esférica, em que a dimensão interna é radicalmente separada da externa. O modelo topológico da exceção é a banda de Moebius (Agamben, 2004, p. 57). A banda de Moebius pode ser construída com uma faixa cuja ponta sofrerá um giro de cento e oitenta graus, uma meia volta, e será colada a outra extremidade da faixa. Lacan utilizou-se em diversos momentos do seu ensino deste instrumento topológico e forjou uma imagem bastante elucidativa para transmitir a propriedade de indistinguibilidade dos lados da faixa. Ei-la, a imagem: “Uma formiga que caminhe por ela passa de uma das faces aparentes para a outra sem ter necessidade de passar pela borda” (Lacan, 1962-1963/2005, p. 109).
A partir daqui podemos fazer convergir a peste psicanalítica com a peste camusiana no que tange à topologia. Havíamos afirmado que a chegada da peste nos Estados Unidos era algo que vinha de fora, mas é preciso ponderar. Trata-se do período da “invenção freudiana do inconsciente e o advento da psicanálise como um novo discurso” (Soler, 2015-2016/2018, p. 222). Assim, a chegada da psicanálise na América significa a emergência de um discurso inédito. Mas é também um discurso que irrompe como sintoma de uma sociedade burguesa orientada pelo discurso do mestre. Irrompe na Europa, mas é produto das relações globais. De modo que é impreciso afirmar que é um discurso que veio de fora, pois só pode aparecer onde há o seu avesso.
Voltando à banda de Moebius, podemos dizer que a passagem do Estado de Direito para a exceção necropolítica na atualidade ocorre analogamente, sem obstáculos. A peste faz emergir essa verdade absurda, absurdamente necropolítica. No centro da política, a morte, que mesmo quando não é produzida pelo Estado, mas sim por catástrofes, se torna um fator de política. A esses flagelos históricos, cujos efeitos atingem enormes massas, podemos chamá-los de grandes traumatismos. Traumatismo, aqui compreendido como uma das maneiras de nomear o horror do mal-estar quando o corpo social é pego de surpresa. Algo que, de fato, vem de fora, diante do qual o sujeito se vê sem recursos simbólicos para responder. Já não há mais demanda, pois não há um Outro a quem se suponha poder responder aos apelos do sujeito desamparado. Um real que o abate e que não pode ser antecipado (Soler, 1998/2004, p. 71). O real asfixiante do COVID-19, mas também aquele, mais insidioso e paulatino, do traumatismo necropolítico cotidiano. É importante, entretanto, que atentemos para o fato de que o trauma não ocorre para todos. Como mencionamos acima, é necessária uma operação discursiva para interpretar uma grande catástrofe como emergencial. Do mesmo modo, o traumatismo necropolítico também não constitui um fato por si só, carece de interpretação que possa reconhecer o horror que ele comporta. Pois “não existem extremos no horror que um discurso consistente não possa aprisionar” (Soler, 1998/2004, p. 80). Ou seja, os discursos necropolíticos, amparados na lógica da inimizade que legitima o extermínio das massas supérfluas, permitem que assistamos essas mortes inertes. Tais discursos, que constroem a ficção do outro como pura animalidade não interditada, são o sustentáculo simbólico que possibilitam que a convivência com a mortalidade da juventude negra, com o feminicídio e com a transfobia. Contrariamente aos jovens personagens de Bocaccio (2013), que, atingidos pela devastação epidêmica, criaram narrativas para enquadrar o real, a sociedade contemporânea já tem por antecipação histórias criadas. Soler (2015-2016/2018, p. 39) afirmara que o ato de nomear é uma forma de atar o real com o verbo, nos locais em que impera a necropolítica essa nomeação já esta colocada antes mesmo da catástrofe. O horror é aplacado, envelopado discursivamente.
Por outro lado, há aqueles sobre os quais se abate o traumatismo, enlutados e sobreviventes: mães que choram pela vida dos filhos; sobreviventes de chacinas e massacres; moradores de favela que acordam com o barulho de tiros, mesmo quando não já não há tiroteios etc. Tudo isso ocorre cotidianamente, é a morte atmosférica se juntando àquela que aniquila a vida. Mas não se trata da atmosfera do vírus, e sim da peste sempre presente: do luto, do risco, da morte, da vida severina. Poderíamos afirmar que nesses casos há a incidência do trauma? Para responder tal questão é necessário compreender que o traumatismo ocorre em dois tempos. O primeiro é o tempo do impacto, choque de um real sem correspondência simbólica, eclipse das possibilidades de ordenação pela via discursiva e impossibilidade de antecipação temporal. Imagens que ilustram esse momento são os vídeos que registram o instante do impacto dos tsunamis nas cidades afetadas. O segundo tempo é o das repercussões para o sujeito, aqui a variedade equivale ao número de sujeitos em questão, pois depende do modo singular com que ele interpreta o real. Por isso não há uma correspondência universal entre o trauma e os sintomas que viria a produzir, porque entre o impacto e as consequências há o inconsciente (Soler, 1998/2004, p. 86).
Não nos orientamos pela ética do serviço dos bens, que objetiva a felicidade para todos, e tampouco pela pressuposição de um traumatismo para todos. A leitura de nosso tempo, da subjetividade que se forja em nossa época, é condição para a atuação do analista. É preciso que entendamos o modo que se trabalha, que se vive e que se morre em nosso contexto, pois compõem o modo pelo qual se sofre e, sabemos, é onde se sofre que isso fala. É preciso retornar com quem nos ofereça as lentes adequadas para a legibilidade da época. Com Agamben, afirmamos que há uma estrutura moebiana através da qual a exceção invade o Estado de Direito. A partir de Mbembe, afirmamos que essa exceção produz efeitos de um traumatismo necropolítico. Assim o fizemos, não para concluir por um traumatismo universal, mas para que as questões possam ser levantadas com mais precisão. Diante de um sujeito traumatizado (seja pela violência necropolítica, seja pela peste), cujos pesadelos lhe trazem a lembrança daquilo que ele não pode recordar, devemos nos perguntar: por que aqui houve efeitos traumáticos? Por que foi impossível esquivar-se do horror? Da mesma forma, em alguns casos, é oportuno que o analista se pergunte o porquê de não ter havido o encontro traumático com o real para outros tantos. O que permitiu ao sujeito sustentar-se em meio ao horror generalizado? Ou, como diria Soler, o que possibilitou que se aprisionasse o horror em um discurso consistente?
Freud encarou essa pergunta após a eclosão da Primeira Guerra Mundial, ao questionar como a guerra pode afetar a relação que a sociedade tem com a morte, de maneira ampla, e de como o sujeito enlutado lida com a morte dos seus entes, em particular. A resposta é inquietante: “Às nossas mais ternas e íntimas relações amorosas está ligada (…) uma pequena porção de hostilidade que pode estimular o desejo inconsciente de morte” (Freud, 1915/2020, p. 130). Inquietante, mas jamais generalizável. Para que se mantenha o caráter pestilento de suas descobertas é preciso que as perguntas sejam feitas a cada sujeito, a cada vez.
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Soler, C. (2013). A repetição na experiência analítica. São Paulo: Editora Escuta. (Trabalho original publicado em 2009-2010).
Soler, C. (2018). Adventos do real: da angústia ao sintoma (1a ed.). São Paulo: Aller editora. (Trabalho original publicado em 2015-2016).
Paulo Bueno: Psicanalista, psicólogo (PUC-SP), mestre e doutor em Psicologia Social (PUC-SP). Supervisor Clínico. Docente do Instituto Gerar de Psicanálise. Pesquisador do Núcleo Psicanálise e Sociedade (PUC-SP). Professor convidado do Programa Fellowship – 2021/2022 (Columbia University). Colaborador do Instituto AMMA Psique & Negritude – 2020/2021. Colunista do Papo de Mãe/UOL. Autor de “Coisas que o Pedro me ensina: crônicas de uma paternidade”. paulotbueno@hotmail.com
Psicanalista, psicólogo (PUC-SP), mestre e doutor em Psicologia Social (PUC-SP). Supervisor Clínico. Docente do Instituto Gerar de Psicanálise. Pesquisador do Núcleo Psicanálise e Sociedade (PUC-SP). Professor convidado do Programa Fellowship – 2021/2022 (Columbia University). Colaborador do Instituto AMMA Psique & Negritude – 2020/2021. Colunista do Papo de Mãe/UOL. Autor de “Coisas que o Pedro me ensina: crônicas de uma paternidade”. paulotbueno@hotmail.com