Tivemos a honra e o prazer de entrevistar a psicanalista Caterina Koltai, em julho de 2022, em uma manhã fria e ensolarada de sábado. Nessa conversa descontraída e amigável, nos deparamos, mais uma vez, com a riqueza de suas experiências nos vários países e línguas nas quais se formou. Sua rica trajetória e posicionamento claro fizeram da psicanalista uma referência incontornável do movimento psicanalítico.
As questões que Koltai já se colocava no início de sua prática se mostram tão urgentes hoje, como então, revelando a ousadia e a atualidade do seu pensamento. A formação do analista, seu pertencimento institucional, o lugar da política na psicanálise e da psicanálise na política, o risco perene de se fechar em “igrejinhas”, a estrangeirice do inconsciente em nós, as línguas maternas que nos formam, foram temas abordados com sua lucidez e espontaneidade características.
Daniela: Para começarmos, você poderia nos contar sobre a sua experiência na França, o seu encontro com a Psicanálise, a sua situação de exílio. Pois sua ida à França se deu na época que aqui no Brasil era decretado o AI-5[1], não é?
Caterina: Então, eu saí do Brasil no dia do A-I5, o AI-5, aliás, aconteceu enquanto eu estava no avião e foi uma certa sorte, porque se eu tivesse saído depois, eu não sairia. Cheguei lá, desci no aeroporto, e a primeira coisa que eu vi foi a notícia sobre o decreto do AI-5 na capa do Le Monde. Ali me deu um certo frio na espinha. Era previsível, a gente sabia que ia acontecer, mas entre acontecer e ver no jornal, faz uma diferença.
Quando eu cheguei a Paris, eu não conhecia absolutamente ninguém, tinha acabado de fazer 20 anos, falava francês perfeitamente porque eu tinha estudado no colégio francês, mas enfim, fora falar francês, eu não tinha nada. Não tinha um endereço, tinha apenas a indicação de um hotel no qual os brasileiros costumavam se hospedar. Fui para esse hotel e lá fiquei. Deu três dias, minha mãe me liga: “acho melhor você não voltar”. Porque quando eu fui, foi para ficar um mês e voltar, porque na verdade, o que tinha acontecido antes, era que eu era apátrida, não tinha passaporte, então, era um problema. Eu tinha acabado de ser naturalizada brasileira e ia festejar meu passaporte, minha naturalização, com uma viagem de um mês para Paris. Eu fui com uma passagem de ida e volta, minha mãe falou “olha, já vieram te buscar aqui em casa, então você vai ficando. Tenta se matricular na faculdade e fica por aí”. Foi o que eu fiz. Eu estudava Ciências Sociais aqui, então me inscrevi em Sociologia lá, estava indo do segundo para o terceiro ano, eles me deram equivalência de um ano, voltei para o segundo, mas lá eram só três anos, então faltariam dois anos de qualquer jeito. Eu já estava meio encantada com a Psicanálise antes, eu entrei para a Psicanálise antes dos 20 anos, pelas Ciências Sociais, foi assim que eu fui chegando. Bom, na França, nos anos 1970, era Psicanálise até na Química Orgânica, eu acho. Em qualquer lugar era Psicanálise, então não precisava fazer, estudar Psicanálise, para ser contagiada. Eu fui cada vez mais estudando Psicanálise, me encantando, etc. e tal. Fui fazer análise já lá em Paris, com a ideia “bom, um dia vou virar analista. Como? Eu não sei. Quando? Eu não sei. Mas algum dia eu vou para aí”. Nesse “um dia eu vou para aí”, fui indo, fui indo, fui indo, eu queria fazer Psicologia à noite, mas não dava. Ainda naquela época achando que para ser psicanalista tinha que fazer Psicologia, não sabia todos esses outros caminhos.
Fui estudando Psicanálise por conta própria, fazendo análise, etc. e depois de 11 anos na França, voltei para o Brasil, um ano antes da Anistia. A gente já sabia que ia haver uma Anistia e eu já sabia que o meu processo tinha sido arquivado. O meu processo era o de Ibiúna. Eu já sabia que tinha sido arquivado, que eu poderia voltar, meu parceiro estava louco para voltar, porque ele não tinha emprego fixo lá, só eu tinha trabalho fixo. A gente tinha um filho de um ano, então resolvemos voltar.
Eu voltei, fiquei péssima, passei dois anos parecendo um zumbi, querendo voltar para a França, porque eu não queria voltar, eu voltei porque o meu parceiro queria voltar, mas eu não tinha a menor vontade de voltar para o Brasil, eu estava muito bem adaptada. Trabalhar na Unesco não era um sonho de vida, mas eu ganhava bem, trabalhava pouco e fazia coisas medianamente interessantes. Daria para levar uma vida assim. Sem muito desejo rolando, mas dava. Ser funcionária internacional tem várias vantagens, você entra em qualquer lugar, você circula bem, você tem uma série de benesses para usufruir, quer dizer, não estava ruim a minha vida. Mas bem, aí a gente voltou, os dois primeiros anos foram um inferno, eu achava tudo esquisito aqui. Não conseguia um emprego decente, fui trabalhar na Editora Abril, mas fazia coisas que não eram do meu interesse. Até que finalmente eu falei “bom, assim não vai dar para continuar”, porque aqui não tinha um pseudo emprego que era tão confortável que dava para ir levando, e aí eu resolvi tomar vergonha na cara: “eu não vou abrir mão de tudo que eu gosto para sempre. Bom, agora eu vou me preparar para poder ser analista”.
Então fui para a Biblioteca (Freudiana), fui lá fazer a tal da formação que eu achava que sem ela, eu não ia conseguir. Os primeiros anos foram muito bons, deu para estudar bastante e aprender muito, mas depois eu comecei a pegar de frente com toda aquela institucionalização, aquela impossibilidade de pensar pela própria cabeça, pela obrigação… eu venho de família ateia, se tenho que ir para a Igreja, não vai dar certo.
Daniela: Falando em instituição, tem uma passagem em que você foi candidata a vereadora em 1982.
Caterina: Em 1982, fui.
Daniela: O lema da campanha na época era: Desobedeça!
Caterina: Bem engraçado. Era de uma modernidade, mesmo hoje, porque foi assim: estava em 1982, primeiras eleições livres, fundação do PT, e o PT insistindo: “tem que ter candidato, tem que ter candidato”. E eu tive a má ideia numa reunião de dizer, “gente, acho que teria que ter alguém mais na ordem alternativa, que seria PT, mas eu acho o PT muito careta”, aí o Dirceu, que era meu amigo da época de política estudantil, falou assim “se for para ser isso, só pode ser você, porque você já era porra louca na época”. Eu saí candidata a vereadora nessa frase, “você já era porra louca na época”. Bom, aí juntou todos os porra-loucas que estavam, a maioria deles, voltando do exílio, uns da Alemanha, outros da Suécia, e a gente concordou em fazer da desobediência civil nosso tema central, donde nosso panfleto intitulado Desobedeça. Uma pessoa sugeriu que utilizássemos letras de música, e assim fizemos. A gente fez um panfleto que seria moderníssimo ainda nos dias de hoje, cá entre nós. Nele dizíamos “Desobedeça ao impedimento de manifestação, ande sem lenço e sem documento, desobedeça a quem quiser impor uma forma de amar, qualquer maneira de amor vale a pena. Desobedeça a quem quiser regulamentar seu prazer, lute pela descriminalização da maconha”. Enfim um monte de reivindicações que faziam todo o sentido na Europa daquela época, mas não num país que estava saindo de uma década de ditadura militar. Pregar a desobediência civil no Brasil foi temerário, não só no Brasil, mas dentro do próprio PT, que era um partido de esquerda tradicional. Era e continua sendo, cá entre nós. Não é essa modernidade toda, o PT. A gente fez essa campanha, foi muito engraçada. O pessoal se encantou com o panfleto. Lógico, nunca tinham visto um panfleto assim, as pessoas xerocavam o panfleto e passavam umas para as outras. Resultado: só não ganhei as eleições por muito pouco, porque se eu tivesse ganho…
Daniela: E é verdade que o Felix Guattari apoiou a sua candidatura?
Caterina: Verdade. Porque o Guattari veio ao Brasil a pedido da Suely (Rolnik) várias vezes e foi fazer campanha para mim. Enfim, foi muito engraçado… as pessoas que apoiaram.
Daniela: Tinha algo de festivo também por conta da abertura?
Caterina: E o pessoal levava para o Rio. O Liszt Vieira levou para o Rio o panfleto xerocado e fez uma campanha parecida lá. Isso funcionou com os panfletos sendo xerocados pelo Brasil inteiro. Teve uma tese na USP sobre isso, é uma coisa muito engraçada. Mas eu saí dessa campanha com um processo nas costas porque o imbecil de um radialista, não lembro mais o nome dele, me denunciou no rádio, dizendo que eu estava incitando as pessoas a se drogarem.
Daniela: Poderia ser atual, esse tipo…
Caterina: Sendo que eu tinha consultado um advogado antes para dizer se podia pôr aquela frase: “o mal não é o que sai pela boca, lute pela descriminalização da maconha”. Eles me fizeram um processo como se eu estivesse vendendo maconha. Como se eu fosse traficante. Foi um terror, um ano de terror.
Daniela: O livro “Psicanálise e Política” foi escrito a partir do seu doutorado?
Caterina: É meu doutorado, da primeira à última palavra.
Vera: Esse foi o seu retorno para a academia?
Caterina: Aí depois eu entrei nas Ciências Sociais da PUC, fiquei lá 30 anos e no fim eu já estava só na pós-graduação, aí eu dava Psicanálise e Política, porque eu já não aguentava mais a Sociologia pura.
Daniela: Agora, esse tópico, Psicanálise e Política, foi você que introduziu aqui no Brasil? Você foi pioneira nesse ponto.
Caterina: Eu acho que sim, não sei. Mas eu não tinha lido nada formulado desse jeito antes, que era um pouco a minha história: Psicanálise e Política. Quer dizer, é uma tese bem narcísica, sobre o estrangeiro… de alguém que sempre foi estrangeiro…, mas é uma tentativa de dar conta de uma história, porque eu saí da Hungria com dois anos de idade. Fiquei na Itália até os nove, aí aos nove vim para o Brasil, aos vinte voltei para França e aos trinta e dois anos voltei para o Brasil. Nesse período, vivi um ano na Argélia. Agora cá estou e acho que cá eu fico.
Daniela: Você é naturalizada?
Caterina: Sou naturalizada. Até naturalizar, eu era apátrida, que é uma sensação muito estranha…
Daniela: Depois você organizou esse colóquio que chamava “O Estrangeiro”?
Caterina: No meio da minha tese, meu orientador, o Manoel Berlinck, me ofereceu, “escuta, você não pode fazer um colóquio sobre o estrangeiro?”. Eu já estava no meio da tese, então resolvi organizar e chamei meus amigos franceses todos, meus amigos e minha analista, a Radmila (Zygouris) e o Jacques Hassoun, e a gente fez esse colóquio que foi muito legal. A gente chamou também os argentinos e os uruguaios… Muitos deles tinham organizado e participado de um colóquio sobre o estrangeiro em Paris
Daniela: Esse modo de abordar o estrangeiro também foi algo que vocês inauguraram, foi um marco naquela época então?
Caterina: Olha, acho que foi. Quando você está no meio da história, você não tem plena consciência se foi um marco. Foi um marco para mim porque foi a hora que eu consegui, de alguma maneira, juntar os vários pedaços da minha história para mim mesma. Mas eu acho que mesmo em termos de Brasil, foi a primeira tese assim, primeiro que foi toda em primeira pessoa, quer dizer, tinha o sujeito da enunciação, eu não fiquei me escondendo atrás de citações infinitas. Eu juntei a primeira parte da minha vida com a segunda parte da minha vida de alguma maneira.
Daniela: A França e o Brasil.
Caterina: A França e o Brasil; a Sociologia e a Psicanálise; o ser estrangeiro e o que isso te traz, inclusive como analista. No comecinho, levei muita porrada, dizendo que isso não era Psicanálise, que eu nunca ia deixar de ser só uma socióloga, que psicanalista não tem que falar de política.
Daniela: Importante isso, quer dizer, de fato, se achava que psicanalista não precisava falar de política.
Caterina: Muita gente achava. Eu ouvi muito isso.
Vera: Isso continua sendo atual. Achava ou acha…
Caterina: Acha, né. Quando muito, como cidadão, você até pode, mas como psicanalista não pode. Eu não consigo entender uma Psicanálise que não seja atravessada pelo social, pelo político, para mim não dá. “Isso é você como socióloga” e os sociólogos diziam que eu não era mais socióloga. Quer dizer, meu destino de estrangeira estava selado desde o começo.
Daniela: Nas bordas, nas fronteiras…
Caterina: Não é à toa que ou eu fazia uma tese sobre isso, ou eu não fazia a tese. Não tinha ideia de poder trabalhar outra coisa. Fiz um balanço, de meio do caminho, eu fiz um balanço.
Daniela: E na tua clínica? Esse tema do ser estrangeira, tornar-se estrangeira, na tua escuta como isso aparece?
Caterina: Olha, no começo, até por causa disso, minha clínica era feita quase só de segunda geração de estrangeiros. As pessoas que me procuravam, me procuravam por esse significante. Outras pessoas que vieram encaminhadas, eu sempre atendi muita gente em francês, diga-se de passagem, o que eu te falei, eu acho que sou melhor analista em francês do que em português.
Aos poucos… bom, acho que o lugar do analista é um lugar de estrangeiro, não tem como não ser, por definição. Depois, eu acho que… é fundamental o aprendizado das passagens das fronteiras, então eu sei que isso me marca muito na minha escuta, e marca muito as pessoas que me procuram.
Daniela: A questão da língua. Sua análise com a Radmila (Zygouris) era em francês, mas ela é de origem…
Caterina: Ela é sérvia. Criada em parte na Argentina, também numa escola francesa, e que eu só vim descobrir bem depois. Depois ela foi da Argentina para a França. Ela fez a análise dela na França, ela foi da Escola Freudiana, enfim o percurso dela foi bem lá. Até que ela também rompeu, no momento da dissolução, e ela fundou um grupo que chamava Ateliers de Psychanalyse que era um grupo super interessante, porque desde o comecinho, ele aceitava dupla filiação. É o único grupo que eu conheço que aceita isso, que você podia ser dos ateliers e ser de outra escola, se você quisesse. Justamente para não fechar as pessoas. Então foi a analista que conseguiu me escutar, principalmente naquela época.
Daniela: E você se analisava em francês?
Caterina: Me analisava em francês.
Daniela: Porque algo que aconteceu agora com a pandemia é que muitas pessoas, brasileiros morando fora, buscaram análise aqui. Eu te perguntaria sobre isso, sobre se buscar uma análise na língua materna, como você pensa?
Caterina: Olha, a língua materna, essa é uma questão, porque teoricamente, a gente tem uma língua materna, mas eu acho que eu não tenho. Outro dia eu li a um livro que é a história de um prédio em Paris, onde moraram muitos judeus que foram deportados. É um livro e também há o filme: Rue Oberkamf. Uma das personagens do livro fala: “eu não tive língua materna, porque a cada dois anos eu estava em outro país, já tinha outra língua”. Eu aprendi, minha língua materna é o húngaro, em princípio. Só que eu aprendi a falar húngaro e com dois anos, eu já estava morando na Itália. Eu falava húngaro em casa, italiano na rua e fui parar numa escola francesa, por causa daquela frase do meu pai que só dá para ser livre em francês. Meu pai me botou numa escola francesa, para ficar bem simples. Para que complicar se pode fazer simples, né? Mas eu agradeço a ele por esse ato até hoje, porque eu sou apaixonada pela França, literalmente, pela língua, pela cultura, pelos anos que eu passei lá e de alguma maneira, eu acho que… não sei se só dá para ser livre em francês, mas o francês ajuda muito nessa procura da liberdade. Então eu aprendi ao mesmo tempo o húngaro e o italiano, foi ao mesmo tempo, o húngaro em casa e o italiano na rua. Eu nunca aprendi a ler nem a escrever em húngaro, então não falo perfeitamente, não sei ler nem escrever em húngaro. A minha língua da alfabetização foi o francês, então… eu não sei qual a minha língua materna. É húngaro, mas não é também, porque é uma língua na qual me falta um braço e uma perna, não sei ler, sou analfabeta. Eu aprendi a falar húngaro na Itália, junto com italiano, então… meus pais nunca conseguiram aprender nenhuma língua que não fosse húngaro. Eles falavam italiano mal, português pior ainda. Francês, embora meu pai dissesse que só dava para ser livre em francês, ele não falava em francês. Então era muito mais pela história da França, pela Revolução Francesa, do ateísmo, porque meu pai… eles eram judeus, mas meu pai era militante ateu. Aliás, eu fui para a escola francesa por causa disso também, porque era a única escola não-religiosa de Roma. Em Roma, todas as escolas tinham religião obrigatória por causa do Vaticano, da Concordata, que eles tinham o acordo. Os judeus iam para a escola judaica. E eu fui para a escola francesa porque era a única escola que não falava de deus, nem de judeus ou católicos. As pessoas que estudavam lá eram em sua maioria filhos de diplomatas, visto que a maioria das capitais mundiais tinha uma escola francesa. Além dessas pessoas havia alguns outros como eu. O avô da minha melhor amiga por exemplo, ficou preso na mesma cela que o Gramsci.
Vera: E a marca da política, em tudo isso que você fala.
Caterina: É, a marca da política.
Vera: A bandeira da liberdade.
Caterina: Da liberdade, da Revolução Francesa.
Vera: Os resistentes que estão lá… parece que a língua materna foi a língua política.
Caterina: Foi a língua política, dos Direitos Humanos… Então o italiano eu continuo falando bem, não esqueci, mas também não me sinto na língua materna, embora tenha sido a língua da primeira infância.
Daniela: Então não uma única só língua, não um único país, não uma única instituição.
Caterina: Não, não. Um único, eu não suporto.
Daniela: O desobedeça pode ir por aí.
Caterina: Desobedeça vai por aí, eu morro, falta ar quando fecham as portas, as janelas. Para mim é uma cela. Uma única língua, um único país.
Daniela: E a experiência da análise online? O que você falaria sobre isso? Você já atendia online antes por conta de sua clínica com estrangeiros?
Caterina: Não, não atendia. Quer dizer, até atendia pacientes meus que voltaram para a França, que eu atendia aqui em francês, para quem eu tinha sugerido passar um nome na França e que não quiseram. Esses eu continuei online, mas eram poucos. Eu não acho que análise online seja uma análise comme il faut. Falta corpo, falta sorriso, falta… agora, quem não tem cão, caça com gato. No entanto, por exemplo, com a Radmila quando voltei para o Brasil, a gente se escrevia.
Daniela: Como era?
Caterina: Porque não existia, primeiro não existia ainda a internet. Quando eu entrava em pânico, escrevia longas cartas e ela sempre me respondeu. Então era por escrito.
Vera: Ela respondia por carta?
Caterina: Por carta.
Daniela: Imaginando que naquela época uma carta, para chegar, demorava no mínimo sete dias, e depois mais sete para voltar… eram pelo menos uns 15 dias de intervalo…
Caterina: Sim era bem sofrido por momentos até porque eu não tive neurose de transferência, eu tinha psicose de transferência (risadas). O Ricardo Goldenberg, meu colega de consultório, tirava o maior sarro de mim. Quando chegava carta, de Paris, só faltava pular…
Daniela: Nossa, por carta!
Caterina: Por carta. Foi sofrido. Foi sofrido. Durou anos.
Daniela: Eu lembrei que a Françoise Dolto conta nos livros dela, sobre os homens que iam para guerra e que escreviam para cada um de seus filhos nominalmente, e como essa relação episcopal, ela dizia, foi fundamental para aquelas pessoas naquele período tão difícil de suas vidas.
Caterina: Eu acho que, inclusive, era interessante esperar, no mínimo, 15 dias para uma resposta. Sete para ir e sete para voltar, isso não quer dizer que ela ia responder no ato.
Daniela: Tem uma questão que eu vou ler para você. Você falou um pouco da dupla filiação, queria te perguntar um pouco mais sobre a questão da formação e o teu posicionamento. Eu vou ler, porque o Paulo Beer me pediu que eu te fizesse esta pergunta. Ele diz assim: você sempre teve um percurso crítico em relação às escolas de psicanálise, com a abertura para o diálogo, mas também com certo distanciamento. Como você entende os atravessamentos transferenciais na formação dos analistas? Como isso deve ser conduzido? Qual responsabilidade deve ser assumida? Especialmente considerando as demandas de filiação, tanto dos que procuram um laço identificatório quanto dos que muitas vezes caem no lugar de modelo? Você começou a falar disso, mas se puder falar um pouco mais…
Caterina: Então, a dupla filiação. Quer dizer, dentro da instituição, dos ateliers, o que eu achava interessante era que a transferência era soberana sempre. Se você viesse de outra escola com outra transferência de análise, quisesse estudar lá com eles, você era bem-vindo.
Então… eu acho que sim, embora tenha um modelo de igreja nas instituições, instituição não é e não pode ser uma igreja. Não tem um deus único. E com o narcisismo dos chefes de escola, muitas vezes, eles se tomam por um deus. Principalmente os homens quando têm uma instituição rodeada por mulheres por todos os lados. O grosso das instituições é isso. Então, me parece que o analista não pode, quando o paciente chega, “eu quero entrar na tua instituição, eu quero fazer supervisão com você também, eu quero isso”, eu acho que o analista não pode deixar. O analista tem que ajudar a sugerir o não, a barrar, “se faz análise, não faz supervisão comigo”, vai ver o que está acontecendo em outra instituição, não é? Por exemplo, quando a gente estava falando dessa língua materna, do húngaro, a Radmila me disse “por que você não vai procurar a Maria Torok para conversar com ela? Ela é húngara como você, talvez ela possa te ajudar em algumas coisas. Vai procurar”.
Daniela: Quer dizer, que as bordas e as fronteiras não sejam tão definitivas…
Caterina: E a Radmila, quando fez o passe dela, ela conta que no passe dela estava o (Serge) Leclaire, que foi seu analista, Lacan, e estava o (Moustapha) Safouan… e que o Safouan, falou que ela atravessava fronteiras com excessiva facilidade, como uma crítica. Ao que Lacan teria respondido que era “por isso mesmo que ele votava por sua nomeação, por ela ser capaz de atravessar as fronteiras facilmente”.
Daniela: Nossa, como a história se repete! Me lembrei de uma passagem do Winnicott com a Françoise Dolto, na qual, ao entrevistar a psicanalista, Winnicott teria concluído que ela era demasiado carismática e adiantada para sua época.
Vera: Esqueceram que são dois exemplos de mulheres.
Daniela: Exato.
Caterina: Dois exemplos de mulheres, né?
Caterina: E a Radmila, por exemplo, foi uma das primeiras lacanianas que leu os ingleses e (Sándor) Ferenczi e se encantou com eles.
Vera: A gente tem falado, não da questão da igrejinha, mas de instituições não-monogâmicas. Que o Instituto Gerar tem essa pegada não-monogâmica. Circulem, circulem.
Caterina: Deixa a pessoa circular, fazer transferências.
Daniela: E que as pessoas possam trazer, trazer o que ouviram e discutir…
Caterina: Sim, que as pessoas possam trazer. Quer dizer, eu não me vejo, por exemplo, fazendo análise com alguém da IPA, acho que eu não dou conta, precisa ter um tempero lacaniano. Mas eu não tenho a menor vontade de fazer uma análise stricto sensu lacaniana, dessas em que não se permite nenhum movimento. Recentemente, eu voltei para uma análise aqui no Brasil, também com uma lacaniana livre e criativa, acho que eu tenho faro para psicanalistas livres.
Daniela: Você tem falado, em várias oportunidades, da tarefa civilizatória da Psicanálise…
Caterina: Ah isso… eu acho que a principal tarefa da psicanálise é civilizatória…
Daniela: Você poderia falar mais sobre isso? Ainda mais no contexto e época que a gente vive.
Caterina: Primeiro, que o outro é outro. Respeitar a outridade do outro, se é que a gente pode dizer isso. Não querer trazê-lo para ser um espelho, para ser igual ou para destruí-lo pela sua diferença. Segundo, dar uma outra direção à violência que é inata no ser humano e a pulsão de morte, que não seja a destruição do outro. Terceiro, justamente suportar a solidão, não ficar sempre nos movimentos de massa, suportar pensar diferente e arcar com aquilo. Pagar pelas próprias escolhas, coisa que nesse Brasil que a gente está, ninguém arca com escolha nenhuma no poder. Então, acho que, basicamente, dar uma direção à violência que não seja a destruição do outro nem a própria destruição; por palavras no lugar do ato; aceitar a diferença; querer transformar em Justiça, não aceitar injustiça; não se eximir da responsabilidade social em momento algum…
Daniela: É por isso que a Psicanálise é política.
Caterina: É por isso que a Psicanálise é política.
Vera: Eu fiquei pensando, em quem é o estrangeiro hoje na análise, para além dessas bordas de país, de nacionalidade. Quando a gente vai pensando que estamos começando a poder receber jovens negros, trans – que até então eram considerados psicóticos de saída – que estrangeiridade a gente pode incorporar também na psicanálise hoje?
Caterina: Acho que o próprio inconsciente. O inconsciente é estrangeiro. É estrangeiro sempre, ele nos surpreende sempre, ele nunca entra na casinha. Não tem como civilizar o inconsciente, no sentido de se apropriar dele. Ele está sempre lá, no seu ato falho, ele sempre te surpreende. Como o estrangeiro te surpreende. Não precisa ser a mulher, o trans, o jovem, o estrangeiro de outro país.
Vera: Você vê diferença… claro que você vê, mas o que você acha, para você que estava lá no começo, com uma Psicanálise que estava saindo desse formatão importado, para essa Psicanálise de hoje, que você acompanha bem, os mais jovens que nós que estão chegando aí, a geração que já está empurrando a gente… o que você vê?
Caterina: Eu acho que esses jovens são bem mais tolerantes do que nós éramos, muito mais. Circularam em mais grupos, se alienaram menos nas instituições. Eles até fizeram parte de instituições, mas não se alienaram como a nossa geração se alienou. Eu até acho que me alienei, para a minha geração, razoavelmente pouco, mas a geração se alienou demais. Acho que eles estão menos fixados em poder, acho que deixou de ser o ideal do eu ser chefe de escola. O que mais eu poderia dizer… a universidade acabou acolhendo muitos analistas, abriu espaço para a psicanálise. Não sei se para o bem ou para o mal, às vezes, para dizer a verdade, mas abriu. Tem outros caminhos para psicanalistas que não sejam a própria instituição. A pólis está aceitando mais o que o psicanalista tem a dizer, às vezes até bem demais, porque vira receitinha de bolo. O psicanalista fulano disse isso ou aquilo, mas enfim, tem mais lugar na polis para eles circularem. Eles são mais cultos, por incrível que pareça, eles podem… pelo menos esse grupinho que está com vocês, dá de 10 a 0 em qualquer um da minha geração. Acho que não devem ser os únicos, mas são os que a gente conhece, mas deve ter outros como eles.
Vera: Promissor, né?
Caterina: Eu acho que é uma garotada muito promissora. Eu gosto demais deles, porque eles são super estudiosos, mas eles se levam muito menos a sério.
[1] O Ato Institucional Número Cinco – o AI-5 – decretado em 13 de dezembro de 1968, foi o quinto de dezessete grandes decretos emitidos pela ditadura militar nos anos que se seguiram ao golpe de estado de 1964 no Brasil
Psicanalista, socióloga formada pela Universidade de Paris V, mestre em sociologia da educação pela Universidade de Paris I e doutora em psicologia clínica pela PUC-SP. Professora aposentada da graduação e pós graduação da PUC-SP. É autora dos livros Psicanálise e política: o estrangeiro (Editora Escuta, 2000) e Totem e tabu: um mito freudiano (Editora Civilização Brasileira, 2010).
Psicanalista, mestre em Psicologia Escolar e do Desenvolvimento Humano pelo IPUSP e doutora em Psicanálise e Educação pela FEUSP. Coordenadora do curso de Pós-graduação em Psicanálise na Parentalidade e na Perinatalidade do Instituto Gerar de Psicanálise. É autora dos livros Clínica Psicanalítica com bebês – uma intervenção a tempo (Fapesp/Casa do Psicólogo) e Família, parentalidade e época: um estudo psicanalítico (Fapesp/Escuta); e coorganizadora do livro O que os bebês provocam nos psicanalistas (Escuta/Fapesp) e da Coleção Parentalidade & Psicanálise (Autêntica, 5 volumes, 2020).
Psicanalista, Mestre e Doutora em Psicologia pela USP, Membro do Departamento de Psicanálise do Instituto Sedes Sapientiae, foi analista de escola de 2016-2017 e é membro do Fórum do Campo Lacaniano, autora dos livros: Mal-estar na maternidade: do infanticídio à função materna (Zagodoni, 2 edição, 2020), Criar filhos no século XXI (Contexto, 2019) e organizadora da Coleção Parentalidade & Psicanálise (Autêntica, 5 volumes, 2020), Colunista da Folha de São Paulo, Diretora do Instituto Gerar de Psicanálise.